"Meu mal é ter um sonho maior e mais forte do que posso suportar. Ai dos que pensam no que não têm! Têm razão, mas razão demais, por isso são fora do comum. Os simples, os fracos, os humildes passam despreocupados pelo que não é para eles; roçam em tudo, em todos, em todas, sem angústias (além do mais, essas pequenas almas desejam pequenas coisas, minuto por minuto!). Mas os outros, mas eu!
Infelizmente não aprendi apenas essa simplicidade terrível... meu desejo se agrava e se amplia; gostaria de viver todas as vidas, pesar em todos os corações, e parece-me que o que não é para mim se vai de mim, que estou só, abandonado.
Amo como se fosse bom demais.
O infinito não é o que se pensa. Costumam colocá-lo na alma poética de algum herói de lenda ou obra-prima; fantasiam-no como se fosse um traje de teatro, a tumultuosa exceção de algum Hamlet romântico... O infinito vive mansamente naquele homem cujo reflexo incerto o vidro da vitrina há pouco me devolvia; em mim, tal como me encontram com minha fisionomia banal e meu nome ordinário; em mim, que queria tudo o que não tenho... Pois não há motivo para que isso acabe: prossigo, assim, passo a passo, na pista do infinito, e esse errar sem horizonte é comparável aos astros do firmamento."
(HENRI BARBUSSE, Inferno, pg. 68.)
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Hoje sonho com tristeza e preocupação, querendo logo cortar minhas asinhas, sofrendo de romantismo como quem pega uma gripe - e espirra, espirra com força pra ver se limpa o catarro! "Meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio", diz o Pessoa. Os meus também me são bastante inúteis. Não só não me protegem das intempéries, como também fazem com que chovam sobre minha pobre carcaça as tempestades de pedra das desilusões. Hoje meu grande sonho é não sonhar.
Tantas vezes já alcei vôo aos céus com meu coração alado, e pra quê? Voeei sempre em direção ao calor, ao grande Sol derretedor de gelos, que replenifica de energia, que explode em lindas cores, pai de redentores incêndios, e pra quê? Pra descobrir que este tolo coração astronauta, com paixão pela estratosfera, é como Ícaro. Sobe, sobe, sobe, só para ver suas asinhas derretidas e despencar em queda livre. Num chão que não é de algodão.
O astro-rei não admite oponentes. A lei da gravidade não abre exceções. Os pássaros não abdicam de sua supremacia dos ares. Nossa sina, como a dos répteis, é estarmos com os pés presos à terra. Mesmo nos aviões e nos balões, estamos sempre grudados ao chão. Ainda que o chão esteja voando.
Hoje sonho como quem sabe que isso faz mal para a saúde. Os médicos não recomendam, especialmente os cardiologistas. Talvez nove entre dez suicidas sejam ex-sonhadores, com verdadeira paixão pelo absoluto, e que se percebem triturados por uma decepção absolutamente insuportável quando notam que o absoluto é impossível de se obter. Doença é querer a Lua como se fosse possível tê-la! É a miséria do Calígula de Camus: "J'ai besoin de la Lune!" Doente fica quem deseja o que não existe, ou o que, existindo, não se pode possuir. Miseráveis daqueles que querem ser realistas à maneira de 68: soyez realistes, demandez l'impossible!
Se a vida nos decepciona, talvez não seja dela a culpa, mas sim de nossas desmesuradas ambições, dos nossos ridículos planos de vôo, dessa terrível criação de nossos delírios, a esperança, pragas que nos fazem esperar desta vida onde tanto é possível... o impossível.
Se nove entre dez suicidas são sonhadores desiludidos, afundados num oceano de insuportável sofrimento porque sua sede de infinito permanece insatisfeita, e que acabam preferindo o nada ao prolongamento do martírio, talvez nove entre dez sábios sejam igualmente sonhadores desiludidos, mas que conseguiram encontrar o amor à vida com as raízes bem plantadas no solo da desilusão. Há aqueles que se matam pois a vida não é o que desejaram. E há os que sofrem com isso mas aprendem, com muito tempo e muita pena, a alma lavada por bentas lágrimas, a amar a vida apesar de tudo, e do jeitinho que ela é, sem tirar nem pôr.
Se sei que o amor é fugaz, os corações mutantes, a felicidade difícil? Se sei! Mas e daí? Amor fugaz é melhor que nenhum amor. Ainda que ele não nos impeça de morrer, é a única coisa que faz com que o viver seja algo digno desse nome. E que os corações estejam sempre em mutação é ao menos defesa contra a sensaboria do tédio – que chatos seríamos todos se tivéssemos corações imóveis! E muitos mumificam-no. Muitos congelam-no. Muitos o enjaulam.
Mas coração também é rio. Que fluirá por paisagens hoje inimagináveis. O meu? Tenho curiosidade para saber em que outras desventuras irá se meter. Como diz o Quintana, os suicidas são só pessoas com uma imensa falta de curiosidade. O meu rio, quero ver onde vai desaguar. O meu rio, eu o deixo correr. E, apesar de algumas devastações que causou, tenho carinho por certas plagas por onde ele passou, podendo ser, aqui e ali, refrescante e alentador. Ainda que me tenha dado poucas alegrias, e me metido em enrascadas terríveis, são as alegrias dele as únicas que dão à vida um sabor de coisa que vale a pena.
Tombo após tombo, fratura após fratura, gesso após gesso, esse ídolo sempre caído e sempre reerguido prossegue seu trabalho de Sísifo. Coração fênix, não é sangue o que tu bombeias: são rios de angústia, são rios de amor! Empurrando intermináveis rochedos de sonhos montanha acima, só para vê-los rolando ladeira abaixo ao atingir os cumes, ele sempre retorna ao marco zero. E o trabalho do amor recomeça. Sempre subindo com frágeis asas e pesados sonhos no lombo, em direção à grande bola de fogo derretedora de cera, vai ele, incansável Ícaro batente, Sísifo infatigável, Fênix teimoso, megalomaníaco e lunático, dizendo... "ah, um dia... um dia eu ainda ganho do Sol!..."
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