domingo, 22 de outubro de 2006


da série: FILMES DA 30ª MOSTRA DE CINEMA DE SP


"OLHE PARA OS DOIS LADOS" (Look Both Ways), de Sarah Watt [Austrália, 2006, 110']. Nem é por vontade de começar esse texto - e com o pé esquerdo! - com um comentário machista, mas o lance é que só agora me dei conta de como é raro a gente ouvir falar de uma mulher cineasta, de responsa e de talento, que tenha marcado a história da sétima arte... Vasculhei essa minha mente de cinéfilo, lotada de nomes de grandes diretores, viajando de década a década, e voltei quase de mãos vazias desse passeio pela memória: só achei Sofia Coppola, Samira Makhmalbaf, Carla Camurati... e ninguém mais. Será o meu conhecimento cinematográfico que é muito raso, minha memória que tá má de saúde ou é verdade que as Grandes e Geniais Diretoras Mulheres estão quase que completamente ausentes da história do cinema? Qualquer dia googleio um "great female directors" pra ver o que sai - agora tô ocupado escrevendo isso aqui...

Mas a coisa parece estar mudando. 2006 já nos entregou dois grandes filmes realizados por garotas (e o novo da Sofia tá chegando aí...): o adorável Eu, Você E Todos Nós (Me And You And Everyone We Know), estréia da artista plástica americana Miranda July como diretora, roteirista e atriz, e esse igualmente magnífico Olhe Para Os Dois Lados, da australiana Sarah Watt. Pela primeira vez eu tô realmente sentindo firmeza na mulherada cineasta no cinema - e é bom ficar de olho nessas duas novas e talentosas moças, que tem tudo para nos darem, no futuro próximo, filmes pra calar a boca de qualquer "machista cinematográfico"... :)

Não que o fato de ser uma mulher quem está no comando do leme seja tão fundamental assim neste Olhe Pra Os Dois Lados, um filme que não tem nada a ver com coisas como discursos feministas, análises históricas da opressão da mulher ou temáticas relacionadas à "guerra dos sexos". Sarah Watt fez um drama semi-cômico, simples e singelo, realista e tolerante, aparentemente pouco ambicioso, centrado no cotidiano, e que trata com muita sensibilidade e leveza assuntos altamente mórbidos - desastres, mortes, lutos e tentativas de suicídio, entre outras coisas. E que, como "comédia romântica", consegue ser bastante original, pontuando a relação dos pombinhos com silêncios, momentos de timidez e diálogos saborosos. Sem falar que tem uma das cenas de sexo mais bizarras e lotadas de humor negro que eu já tive o prazer de ver...

A morte está em todo lugar neste Olhe Para Os Dois Lados, rodeando como uma assombração as vidas desses personagens, aparecendo dezenas de vezes na tela, como se aquela velha dama vestida de negro e carregando uma foice tivesse sido escalada aqui como uma das personagens principais - o que "ela" é. Tanto que eu até fiquei com a leve impressão de que o filme de Sarah Watt pudesse ter tirado um pouco de inspiração de A Sete Palmos (Six Feet Under), o genial seriado criado por Alan Ball (o diretor de Beleza Americana) e que também tem essa marca característica: retratar relações humanas de um jeito bem pé-no-chão e sempre com a morte onipresente dominando o "pano de fundo". Eu, que considero Six Feet Under uma das melhores coisas que já existiu na televisão (em todos os tempos!), não preciso nem dizer o quanto me empolga que filmes - e ótimos filmes! - estejam sendo filmados com temática semelhante.

A morte, de um jeito ou de outro, está ultra-presente na vida de todos os personagens principais do filme de Sarah Watt, mas o destaque supremo, claro, é para o casalzinho que vai protagonizar essa tragi-comédia: o fotógrafo Nick (William McInes, que é a cara do Magáiver!), que logo nas primeiras cenas descobre que está com câncer (lembrei na hora do enredo de O Tempo Que Resta, o mais recente filme do François Ozon) e a pintora Meryl (a lindinha Justine Clarke [foto abaixo]), que acabou de enterrar o seu pai.


Além de funcionar bem como um drama semi-cômico envolvente e sensível, com pitadas certeiras de humor e uns trechos de animação muito bem inseridos no conjunto, consegui enxergar no filme, meio escondida, uma "profundidade" notável - principalmente por colocar os dois personagens principais, os dois apaixonados, numa espécie de "dilema existencial". Me explico: os dois se conheceram, meio que se apaixonaram, dormiram juntos e estão prestes a começar uma relação que promete ser das boas. O problema, é claro, é que o cara está com câncer e pode não ter muito tempo de vida pela frente - e ela, durante grande parte do filme, não sabe disso.

Do lado dele, o dilema é: conto ou não conto? A verdade poderia fazer com que ela se afastasse, rompesse a relação, pelo desejo de não se envolver com alguém que ela sabe que irá perder... Para ele não seria melhor manter o segredo e aproveitar ao lado dela, numa boa, os últimos momentos felizes de sua vida? Mas até quando ele poderia manter isso escondido? E seria justo e leal omitir uma verdade desse tipo?

Já do lado dela, o problema não é menos complicado: valeria a pena começar uma relação com um condenado à morte? Teria algum sentido criar um laço forte com alguém que em pouco tempo seria levado embora pela doença? Pra quê criar um vínculo que teria que ser irremediavelmente rompido?

Sei que entregar fim de filme é uma das únicas coisas que um jornalista cultural não pode fazer de jeito nenhum, dizem... se não quiser ser xingado e linchado pelos leitores! Eu pelo menos aviso: PAREM DE LER agora se não querem ter a surpresa estragada... mas pra que eu explique porque gostei tanto desse Olhe Para os Dois Lados, porque saí do cinema alegre e com a sensação de ter recebido uma lição de vida totalmente afirmativa e reconfortante, tenho que falar algumas coisas sobre como as coisas acabam. Não tem jeito de dar uma opinião sobre um filme sem comentar o final.

Pois bem: o público sedento por um final feliz, com beijo na boca melado no meio da tempestade, vai ganhar o que pede e sairá do cinema contente - mesmo que a diretora, com uma sutilidade brilhante e sem nenhum gosto pelo melodrama fácil, nos lembre que a doença do moço fará com que esse caso de amor esteja condenado a não durar. Mas, afinal de contas, e isso é o mais bonito aqui, eles escolhem o amor, mesmo na iminência da morte, mesmo rodeados pela morte, mesmo atolados num imenso lamaçal de morte, talvez porque saibam que é exatamente por isso - pelo fato de a vida estar totalmente impregnada com a morte... - é que o amor é imensamente necessário e vital. Sim, ela sabe que vai perder o seu amado, que vai vê-lo adoecer, que vai testemunhar seu estado de saúde deteriorar, que vai ter que, no final de tudo, suportar a perda e o luto... Mas ainda assim diz sim.

Por quê? Talvez porque, amiguinhos, se só fôssemos nos entregar ao amor se tivéssemos a certeza de que ele seria eterno, provavelmente não nos entregaríamos nunca - pois quando é que essa certeza existe? E quando é que existe sem nenhum sinal de dúvida? Pior ainda: o que existe, quase sempre, é a certeza contrária: a certeza de que ele, o amor, vai acabar, cedo ou tarde, por morrer. Mas mesmo assim... não valerá a pena? Vale a pena amar alguém, sabendo que ele vai morrer? Vale a pena se entregar a um amor, mesmo sabendo que o sentimento provavelmente irá se modificar, se transformar, talvez murchar, talvez morrer? Eis a questão.

Conheço poucos finais de filmes românticos mais bonitos do que esse (ok: pau a pau com o desfecho do Antes do Pôr-Do-Sol, do Richard Linklater, e do meu adorado O Raio Verde, do Eric Rohmer). Esse "sim!" consumado entre os dois, esse "sim!" que surge mesmo na certeza de que o amado está prometido à morte... Por quê? Porque no intervalo que ainda resta, nesse meio-tempo de sobrevivência, enquanto a foice ainda não desceu para cortar cabeças, eles sabem: o amor é a única coisa que vale a pena. Mesmo com o sofrimento e a certeza de derrota final.

E quem foi que disse que o amor é só delícia? Que ingenuidade... Ela sabe sim que vai sofrer; sabe que vai ser terrível ver o amado sendo devorado pela doença; sabe quão difícil vai ser o luto... e mesmo assim, diz sim! Porque quem tem muito medo de sofrer, tem muito medo de amar... e quem tem muito medo de amar, provavelmente nunca vai viver uma vida digna de ser vivida. E é isso que esse adorável casal de Olhe Para Os Dois Lados parece ter descoberto tão bem: que a morte está em todo lugar, que a morte é sempre possível, que ela está de tocaia em cada esquina e detrás de cada porta, mas que o medo dela não pode nos impedir que a nossa entrega à única coisa que faria a vida, mesmo que curta, valer a pena: o amor.

É preciso dizer "sim!" - e o "sim" deles nos enche de vida e de vontade de dizermos sim nós também.

(9.2 / 10.0)

AINDA DÁ PRA VER...
Na Terça, 31/10, 22:00, no Unibanco Arteplex II (R. Frei Caneca)

CAMINHOS ALTERNATIVOS...
ROTTEN TOMATOES - VARIETY - SITE DA MOSTRA