domingo, 14 de dezembro de 2008

:: márcia tiburi ::




"Viver é um negócio muito insuportável
e a gente faz de puro heroísmo!"



Uma entrevista estupenda, cheia de momentos impagáveis, da verdadeira Musa Filosófica do Brasil, a gaúcha
Márcia Tiburi (ela mesma, do Saia Justa e do Pink Punk). Acho que f
ilosofia deveria ser isso mesmo que a Márcia encarna: algo que invade a TV, que sai demolindo barreiras acadêmicas, que "convida a pensar-junto", que desnorteia e causa vertigem, que seduz como um ímã... Algo "sem nenhuma pretensão de ser um saber acabado" e que se pretende um "dispositivo de diálogo". Como ela mesma resume: um "discurso que acorda e sacode aquele que está acostumado ao sonífero do senso comum".

Compartilho em muitos pontos essa concepção de filosofia da Marcinha, espécie de retorno ao jardim de Epicuro ou à provocação socrática a todos e cada-um. Ao mesmo tempo que é alfinetada e chaqualhão, pra retirar da apatia e pôr a mente pra funcionar, ainda que seja sob o impacto do espanto, a filosofia é também um fator de reunião, um laço, um encontro, uma partilha. Ela começa um de seus livros dizendo: "Este livro encontraria sua excelência se pudesse ser lido e ouvido em rodas de conversa, realizando o ideal da filosofia como encontro de amigos por amor ao saber. O ideal seria que pudesse ser tão querido como o vinho ou a cerveja que motiva e emociona os encontros."

Gosto dela também por este frescor, esse sabor de novidade, essa juventude desabrochante e jorrante. Ela dizia: "o filósofo, seja ele escritor ou não, é também leitor: sequestrador de ovos de ninhos alheios, o dos livros da tradição, que ele mantém viva com novos pássaros com asas adequadas a cada tempo." A Márcia parece isso: uma parteira de pássaros novos, que avoam em nossos tempos tão necessitados de uma renovação das múmias livrescas e dos filósofos que fedem a mofo.

Ela pode às vezes parecer prepotente, arrogante, narcisista - mas acho que tem todo direito de se achar uma mulher fenomenal, o que ela de fato é. Eu só ficaria preocupado se ela se achasse a Dona da Verdade, mas, pelo contrário, ela diz claramente: "desacredite a cada frase, caro leitor". Ou: "Que a dúvida seja, entre nós, uma espécie de pão". Diz ainda, como quem despreza a filosofia como posse de respostas e ama a filosofia como busca vertiginosa e entrega à angústia do não-saber e da eterna procura: "O TÉDIO é o fruto da resposta." Que delícia encontrar uma filósofa que quer, ao invés de responder, espalhar como uma epidemia a MANIA DE PERGUNTAR!

Mais que filósofa, ela também é uma autora/poeta que me faz às vezes lembrar, no Brasil, de Hilda Hilst ou de Clarice Lispector pela entrega à loucura, pelas temerárias jornadas interiores, pelo mergulho subjetivo que afunda, afunda, afunda, a 20.000 mil léguas submarinas. "Sou minha própria incógnita", ela já escreveu. E é fascinante a obscuridade da escrita que narra essa busca. Por exemplo: "Eu é a pedra sobre a qual me ergo para olhar o que há no charco onde naufraguei cedo demais sem saber como vim dar nele. O eu não é, neste ponto, algo que estava dado, mas o refúgio diante do esfacelamento do que está visível. O pedaço de madeira num naufrágio de onde me ergo à procura de terra à vista. O eu é botão de flor que desabrochará suas pétalas e mostrará seu núcleo de sementes em estado primitivo. Uma flor selvagem que brota no deserto, no mar feito deserto. Descubro que ele é um buraco negro que suga tudo para si - uma busca de preencher um vazio - e também algo que, invertido, eviscera o que nele foi gestado. Um útero de onde devo escapar, mas sem o qual não haveria o meu advento."

Leitora compulsiva, chega a dizer: "ler é a felicidade". Sendo assim, Márcia Tiburi é um convite vivo à leitura, e não concebo convite mais importantes do que esse para a nossa geração da TV e da Internet. Pra ela, fora dos livros a vida é de uma grande bestice, mas ainda assim é preciso abraçá-la como uma aventura, ainda que às vezes insuportável, e que a gente enfrenta de puro heroísmo.