quinta-feira, 21 de agosto de 2008

:: relatório médico - meus pulmões na UTI ::


"oh, the way i feel tonight...
i could die that i wouldn't mind."

JESUS AND MARY CHAIN

querido diário, guentaê que hoje teu ouvido fica vermelho de ouvir meus reclamos.

eu pensei que tava curado, que a gripinha tinha sido exterminada, que não faria mal algum tomar uns gorós em comemoração às minhas duas dúzias de verões, completadas no último domingão. dia simpático de rolê na bienal, show do crésh cover, obras-de-arte moderna com batatas-fritas, presentes singelos, pessoas queridas e... álcool guela abaixo em hora indevida.

isso, bestalhão, bebe mesmo. enche a cara de breja gelada no níver, se achando o super punk. vira o resto de pinga mesmo. fontes confiáveis já me tinham dito que conhaque faz um bem danado pra tosse - e por que outras bebidas similares não fariam? álcool é benéfica assepsia na garganta, pensei eu, espertalhão.

isso, otário, fica dando uma de alcóolatra pra você ver o que é bom pra tosse. agora nem coquetel de drogas - resfenol, apracur, benegripe, xarope benalet, pastilinha vik vaporub e aspirina c (cuidado com a overdose!) - resolve o estrago. como manda a lei de murphy, numa recaída você sempre cai mais embaixo do que estava antes da mera caída. e como é que fica agora, para cantar a serenata do amor platônico para a pequena rockabilly dos cachos azuis, hein? versão bob-dylan, toda fanhosa? vai ter que ser. e esse cof cof cof ad aeternum, agora vai dar onde: só restará cantar um tango argentino?

o maior porre de água da minha vida. expandindo os excessos na beberagem a domínios antes inimagináveis. tentando lavar todo o catarro de dentro de mim. ontem eu tava tão congestionado que o treco começou a sair até pelos zóio. ficou tão vermelhão que acharam que eu tava com conjuntivite. acordei praticamente vomitando uma gosma amarelada-amarronzada que entraria fácil no filme do zé do caixão. queria que houvesse uma aspirador de pó que você metia na boca e que faria na hora uma faxina das vias respiratórias. o que eu mais quero no mundo nesse exato momento é simplesmente voltar a respirar.

a gente só lembra que tá de sapato quando ele tá apertado ou com pedregulho. e eu só me lembro do quanto eu adoro a saúde quando estou doente. e o que mais me revolta, desde a infância, é que ela, a doença, vem quase sempre imerecida. acho que eu quase nunca consegui acreditar, em nenhuma doença que já tive que suportar, que ela era o merecido castigo por algum pecado meu que as autoridades universais tratavam de punir com tais extremismos disciplinatórios. além do mais, no universo acho que nem existe um presidente, um gerente, um bã-bã-bã. o universo é mais caótico que a gotham city do chris nolan. prova disso são as doenças: sempre me pareceu que elas não passam de agressões gratuitas contra um pobre inocente. quem acredita em Deus é só porque nunca foi visitar a sessão infantil de uma U.T.I. ou nunca viveu numa cidade atacada pela peste. ou fecha os olhos para o fato de que existiram campos de extermínio em massa, de judeus e de muitas outras pessoas, e o Senhor Papai do Céu, Cheio de Autoridade, não mexeu um dedinho de sua mão impotente para impedir. me revolta tanto.

um doente em vão se pergunta: "que fiz eu para merecer esse meu estado lastimável? agredi alguém com palavras ou atos? fiz alguma diabólica maldade de que não me lembro? na minha fantasia, terei desejado alguma nojeira, pensado em fazer alguma crueldade, cometido algum impensável crime do pensamento?" inútil perguntar pelo sentido. seria superstição demais achar que é preciso que haja uma culpa prévia que a doença pune. por que a Natureza não seria de uma violência sem nexo?

o único "sentido" da doença é: você respirou ou comeu o micróbio ou bactería errados, e seu corpo não soube matar o invasor a tempo. Agora, no seu interior, os exércitos marcham para o combate: os anticorpos e os forasteiros imperialistas se digladiando. Uma batalha épica apesar de microscópica. Se não me engano, o catarro é um imenso rio de cadáveres de bichinhos degolados pelos nossos vigilantes e fiéis escudeiros do sistema imunológico. e a gente vai sepultando os mortos em massa na cova branca do papel higiênico.

claro que há doenças imputáveis à insensatez e falta de prudência do indivíduo, que saiu mau-agasalhado na friagem, bebeu gelado quando não devia, trepou sem proteção, regalou-se com dietas excessivas ou não se preocupou muito com cuidar do seu corpitcho como fazem os fúteis, os bombadões e as nutricionistas. mas muita doença não passa de uma amarga prova do quanto a natureza pode ser incrivelmente filha-da-puta. a cadeia alimentar. um monte de bichinhos que ficam se entredevorando. oceanos de sangue. guerra civil entre organismos. um horror. a natureza é mais capeta que o coringa.

no meu atual caso, porém, reconheço minha culpa no cartório. pela primeira vez na vida estou me sentindo justamente punido por atos de imprudência alcóolica. mas, como diz um sábio provérbio russo, "o vinho é inocente; a culpada é a bebedeira...".

mas concorco com maiakóvski:

"MELHOR MORRER DE VODKA QUE DE TÉDIO."

cof! cof! cof!