I. SCHOPENHAUER: o pêndulo da vida oscila entre o sofrimento e o tédio
Ó mundo de efemeridade, ó mundo de fluidez, onde tudo se escorre e vaza por entre os dedos como água corrente... É realmente muito triste que nada dure, que toda alegria seja fugaz, que todo entusiasmo seja evanescente, que todo prazer seja apenas momentâneo... “Todo contentamento dos mortais é mortal”, diz Montaigne, e não há mesmo nada a fazer. Xingar o rio é pior. E, aliás, nenhum xingamento, nenhum pedido, nenhuma prece, tem o poder de parar o fluxo. Tentar parar a correnteza é inútil, impraticável, perda tola de energia... O que nos resta é nos deixarmos descer, desapegados, rio abaixo. “Tudo flui”, constata Heráclito. “Flua também!”, poderíamos acrescentar como conselho.
Eu ando a me recomendar o seguinte:
Não se alegre demais com as suas alegrias, não se entristeça demais com as suas tristezas: elas não vão durar.
Tudo isso, absolutamente tudo isso, é certamente provisório.
E o que cumpre perguntar é: nesse mundo de impermanência, é possível a felicidade? Ou é ela, a felicidade, apenas mais uma das mentiras que o homem inventou para se consolar, apenas uma utopia irrealizável, apenas algo eternamente sonhado e nunca alcançado? Enfim, é possível realmente conquistar alguma satisfação durável, alguma alegria permanente, dentro desse mundo em que nada parece ser durável, nada parece ser permanente?
Schopenhaueur, conhecido como um dos mais pessimistas dos filósofos da história do pensamento, tinha realmente idéias bastante sombrias sobre a vida humana e as possibilidades de alcançar a felicidade. Seria um tanto exagerado dizer que, na visão de Schopenhauer, a felicidade é absolutamente impossível. Ele concebe sim um certo estado mental “iluminado”, liberto de toda vontade e de toda a individualidade, que seria a única possibilidade para que o homem escapasse dum gélido e horroso mundo de sofrimento e tédio. Mas até mesmo esse estado “iluminado” que Schopenhauer descreve (e que é bastante semelhante às “iluminações” descritas pelos sábios orientais budistas, taoístas e hindus...) não é durável, não é PERPETUÁVEL.
O famoso PÊNDULO DE SCHOPENHAUER é realmente uma das idéias mais melancólicas que um filósofo já pôde pensar. E assusta tanto mais por parecer tão verdadeira, tão plausível... O desejo, diz Schopenhaeur, é sempre expressão de uma necessidade, de uma falta, de uma ausência. Só desejo o que não tenho, o que não sou, o que perdi, o que ainda me está prometido, o que não está presente. A força selvagem do desejo berra no interior de todo ser humano, exigindo satisfação, e é o sofrimento aquilo que advêm quando existe um intervalo muito grande entre o desejo e sua satisfação. Todo mundo sabe que desejar sem gozar é sofrer. As crianças muito pequenas servem para provar uma verdade sobre o desejo: elas só choram tanto pois não suportam o intervalo entre o desejo e a satisfação; reclamam, aos berros, esperneando, gratificação imediata para todos os seus anseios. O processo de amadurecimento, no fundo, consiste basicamente em aprender a suportar um intervalo cada vez maior entre o desejo e sua satisfação; consiste em começar a aceitar o fato de que alguns desejos podem demorar para serem satisfeitos devido a uma série de obstáculos, restrições, dificuldades; e até mesmo aceitar que alguns desejos são irrealizáveis e devem ser abandonados... Freud não dizia outra coisa quando dizia que amadurecer significa substituir o “princípio de prazer” pelo “princípio de realidade”.
O problema então é o seguinte: nosso desejo sempre exige uma satisfação que não demore muito (pois essa demora é sentida como sofrimento, como mal-estar), e muitas vezes essa satisfação não é facilmente alcançável ou chega a ser mesmo impossível. Muita gente não chega nunca a perceber que a maior causa da nossa infelicidade é a nossa insistência em desejar coisas impossíveis. Quando o desejo voa alto demais, não há mesmo nada na realidade que possa vir satisfazer esse desejo... E continuamos a desejar que o mundo seja perfeito, que exista um Deus bom, generoso e justo lá em cima, que a vida seja uma linda escada de diamantes, plena de alegrias, que conduz ao Paraíso, que as pessoas sejam todas amorosas e cheias de virtude, que a vida tenha um sentido... e depois nos surpreendemos por nos sentirmos decepcionados...
A solução (e é essa a mais importante das lições que dão os filósofos estóicos) é justamente MODERAR O DESEJO. A felicidade nunca será alcançada, dizem os estóicos, se continuarmos a permitir que nossa vontade se dirija a objetos utópicos, irreais, inexistentes. Nossas ambições desmesuradas, nossa cobiça desenfreada, nossas esperanças muito idealistas, sempre causam infelicidade: elas são desejos que não encontram nunca no real algo que os satisfaça. A sabedoria estaria então num TRABALHO SOBRE A VONTADE que a tornasse ADAPTADA À REALIDADE. É preciso aprender a querer menos, a querer melhor, a querer o possível, o realizável, o alcançável. É preciso querer somente o que o desejo pode agarrar. “Queres pouco, terás muito... queres nada, terás tudo...”, diz o poema de Fernando Pessoa. É aquele papo: aprenda a querer o que você já tem, e então terá o que quer.
Na tenebrosa visão de Schopenhauer, o desejo é como que a semente de todo o sofrimento (e nesse ponto, como em muitos outros, ele se aproxima muito do budismo). Nâo há nenhum sofrimento que não seja frustração de um desejo ou demora na satisfação de um desejo. Somos infelizes pois a vida não é como desejamos que seja. Simples assim. Se conseguíssemos desejar que a vida fosse exatamente como é, se conseguíssemos deixar de querer que ela seja algo de diferente, algo de aperfeiçoado, algo de melhor, não estaríamos enfim reconciliados com ela?
Mas, dirão alguns, pretendendo refutar o sombrio alemão, que nem todo desejo é impossível de satisfazer, e que é inegável a existência do prazer quando conquistamos o objeto dos nossos desejos. Sem dúvida que é assim. Schopenhauer não nega. Negar a existência do prazer seria ridículo de um filósofo dessa categoria. O problema, claro, é que o prazer não dura. Todo desejo satisfeito nos causa um pequeno momento de prazer, o rápido fulgor subjetivo da alegria, um pequeno brilho na escuridão do sofrimento, mas logo ele, o prazer, destrói o desejo que o precedeu, e então o que sobra?... O tédio, o aborrecimento, o enfado. O prazer é o carrasco do desejo. E morto um desejo, assassinado pelo prazer, corre a nos dominar um novo desejo, e assim segue a vida, nessa “constante marcha adiante do desejo”, como diz Hobbes. O prazer é como um aliviante balde d’água que se despeja sobre o fogo do desejo. E, apagado o fogo, infelizmente, não é o repouso que se encontra: das cinzas renasce, como Fênix, um novo desejo. E saímos então, mundo afora, à caça de numerosos baldes d’água para apagar fogos que se sucedem numa fila sem fim, bombeiros no incêndio do desejo...
Quando a satisfação demora, sofremos. Quando a satisfação é conquistada, ela não dura. E, acabado o gozo fugaz da satisfação, chega o tédio, volta um novo desejo, e o carrossel prossegue. Saímos como loucos, mundo afora, em busca daquilo que desejamos, e quando conquistamos os objetos dos nossos desejos e gozamos esse efêmero prazer, percebemos que isso não adiantou de nada, que a felicidade continua ausente, que estamos ainda sendo impelidos para o ausente, para o distante, insaciados... Ouçamos o alemão num trecho que sintetiza muito bem seu pensamento:
“Todo querer procede de uma necessidade, isto é, de uma privação, isto é, de um sofrimento. A satisfação põe-lhe um fim; mas, para cada desejo que é satisfeito, dez pelo menos são contrariados; além disso, o desejo é demorado, e as suas exigências tendem para o infinito; a satisfação é curta, parcimoniosamente medida. Mas este contentamento supremo é apenas aparente: o desejo satisfeito cede lugar em breve a um novo desejo; o primeiro é uma decepção ainda não reconhecida. A satisfação de nenhum desejo pode conseguir contentamento durável e inalterável. É como a esmola que se lança a um mendigo: ela salva-lhe hoje a vida para prolongar a sua miséria até amanhã. – Enquanto a nossa consciência está preenchida pela nossa vontade, enquanto estamos subjugados pelo impulso do desejo, pelas esperanças e pelos temores contínuos que ele faz nascer, enquanto somos súditos do querer, não existe para nós nem felicidade duradoura, nem repouso.” (O Mundo Como Vontade e Representação, pg. 206)
O desejo, mesmo quando satisfeito, é problemático. A satisfação é sempre efêmera, escoa por entre os dedos, esvai-se como fumaça... E o que se segue é o tédio, sempre curado com as mais estúpidas das distrações e dos passatempos. E novos desejos sempre renascem dentro do nosso coração, nos impelindo sempre adiante nesse labirinto de privação, necessidade, dor e tédio que é a vida humana... Conclusão de Schopenhauer, naquela frase que Sponville depois vai considerar como “a mais triste da história da filosofia”: “...a vida oscila, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento para o aborrecimento” (O Mundo Como Vontade e Representação, pg. 327). E o prazer é somente um rápido pit-stop entre esses dois pólos do pêndulo da vida. È isso a vida humana: algumas esparsas ilhas de alegria em meio a um oceano de dor. Estamos perdidos: a felicidade é impossível. Ou ao menos é o que nos induz a crer esse tenebroso sistema de Schopenhauer.
E que não se creia que os ricos sejam mais felizes que os pobres. O dinheiro, esse coringa do desejo, certamente faz com que os ricos possam alcançar mais facilmente os objetos de seus desejos, mas isso está muito distante da tal da felicidade. Ao contrário do que pensa o senso-comum, conseguir o que se deseja não é alcançar a felicidade, diz Schopenhauer, mas sim cair no pântano do tédio. E, para se safar do tédio, os ricos não cessam nunca de inventar novos desejos: a cada ano, querem mais um zero na conta bancária, mais um carro na garagem, mais uma casa no litoral, mais uma caneta de diamantes, mais um balde de gelo de ouro... Os ricos, mesmo que um tanto mais imunes ao sofrimento dos desejos insatisfeitos, sofrem mais com o tédio, com a monotonia de uma vida aborrecida, que é preciso gastar em distrações mil. Já os pobres sofrem com a necessidade, com a inacessibilidade do almejado, a perpétua ausência do desejado. E, claro, também são capazes – e muito! – de se aborrecerem. Os ricos não detêm o monopólio do tédio: é ele um mal universal muito bem distribuído. A infelicidade (ao menos nisso há justiça!), está muito bem dividida entre todas as classes sociais, diz Schopenhauer, “e vêem-se pelo menos tantos rostos risonhos entre os pobres como entre os ricos”. Isso porque “no homem, nem a alegria nem o humor triste são determinados por circunstâncias exteriores, como a riqueza ou a situação no mundo” (pg. 332). Ricos e pobres podem até ter maneiras diferentes de serem infelizes, diz o simpático filósofo, mas infelizes o são, ambos, de maneira semelhantemente patética.
“...se a necessidade e o sofrimento nos concedem mais cedo uma trégua, o aborrecimento chega: é preciso, a todo custo é preciso qualquer distração. Aquilo que constitui a ocupação de qualquer ser vivo, o que o mantêm em movimento, é o desejo de viver. Pois bem, uma vez assegurada esta existência, não sabemos que fazer dela, nem em que a empregar! Então intervém a segunda mola que nos põe em movimento, o desejo de nos livrarmos do fardo da existência, de o tornar insensível, de ‘matar o tempo’, o que quer dizer fugir do aborrecimento. Deste modo vemos a maior parte das pessoas que estão ao abrigo das necessidades e das preocupações, uma vez desembaraçadas de todos os outros fardos, acabarem por ser uma carga para elas mesmas, dizerem a cada hora que passa: “tanto ganho!” – a cada hora, isto é, a cada redução dessa vida que elas tanto empenho têm em prolongar, visto que, até aí, consagraram todas as suas forças a esta obra.” (O Mundo Como Vontade e Representação, pg. 328)
Eis então a vida descrita em toda a sua miséria: já que “...nenhuma satisfação, nenhum contentamento pode durar...” (326), “...a perpetuidade dos sofrimentos é a própria essência da vida...” (298), diz o melancólico alemão. “Para a maioria, a vida é apenas um combate perpétuo pela própria existência, com a certeza de serem finalmente vencidos” (328). Disso tudo Schopenhauer tira a “convicção de que, por natureza, a vida não admite nenhuma felicidade verdadeira, que é essencialmente um sofrimento em aspectos diversos, um estado de infelicidade radical...” (339). O próprio Freud, que em muitos aspectos é um pensador tipicamente schopenhaueriano, declarou em seu O Mal-Estar na Civilização que a felicidade é impossível: “Não entrou no plano da ‘Criação’ que o homem ia ser feliz. O que se chama de felicidade, no sentido mais estrito, é o resultado da satisfação momentânea de necessidades que atingiram uma alta tensão, sendo somente possível, por sua própria natureza, como fenômeno episódico...”. Noite total. E ainda há o que adicionar a esse quadro tenebroso. Schopenhauer, como se sua doutrina ainda não estivesse suficientemente sombria, ainda acrescenta apontamentos (deliciosamente rabugentos!) tais como:
“Na verdade, custa a crer a que ponto é insignificante, vazia de sentido, aos olhos do espectador estranho, a que ponto é estúpida e irrefletida, para o próprio ator, a existência que a maior parte dos homens leva: uma espera tola, sofrimentos estúpidos, uma marcha titubeante através das quatro idades da vida, até esse termo, a morte, na companhia de uma procissão de idéias triviais. Eis os homens: relógios; uma vez montados, funcionam sem saber por quê.” (O Mundo como Vontade e Representação, pg. 338)
“A vida de cada um de nós, se a abarcarmos no seu conjunto com um só olhar, se apenas considerarmos os traços marcantes, é uma verdadeira tragédia; mas quando é preciso, passo a passo, esgotá-la em pormenor, ela toma a aparência de uma comédia. (...) Dir-se-á que a fatalidade quer, na nossa existência, completar a tortura com o escárnio: ela coloca-lhe todas as dores da tragédia, mas, para não nos deixar ao menos a dignidade da personagem trágica, reduz-nos, nos pormenores da vida, ao papel de bobo.” (O Mundo como Vontade e Representação, pg. 338)
“...viver, regra geral, é esgotar uma série de grandes e pequenas infelicidades; cada um, aliás, esconde o melhor que pode as suas, porque sabe bem que, deixando-as ver, raramente provocaria a simpatia ou a piedade, mas quase sempre a satisfação: não ficam as pessoas todas contentes por verem os males que evitaram? Mas, no fundo, talvez não encontrássemos um homem, no fim da sua vida, e ao mesmo tempo refletido e sincero, que desejasse recomeçá-la, e não preferisse antes um absoluto nada. No fundo e em resumo, o que existe no monólogo universalmente célebre de Hamlet? Isto: o nosso estado é tão infeliz que um absoluto não-ser seria muito preferível.” (O Mundo como Vontade e Representação, pg. 340)
II. SCHOPENHAUER: se desejo é dor, matemos o desejo! E Nietzsche se levanta: "nããããão!"
Não há então salvação no reino do desejo. Quanto mais desejo há, mais sofrimento há de advir. Ecoando a mensagem de Buda, Schopenhauer diz que tudo é dor, que toda dor provêm do desejo, e que o único meio de libertação é o aniquilamento completo do desejo, o nada da vontade: o que o budismo chama de Nirvana e o que Schopenhauer vai chamar pelo nome apavorante de Negação da Vontade de Viver, que se caracterizaria pela “supressão espontânea e total, a negação do querer, o verdadeiro nada de toda vontade”. Segundo Schopenhauer, “esse estado único em que o desejo se detém e se cala, em que se encontra o único contentamento que não se arrisca a passar, esse único estado que liberta de tudo... eis o que chamamos o bem absoluto... eis onde vemos o remédio radical e único para a doença, enquanto que todos os outros bens são puros paliativos, simples calmantes.” (380)
Já dá pra começar a suspeitar aonde isso vai dar: num ascetismo budista-cristão que, no fundo, é extremamente niilista. Aquele que prega a auto-mortificação, a indiferença a todas as coisas mundanas, a recusa de todos os prazeres, o abraço a todos os males... Já que o desejo é a raiz de todos os demônios, é preciso tomar medidas drásticas para aniquilá-lo, e eis Schopenhauer a nos aconselhar uma vida de pobreza voluntária, de jejum, de castidade, de completa resignação ao sofrimento, como fizeram os grandes “santos” e “místicos orientais” que tanto empenho devemos colocar em imitar... A revolta contra o instinto. A tentativa de homicídio contra o desejo.
Nietzsche, em muitos aspectos um discípulo direto de Schopenhauer, se revoltou contra essa doutrina de seu mestre, que considerava tão nojentamente próxima da cristã. E acusou todos - os budistas, os cristãos, os estóicos, os schopenhauerianos - de niilistas. Pois, de fato, o que significa ser um niilista? Significa dizer, basicamente, que essa vida não presta, que o mundo é um lugar terrível, que seria preferível nunca ter nascido, e que a vontade de viver, esse núcleo de todo ser vivo, merece ser negada. E o que o cristianismo diz senão que esse mundo é um terrível vale de lágrimas que é preciso suportar com resignação? E o que diz o budismo senão que “tudo é dor” e é que preciso auto-aniquilar toda a vontade, inclusive a vontade de viver? E que diz Schopenhauer senão exatamente a mesma coisa?
Nietzsche, como se sabe, vai procurar outro caminho, que não é o da resignação, que não é o do esmigalhamento da vontade, que não é o Nirvana, mas sim o oposto: o fortalecimento da vontade de viver e da vontade de poder, uma negação vigorosa da resignação, um sim! convicto dado ao instinto, uma afirmação dionisíaca da vida borbulhante, sofrida sim, trágica muitas vezes, mas mesmo assim digna de ser vivida, digna de ser afirmada, digna de ser amada... Schopenhauer é verdadeiramente um dos filósofos mais niilistas que conheço. Mesmo Marcel Conche, esse campeão do niilismo, tem uma mensagem um pouco mais positiva sobre a vida humana do que Schopenhauer. Mas nada prova que o niilismo esteja errado. Por enquanto, Schopenhauer ainda espera ser refutado. Nietzsche tentou.
De fato, a crítica de Nietzsche parece proceder. Quando uma pessoa faz tantos esforços no sentido de negar, reprimir, matar seu desejo, não se torna muito parecida com um MORTO? Não se torna apática, indiferente, vegetal? Não acaba por destroçar seu psiquismo à base de tanta repressão do instinto? Não se torna uma mente doentia, dopada, anestesiada, mutilada por tudo que foi reprimido e mantido no cárcere da mente? Enfim, essas pessoas que Schopenhauer, o budismo e o cristianismos nos convidam a imitar - o santo cristão, o anacoreta mendicante, o religioso auto-mortificante... – são realmente dignas de serem imitadas? Não são pessoas totalmente sem vida, niilistas do pior tipo, covardes que negaram a vida por medo do sofrimento? “Não é sadio desejar?”, pergunta a personagem da Julie Delpy no filme “Antes do Pôr-do-Sol”. “A incapacidade de desejar não é sintoma de depressão?”
Nietzsche via na revolta contra o instinto um sintoma de decadência e de niilismi, um terrível auto-mutilamento, uma neurose psíquica, enfim, um ATENTADO CONTRA A VIDA. “Buscar a a razão a todo preço, a vida clara, fria, prudente, consciente, despojada de instintos e em conflito com eles, foi somente uma enfermidade, uma nova enfermidade, e de maneira alguma um retorno à virtude, à saúde, à felicidade. Ver-se obrigado a combater os instintos é a fórmula da decadência, enquanto que na vida ascendente felicidade e instinto são idênticos.”, diz ele no “Crepúsculo dos Ídolos” (O Problema de Sócrates, #11) Ou seja: “atacar a paixão é atacar a raiz da vida”.
Enfim, Schopenhauer não será somente um melancólico e taciturno senhor alemão que, incapaz de viver os prazeres da vida, se entrega a fazer uma deplorável apologia do masoquismo e do suicídio lento e gradual? Não será ele somente um neurótico, um maníaco-depressivo, que cometeu o crime de generalizar a sua condição particular e fazer da condição humana em geral algo de tão insípido e de tão sofrido? Que cada um consulte sua experiência para checar se a vida tem sido assim tão cruel e tão infeliz quanto Schopenhauer a pinta. Não, não acho que tudo seja tão terrível assim. Pode ser que não sejamos exatamente felizes, exultantes, beatíficos, vivendo nas nuvens, abrigados numa casa de prazer constante e imortal, mas também não somos personagens de uma peça trágica onde tudo é dor, tédio e desejo de morrer...
Mas ainda é preciso refutar Schopenhauer com mais força. Se pintamos sua doutrina com uma tinta tão negra, foi só para que, na sequência, as cores mais amenas sejam mais fáceis de se ver. O excesso de escuridão fará com que a luz - e já estou começando a enxergá-la.... - brilhe com mais força. Já que esse tipo de “sabedoria”, de “santidade”, sugerida por Schopenhauer não nos convêm, pois nos torna assemelhados a bichos dopados e apáticos, pois não passa de um suicídio disfarçado, tomado gota a gota, é preciso encontrar uma outra sabedoria, um outro modo de vida, uma outra concepção da existência e do desejo... E ela é:
(CONTINUA...)
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