domingo, 15 de janeiro de 2006

(um conto.)



"CORTE DE CORDÃO UMBILICAL - SEGUNDO ATO"


”As perguntas realmente sérias são aquelas – e somente aquelas – que uma criança pode formular. Só as perguntas mais ingênuas são realmente perguntas sérias. São as interrogações para as quais não existe resposta. Uma pergunta sem resposta é um obstáculo que não pode ser transposto. Em outras palavras: são precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e que traçam as fronteiras de nossa existência.” MILAN KUNDERA, A Insustentável Leveza do Ser.


- Por quê, mãe?

Foi o que a voz da pequena murmurou, ingênua e suplicante, amargada quase que pela primeira vez por uma incompreensão cruel. Um pequeno resquício de inocência no amontoado lamacento dos homens queria saber o porquê. Um ponto-de-interrogação em formato humano, andante e falante, todo de carne, ossos e sangue, ousava se erguer em meio aos homens adultos, todos tão cheios de certezas, tão livres já do Pasmo Primordial, tão mergulhados na sensação da normalidade de tudo... O silêncio que havia se seguido à pergunta foi cortado pela segurança da mãe protetora, dona da sabedoria de vida, desvendadora de todos os enigmas, que viria com as respostas na bandeja... Estranhamente, porém, a voz materna, sempre tão jovial, quente e segura soou embargada e triste, saindo da caverna da garganta como um inseto subterrâneo que tem medo de se mostrar à luz do dia.

- Ah, filha... Quando chega numa certa época da vida, as pessoas começam a morrer...

A pequena garotinha, recebendo e processando essas palavras, não deixou de se sentir desiludida: aquela estava longe de ser uma resposta satisfatória. Por que não falavam logo por quê? Por que sua bárbara mamãe não queria compartilhar seu saber? Porque ela havia de saber. Tinha resposta pra tudo: nunca antes deixara uma só interrogação irrespondida, uma só dúvida inexplicada, um só vazio sem preenchimento. Aqueles pequenos olhinhos, abertos pela primeira vez há 9 anos, tinham a convicção de que tudo se sabia, e que tudo se podia aprender. Mamãe sabia.

Abalada pela suspeita inédita e amedrontadora de que mamãe pudesse não saber, com o receio daqueles que entrevêm que algo está errado, mesmo não sabendo precisar o quê, ela retornou:

- Mas por quê?

Irritada com a persistência, a mãe olhou firme nos olhos indagadores da filha. Buscando em mananciais ocultos a força para ser adulta, segura e racional, o que ela cada vez se sentia menos capaz de fazer, a mãe tentou tirar de sua própria dor alguma compaixão, alguma coragem para tudo explicar, algo que pudesse fazer retornar o filhote inseguro ao conforto do ninho.

- O corpo das pessoas se gasta, filha... Você vai vivendo, e passa o tempo, você tem doenças, tem desgastes, e aí chega uma hora que “paf!”, o coração pára de bater, o cérebro pára de funcionar, o corpo não aguenta mais. Aí...

Sem saber que sabia, a garota isso já compreendia. O corpo se gasta e as pessoas morrem. Era esse o porquê. Pensou na frágil criatura que acabara de ver no hospital, poucas horas atrás. A pele enrugada, trucidada pelo pisoteio cruel dos anos. As cicatrizes incuráveis gravadas pela faca do tempo, com lentidão, no corpo envelhecido. A voz rouca, baixinha, difícil, sussurada pela falta de ar. As pernas trêmulas, cheias de verrugas e veias à mostra, que mal sustentavam o corpo de pé. Algo que se apagava. O tempo, cruel entidade, apesar de totalmente inocente em sua maldade cega, gastara aquele corpo. Vovó ia morrer. Nada a fazer. O tempo, lento arquiteto da morte, nos levava os amados, e nos levaria também dos que nos amam, sem dúvida. Nada a fazer.

Sim, um dos porquês já havia sido elucidado: o “porquê objetivo” do espetáculo aterrorizante que havia visto à beira daquele leito de UTI, espetáculo terrificante que a ameaçava com a perda iminente de um ser querido. Sim, estava ali o porquê, todo entregue à compreensão: um corpo que se desgasta com o tempo e que, a certo ponto, pára de funcionar como uma máquina após excesso de trabalho. Simples assim!

Mas por detrás dessa explicação objetiva ainda se erguia o anseio por um outro porquê, um porquê "metafísico", uma questão que pairava no ar sem resposta e sem poder ser melhor exprimida por uma mente dotada de tão poucas palavras. Por que temos que morrer? Quem criou um mundo onde esse tipo de fenômeno é necessário, recorrente e inevitável? Por que não poderíamos habitar um outro tipo de existência de onde estaria excluída toda finitude e toda decadência e toda podridão? Por que o destino do corpo humano, de todos eles, é servir de alimento para vermes e formigas, apodrecer como comida estragada, desintegrar-se fedorentamente sem retorno possível? Qual o sentido, enfim, de nos arrastarmos pela vida, fazendo os mais variados esforços, lutando nas mais diversas frentes, conseguindo nos apossar das mais diversas coisas, às vezes até de certos corações, para no fim de tudo sermos empurrados no abismo, totalmente nus e despossuídos? Enfim, o fato da morte era algo perfeitamente explicável por causas objetivas, mas a pergunta era outra: qual o sentido?

Meio sem saber o que pensar, a garota pediu ajuda, de novo, insistindo na mesma questão, incapaz de formulá-la melhor:

- Mas por quê? Por quê?

A mãe, já bastante ferida naqueles dias, irritou-se com a inadequada teimosia da criança. Pra quê ficar lembrando, remoendo, reapertando, como um sádico espírito que sente prazer em torturar? A pergunta, simples, lacônica, inocente, batia pesadamente em sua porta com pancadas secas, impacientes e angustiadas - e exigia uma resposta, um consolo, um calmante. Aliás, uma mãe não tem como uma de suas missões esclarecer os mistérios que surgem, iluminar o caminho dos filhos pelas vielas sombrias do mundo, andar atrás das crianças com uma lanterna que desfaz as fantasmagorias com o jato de luz? Não era seu papel fazer do mundo um ninho confortável para a criaturinha frágil que trouxera ao mundo? Era sua obrigação explicar. Mas o que dizer? Sabia ela por quê? Deveria mentir?

- São coisas da vida... - foi tudo que pôde murmurar.

A garotinha, ensimesmada, ficou momentos em silêncio digerindo a resposta. Coisas da vida... De novo se chateou: não era uma explicação muito convincente, pensava a garota, que continuava com um desagradável vazio dentro de si, um pequeno vácuo de incompreensão e temor. Era como vislumbrar, pela primeira vez, um buraco monstruoso se abrindo no meio do mundo, um vão absurdo e enigmático que não conseguia compreender. Coisas da vida... mas que coisas eram essas, assim tão vagas, tão nevoentas, cuja esquisitice até machucava? Então era isso, isso era todo o jogo, o porquê inteiro? Tudo se acabava, e era só isso, só uma coisa da vida, e ficava por isso mesmo? Desesperados, os olhinhos pequenos fitaram os grandes olhos úmidos da mãe, clamando por direção, por abrigo, por luz na recém-chegada escuridão.

- Não entendo... Sei que a coisa acontece assim, mas por quê acontece assim?

Ferida, despedaçada, a mãe olhava para a filha com uma ira mesclada com ternura, irritada com aquela insensata repetição de questionamentos mas ao mesmo tempo cheia de carinho por uma criatura que fazia somente o que estava a seu dispor: ou seja, não entendia. E a razão não era a falta de competência intelectual, de experiência de vida ou de capacidade sensitiva para compreender: não entendia pois a coisa não era entendível. O que a mãe via à sua frente, afinal, era outra pessoa, muito parecida com ela mesma, também ferida e perdida, batendo a cabeça contra um problema aparentemente insolúvel que se recusava a revelar seus mistérios... Quis gritar raivosamente, mandar que a filha calasse a boca, que parasse com aquelas perguntas, que cessasse a tortura, mas sentia-se no dever de explicar. Mas como? O que dizer?

Poderia muito bem começar novamente a falar sobre Deus, sobre a indestrutibilidade da alma, sobre o paraíso e a imortalidade dos homens... já havia muitas vezes catequisado sua filha antes e sabia dos poderes consoladores de tais idéias. Mas de uma maneira estranha, quase nunca antes sentida, se sentiu errada, achando que se tornaria uma traidora ao vender certezas que, no fundo, não tinha. Olhava para aqueles olhos já quase chorosos, e queria consolá-los com a idéia de Deus e com a convicção de uma vida que era no fundo cheia de sentido, mas sentia que amava demais aquele serzinho para fazer isso. Amava demais sua filha para mentir. O que fazer nesse labirinto? E como alguém que, andando numa estrada, subitamente perde as forças para continuar e abandona seu peso ao solo, tudo que a mãe pode fazer foi chorar. Por si mesma, pela filha, pelo mundo que ambas não entendiam. Pela incapacidade de ambas de se protegerem da angústia detrás do escudo da ilusão. Pela vida que se esvaía num hospital distante (e tão próximo!) e que as dilacerava por dentro, emoção e razão...

Pela primeira vez desde o início do diálogo, a filha compreendeu claramente alguma coisa. Aquela água azeda que se derramava dos olhos da mãe, enxurrada acompanhada por soluços e gemidos, deixava muito claro que mamãe não sabia, que estava no mesmíssimo buraco, olhando para a vida e inutilmente procurando um sentido para o nascer, para o morrer, para tudo entre eles... Aquelas lágrimas da mãe eram uma confissão de ignorância, um explícito "não sei" caindo pesadamente sobre as esperanças do filhote, que esperava grandes coisas, respostas mágicas, reinos de magia...

A morte seria como uma ponte dourada e brilhante que nos levaria para outro lugar tão melhor e tão vazio de dor... ou o momento onde os anjos desceriam para a Terra e a levariam em suas asas para a moradia celeste... ou então era o momento em que se podia finalmente repousar no colo de Deus, como adentrar num Segundo Útero, desta vez sem a possibilidade de ser de lá evacuado por um nascimento criminoso... A morte seria nada mais que o parto luminoso de uma alma... ou então...

Mas não, ela agora sabia que não ia ouvir nada disso, que sua mãe desistira de consolá-la com mitologias baratas, que a preparava para a dureza do real e a dureza do futuro... A sabedoria da mãe, incalculável e inextinguível, também apagara. Aquela mulherzinha, sua mãe, agora tão frágil e humana, aparecia a seus olhos como qualquer outra pessoa: quase afogando-se num mar de desconhecimento. E a filha sentiu a dor terrível da lucidez, a vertigem quase insuportável de perceber uma fraqueza comum. Percebeu que estava sozinha, sem ninguém para responder-lhe nada, tendo que trilhar seu próprio caminho. Algo se rompera ali: uma confiança outrora sempre presente, um abrigo outrora sempre seguro. Tacada ela também ao mar de incompreensão, percebeu que teria que nadar, nadar até o fim, sem a certeza de que havia uma ilha, tentando entender, em outros lugares, com outras pessoas, talvez inutilmente... O poço de respostas tinha secado.

A mãe, percebendo que nada mais havia a fazer, deu um beijo leve na testa da filha e, ainda chorando, apagou as luzes e saiu do quarto.