domingo, 24 de agosto de 2008

:: Dossiê Maiakóvski - versão sem cortes ::

UM CORAÇÃO INCENDIADO

- Vida e obra de um dos mais importantes poetas do século 20, Vladimir Maiakóvski, recebe nova luz com o lançamento da biografia O Poeta da Revolução, de Mikhailov

Uma tempestade de lirismo. Um coração em chamas. Um iconoclasta selvagem. Um rebelde trágico. Um coquetel molotov humano. São essas apenas algumas imagens que vêm à mente para descrever Vladimir Maiakovski (1893-1930), poeta que só precisou de 37 anos de vida para transformar-se num dos mais importantes renovadores da arte poética no século 20.

Poucas vozes soaram com mais beleza, mais poder e mais repercussão do que a dele nos primeiros anos da Revolução Russa, que ele abraçou com ardor e louvou em versos imortais. O leitor brasileiro tem agora a chance de mergulhar fundo na vida e na obra desse gigante da poesia com o lançamento da biografia O Poeta da Revolução, de Aleksandr Mikhailov, lançado pela Editora Record (560 páginas, R$ 68) e traduzido por Zoia Prestes (filha de Luis Carlos Prestes).

Maiakovski foi uma personalidade controversa, provocativa, extremada. Testemunhas oculares chegaram a descrever seu surgimento assim: “como se um hipopótamo chegasse numa loja de louças e aprontasse excessos messiânicos...” (como disse Kniazev). Roberto Goldkrin, no prefácio de Como Fazer Versos, o descreve como "um ser contraditório e fascinante, que ao mesmo tempo que destronou a poesia e o poeta do alto de um Olimpo elitista e classicizante, elevou-se a dimensões aquém dos formulários e especificações do fabricante”. Já Boris Schaiderman, professor de língua russa na USP e autor de A Poética de Maiakovski, descreve-o como uma criatura “vibrante e polêmica, toda agressividade e ímpeto”. E o próprio poeta descrevia-se como alguém em quem a anatomia enlouqueceu:

nos demais - eu sei,
qualquer um o sabe –
o coração tem domicílio
no peito.
comigo
a anatomia ficou louca.
sou todo coração –
em todas as partes palpita.


Seja à frente da vanguarda futurista, trabalhando em revistas de esquerda, fazendo propaganda para o Estado ou se derramando em efusões líricas, Maiakovski se entregava a tudo com extrema intensidade. “Na força e na fraqueza, ele surgiu como um homem que se entregava a tudo de corpo e alma. A nenhuma idéia, a nenhum trabalho ele se dava pela metade”, diz Alexei Bueno.

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NUMA ENCRUZILHADA HISTÓRICA

Maiakovski foi “um daqueles artistas aparecidos em momentos dramáticos, em encruzilhadas decisivas da história humana”, como comenta Alexei Bueno no prefácio do livro. Uma certa má fama o acompanha ainda hoje, apesar de ter sido canonizado postumamente pelo regime soviético e reconhecido como um dos mais cruciais inovadores artísticos do século passado. Isso porque uma fatia significativa da obra de Maiakovski foi feita com fins propagandísticos e panfletários: cartazes, slogans e poemas escritos sob encomenda e destinados ao louvor do comunismo soviético e seus líderes (especialmente Lênin, glorificado em versos que desenham sobre ele uma “auréola de santidade”).

“A vida de Maiakovski se desenvolveu num período de entusiasmo irrefreável, de crença plena no futuro, herança da ideologia do progresso cultivada durante todo o século 19, de sofrimento e de decepção trágica”, comenta Alexei Bueno. Um tempo em que as utopias ainda pareciam concretizáveis. Os amanhãs cantavam, sorridentes, no horizonte. A era dourada do comunismo estava chegando, acreditava-se...

E Maiakósvki é a encarnação perfeita desse estado de espírito. Como um adolescente, ele era todo “impaciência para se livrar o mais rápido possível dos obstáculos – grandes e pequenos – no caminho rumo ao futuro maravilhoso”, comenta Mikhailov. Maiakóvski é este poeta revoltado, agressivo, inflamado, que segura a caneta como se fosse uma metralhadora. Seus inimigos? Muitos: a exploração da classe operária, a arte desengajada, os hábitos pequeno-burgueses, os últimos estertores do czarismo e a alvorada sombria da burocracia totalitária.

“Maiakovski transfere toda a força de negação para a sociedade burguesa. Nela vê o mal que degrada a moral e a própria idéia da arte”, comenta Mikhailov.
“O ‘abaixo!’ de Maiakovski era um gesto característico do russo rebelde, estivesse ele pegando em machado, em tocha ardente de incendiário, ou em bomba caseira – e expressava sua prontidão de ir para a batalha e morrer.”

O plantio generoso de sementes revolucionárias, tão em voga na Rússia do começo do século 20, encontrou terreno fértil na mente de Maiakovski. Como diz Alexei Bueno, “o poeta incita à rebelião e está pronto para marchar na primeira fileira dos rebeldes”. O próprio Maia se reconhecia como um perigo à ordem constituída: “O nariz capitalista farejava em nós a dinamite”, escreveu. E em vários poemas conclamou um levante, vendo na revolução a “musa de todas as musas”:

Retirem as mãos vagabundas das calças
Peguem a pedra, a faca ou a bomba,
E aquele que não possui mãos –
Venha e lute com a testa!


Poeta das massas, abandonou a torre de marfim para descer ao meio das turbulências sociais. “É necessário partir em mil pedaços a fábula da arte apolítica!”, reclamava. Maiakóvski escrevia sempre centrando fogo na transformação concreta da vida das multidões. Para ele, a poesia não é menos bela por ser útil.

Quando os bolcheviques concretizam sua “grande heresia” e tomam o poder, Maiakovski aplaude com entusiasmo e se entrega ao posto de poeta da revolução, engajadíssimo em fazê-la perseverar e vencer. “Ao encontro de Outubro de 1917, Maiakovski caminhou de peito aberto”, comenta Mikhailov, “pois não assumira, como significativa parte da intelectualidade russa, compromisso com as tradições e outras ligações com a velha cultura. Por isso, quando aconteceu a Revolução, pôde com toda sinceridade dizer: ‘A minha revolução’.”

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ESCÂNDALOS FUTURISTAS

Maiakovski confiava na “inevitável derrocada das velharias” e estava engajado na tarefa de varrer o quadro cotidiano das ruínas do passado, dando passagem ao novo. O grupo dos futuristas russos, que reunia poetas, escritores e artistas plásticos, chegava para bagunçar o coreto russo: “Somos pessoas da nova e moderna humanidade, somos os mensageiros da verdade, os pombos da arca do futuro!”, dizia Burliuk, um dos líderes da vanguarda, ao lado de Maiakovski. “Somos obrigados a abrir uma nova vida à faca no ventre do burguês!”, concluía.

Não é surpresa que o futurismo tenha sido apedrejado e difamado sem dó pelos detratores, tamanha a radicalidade de suas posições. Eram acusados de ter uma relação niilista com a cultura clássica, de não possuírem uma base teórica sólida ou de serem meros arruaceiros ou polemistas. O manifesto futurista, chamado “Bofetão no bom gosto literário”, era mesmo extremista. Mandava, por exemplo, “atirar fora Puchkin, Dostoievski e Tolstoi do Navio da Modernidade!”

O escândalo foi grande. Como seria se, imaginem, algum jovem grupo de artistas brasileiros conclamasse a jogar no lixo as obras de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Burliuk se justificava:
“Não desejamos virar para trás nossas cabeças, quebrar nossas vértebras cervicais para olhar a poesia com naftalina dos perversos!”

Em mil palestras e eventos através da Rússia, quase sempre causando ruidosas polêmicas e chamando a atenção da brigada de polícia, os futuristas colocaram em ebulição a cultura russa. Maiakovski, vestido com sua clássica blusa amarela e sua cartola, às vezes com colheres de pau e outros apetrechos bizarros na lapela, atacava tudo o que fosse “bonitinho”, comportado e mofado.
Se a vida sócio-política já estava conturbada, só ficou ainda mais transtornada com o levante futurista no ramo das artes. “No momento em que eram destruídas mansões, queimadas bibliotecas, derrubados outros monumentos da cultura, o poema de Maiakovski que conclamava a atacar os clássicos e a transformar o Palácio de Inverno numa fábrica de macarrão jogou lenha na fogueira da tempestade em curso”, narra Mikhailov.

Mas “a ênfase na negação, dada pelos futuristas, não deveria interferir na percepção da tendência para a renovação”, lembra Mikhailov. Apesar das idéias destrutivas em relação à herança cultural, Maiakovski era um grande conhecedor da literatura clássica: declamava de cabeça poemas de Puchkin, tinha gabarito para discutir Tchekov e admirava figuras literárias de peso como Pasternak, Gorki e Blok.

De fato, não se tratava de uma relação niilista ou bárbara com os grandes autores do passado: “ele ouvia a voz viva dos clássicos, mas negava as imposições dos seus cânones para a arte do seu tempo”, sugere Mikhailov. Ou, como o próprio Maia dizia, “Eu vos amos, mas vivos, não como múmias.” Além disso, como comenta Boris Schanaiderman,
“é impressionante a aparente contradição entre o futurista iconoclasta, que se voltava com furor contra os clássicos, que pregava a destruição de museus e pinacotecas, e o respeito que votava à tradição popular, à arte russa mais antiga...”

A paixão pela modernização também marcou o futurismo. Maiakovski, que tinha passado a infância nos ermos da Geórgia, estava deslumbrado com a vida urbano-industrial de Moscou e via com empolgação a perspectiva da total urbanização (sem prever as catástrofes ecológicas que isso poderia causar). Ficou refletida na estética futurista essa paixão pela tecnologia e por todos os signos do mundo do amanhã: “Telefones, aeroplanos, expressos, elevadores, máquinas rotativas, chaminés de fábricas, os arranha-céus de concreto, a fuligem e a fumaça – eis os elementos da beleza na nova natureza urbana. Vemos mais freqüentemente a lâmpada elétrica do que a romântica lua”, comentou o poeta. E ele complementa: “O que é a beleza? A nosso ver é a vida viva da massa urbana, são as ruas pelas quais correm os bondes, são os automóveis, os caminhões refletindo nas janelas espelhadas e nos grandes anúncios das lojas. A beleza não é a lembrança de velhinhas e velhinhos, é uma cidade-mestre moderna, que cresce para os céus, que fuma com as chaminés das fábricas, que entra pelos elevadores.”

Maiakósvki, além da vinculação óbvia com o futurismo russo, possuía várias semelhanças com o teatro político de Piscator, com a abordagem cubista das artes plásticas, com certos elementos do surrealismo de Breton, com concepções estéticas Brechtianas (“um apelo constante a um teatro de massas, épico, anti-psicológico, satírico quando necessário”, como diz Schanaiderman) e com o próprio futurismo italiano de Marinetti. Foi um artista-múltiplo e um escritor versátil, que deu palestras, escreveu peças de teatro e participou de filmes (num momento notável da cultura russa, que via nascer ainda o cinema de Einsenstein e Dziga-Vertov).

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NAUFRÁGIO DE UM IDEAL


Mas esse poeta de coração ardente e impaciente não poderia mesmo durar muito tempo e virar uma das “velharias” que tanta energia pôs em combater. “Não tenho nenhum fio grisalho em minha alma!”, escreveu ele numa poesia. Quando deu um tiro no próprio peito, em 1930, aos 37 anos de idade, pôs um sangrento ponto final em um destino trágico e belo. 150 mil pessoas passaram na frente de seu caixão nos 3 dias em que ele ficou exposto. A União Soviética chorava a morte precoce de um de seus maiores poetas. Seu ato, até hoje, permanece misterioso. Mas extremamente emblemático deste que foi um dos mais importantes acontecimentos históricos do século 20: a Revolução Russa.

Nos seus últimos anos de vida, Maiakovski parece ter chegado a uma cruel encruzilhada – ele que sempre que as enfrentou de peito aberto e palavras em punho. Mikhailov, em sua biografia, arrisca uma especulação magistral a respeito das frustrações de Maiakovski:

“Em tudo o que ele escreveu durantes estes anos, de um lado, estava a glória à Revolução, e do outro, a sátira sobre a sua continuação. O mundo realmente, como afirma Heine, partiu-se em duas metades e a rachadura atravessou o coração do poeta. (...) Sobre a mesa do escritório, bastava levantar a cabeça, estava a fotografia de Lênin, que continuava a personificar para Maiakovski o ideal de líder e de ser humano, a sua crença. Já nos corredores do poder encontra pessoas bajuladoras, burocratas, corruptas e pomposas. (...) É muito significativo que associe o seu ideal somente àqueles que já estão mortos e a nenhum dos vivos.” Já em 1926, quatro anos antes de seu suicídio, “Maiakovski percebe que o nepotismo, a corrupção, a mesquinhez, a burocracia perpassam a nova sociedade de cima para baixo. (...) Percebe que estavam sendo traídos os ideais de Outubro. (...) No coração precipita-se a amargura que minava a crença na justiça social, na vida...”

Aí talvez esteja uma das chaves para entender o porquê de sua escolha final pela morte: ele havia chegado a uma trágica bifurcação. De um lado, uma vida inteira dedicada à Revolução, à glória de Lênin e ao engajamento na construção do socialismo; de outro, o surgimento do espectro do stalinismo, que trazia a ditadura, a burocracia e o eclipse da Utopia. “Nessa fenda, nessa ‘rachadura’ entre a crença e a decepção podia ter surgido a crise espiritual como premissa da tragédia”, conclui Mikhailov.

O poeta, que oscila entre a poesia de exaltação à revolução e os versos líricos de amor e dor, volta-se também para a sátira e o ataque como forma de “negação das anomalias do novo poder, as deturpações dos ideais da Revolução.” Mas o processo de corrosão da utopia parece ter sido mais forte do que o ímpeto que ele e tantos milhares tinham de conservá-la viva. “
Maiakovski ainda guardava no coração os ideais da Revolução. Vivenciou seu triunfo, celebrou seu líder e seu povo. Um povo que sofreu grandes perdas em nome de um novo sonho, um sonho mais justo e uma vida mais bela”. Mas Mikhailov é peremptório em seu diagnóstico: “Maiakovski, porém, não viu sua real implementação. Tudo se revelou frustrante, contrariando as expectativas... a tragédia de perda do ideal”.

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O AMOR É O CORAÇÃO DE TUDO

Além do naufrágio da utopia frente ao crescimento da burocracia e do totalitarismo stalinista, mais um peso descomunal pressionava sobre os ombros do jovem poeta. Tanto que, na nota de suicídio, tornou-se inesquecível uma frase lapidar: “O barco do amor espatifou-se contra o cotidiano”. As paixões de Maiakovski, principalmente Lília Brik e Tatiana Ivanovna, nunca conseguiram saciar seu coração faminto. Ele, que escreveu algumas das mais pungentes poesias de amor que conhecemos, provando que é possível cantar em louvor à amada e à revolução com a mesma garganta, acabou entrando em desespero por não conseguir, neste mundo, abocanhar sua fatia de amor

“Será que Maiakovski, esse grande rebelde e guerreiro quase de nascença, que desafiou o próprio Deus, era uma pessoa tão fraca que por ciúme estava pronto para dar um tiro na cabeça, ingerir veneno ou arrebentar a cabeça nos paralepípedos da avenida Nevski?”, pergunta, provocativo, o biógrafo Mikhailov. Ah, mas não devemos subestimar o poder devastador que a rejeição da mulher amada pode causar no coração de um homem! O próprio Mikhailov, descrevendo como Maiakovski tentava lidar com o sofrimento do amor não correspondido por Lília Brik, diz: “todas as tentativas de reanimação assemelham-se à tentativa de colar uma louça de porcelana quebrada em mil pedaços”.

Em uma das inúmeras cartas a Lília, diz o poeta: “O amor é vida. Isso é o mais importante. Dele se originam os poemas, o trabalho e todo o resto. O amor é o coração de tudo. Se ele interromper o seu trabalho, todo o resto morre, faz-se excessivo, desnecessário. (...) Sem você (não é o sem você ‘em viagem’, mas interiormente sem você) não há vida.”

Quando Iessiênin, um dos maiores poetas russos, suicidou-se em 1926, com sérias repercussões sociais, Maiakovski se debruçou sobre esse ato extremo tentando criar uma poesia que neutralizasse o efeito mórbido que isso gerou no cenário cultural. “Para que aumentar o rol de suicidas?”, perguntava-se ele. Mas, poucos anos depois, esmagado sob o peso da utopia que se esfarelava e do amor que não chegava, buscou no sono eterno o descanso para um percurso terrestre que foi, de fato, cansativo. Por ter sido intenso, extremo, inflamado, contraditório - e apaixonante. Maiakovski, esse verdadeiro esbanjador de palavras preciosas, que sempre teve uma bandeira de luta hasteada no solo de seu coração incendiado, saiu com estrondo do mundo para entrar, também estrondosamente, na História. Como o mais legítimo poeta da revolução.


OBS: n'O Grito!, fiz um resumo desta Ópera Maiakóvski... Confiram!