i'm in love with her
and i feel fine.
Postado por Unknown às 08:28 |
O brilhantíssimo Heinrich Zimmer, no Filosofias da Índia, um dos Livros Maiores que conheço em matéria de Sabedoria Condensada, um dos livros mais importantes da minha vida, expõe de um jeito inesquecível e arrebatador a maneira como as filosofias do Oriente descrevem todo esse imenso símbolo: as duas margens, um rio tumultuado entre elas e a travessia árdua mas crucial que é preciso realizar de uma à outra. Uma das metáforas mais famosas do budismo conta que existe uma MARGEM DE LÁ que precisa ser alcançada, e a doutrina é apenas um bote: atingido o objetivo, não há sentido em carregar nas costas aquilo que te levou à Ilha do Nirvana. O budismo é dispensável, quando se atinge a Iluminação: era só um barco, um veículo, um auxílio.
O mais espantoso, e o mais difícil de compreender, é isso: que a Ilha do Nirvana e a Ilha do Samsara são a mesmíssima ilha.
É assim: você embarca num porto, na margem de cá, e navega. Você se perde nos mares. Digladia com Moby Dicks. Engole muita água salgada. Cospe muito sangue. Quebra muitos ossos. Quase sucumbe aos mil Maelstroms da jornada. Enfim, se triunfar, atraca em um outro porto, desembarca da odisséia marítima turbulenta e diz a si mesmo, aliviado, quase em estado de êxtase, que finalmente chegou "na margem de lá", de tão bem que se sente. Mas você desembarcou na mesma ilha de onde havia saído. A grande diferença é que possui novos olhos. A travessia te transformou a consciência. Nada mudou, lá fora: foi dentro que se operou uma remoção de catarata, uma correção de miopia, a instauração de uma Nova Visão.
A coisa mais importante que aprendi nas minhas "andanças pelo Oriente" foi, provavelmente, esta: que o Samsara e o Nirvana não indicam, de modo algum, dois mundos diferentes! Talvez seja isso que nós, ocidentais, achamos tão difícil de entender. Estamos viciados em cristianismo e platonismo: dividimos o mundo entre uma Dimensão Terrestre e uma Dimensão Celeste, entre um Mundo Inferior Sensível (de Transformação e Morte) e um Mundo Superior Espiritual (de Eternidade e Paz). Esse Dualismo é a nossa miopia. Julgamos que o Universo é dual. Buscamos chegar a um “mundo” diferente do nosso. Mas não há mundo além desse. E a Eternidade não vai começar depois: ela já começou. Somos seres efêmeros nadando num Cosmos eterno, que sempre o foi e sempre o será, e eterno não por ser imutável, mas eterno por ser eterna transformação, dissolução, construção e reconstrução. Uma imensa dança, sem começo nem fim.
Por isso é que me parece um equívoco tremendo traçar paralelos comparativos do budismo com o cristianismo e imaginar, por exemplo, que o Samsara equivale ao Inferno e o Nirvana ao Paraíso, como se Samsara e Nirvana fossem de fato LUGARES. Não são lugares. Não é através de um DESLOCAMENTO NO ESPAÇO que se irá de um até outro. O que significa: você pode ser um andarilho teimoso que erra por todos os cantos da Terra, que não chegará jamais a uma Cidade Encantada, toda polvilhada de ouro, esmeraldas, harpas e anjos, que se chama Nirvana. Nirvana não é um lugar. Samsara também não. Lugar só há um – é o que chamamos de mundo, e todos estamos nele. Todos estamos no mesmo lugar. Mas temos diferentes olhos para ver este lugar. Diferentes corações para senti-lo. E, principalmente, diferentes níveis de consciência com que o experenciamos.
Samsara é o estado daquele que tem os olhos doentes. Nirvana é o estado de quem tem os olhos sãos. Samsara é doença, Nirvana é saúde. Samsara é miopia, Nirvana é reta visão. Samsara é ignorância, Nirvana é sapiência. Samsara e Nirvana estão unicamente dentro de nós! E é DENTRO DE NÓS, e somente aí, que podemos dar o imenso passo de um ao outro. Por isso tanto se faz no Oriente no sentido da INTROSPECÇÃO, do RECOLHIMENTO. Pois a salvação está, não lá em cima, mas aqui embaixo: no mais profundo do poço de nós mesmos.
Postado por Unknown às 10:45 |
Postado por Unknown às 17:31 |
Postado por Unknown às 09:02 |
Para os Wheeler também: a verdadeira vida está ausente. A relação do casal é uma tensa gangorra entre uma vontade de lançar-se a uma aventura ímpar, que fizesse o sangue correr mais quente nas veias, e uma quase irresistível e abominável sedução pela resignação ao morno e ao sem sal. Vendo-os daquele jeito, inebriados com planos, tomando coragem para a decolagem, cheios de sonhos do que viria ser a Nova Vida que namoravam à distância, podemos até ver neles grandes HERÓIS em gestação. Há um heroísmo no coração desse casal que vai crescendo, tomando vulto, pedindo espaço – e alguns de nós, deste lado da tela, como testemunhas oculares desta luta, podemos até vibrar na torcida, na torcida, na torcida! Pois sim: seria lindo essa ousada ruptura com um destino mortão, esse salto no escuro de um futuro novo, essa tão louca e tão sábia decisão de mudar de modo radical o que ia mal. A coragem de tentar já seria um belo heroísmo num mundo onde os loucos são os mais lúcidos e a normalidade é a pior das patologias. Mas não; este não é um casal de heróis consumados, mas sim de heróis caídos, perdidos, fracassados. O fracasso deles espelhando o nosso. A tentativa de revolução deles instigando a nossa vontade por inventar a nossa.
Quando se consuma o fracasso de tantos lindos sonhos, a própria rua onde moram – a Estrada da Revolução – passa a parecer uma imensa zombaria que os demônios urbanos bolaram como escárnio. Não seria muito diferente se os dois fossem paraplégicos morando na Rua dos Maratonistas ou surdos vivendo na Cidade da Música. Pois, se Wittgenstein estava certo ao dizer que “revolucionário é quem se auto-revoluciona”, os Wheeler fracassaram feio na missão. Disseram-se palavras duras demais para que o perdão seja possível. Enfiaram o punhal muito fundo no peito um do outro para que retirá-lo da carne não gerasse uma hemorragia letal. Abandonaram de modo muito profundo a doçura e a civilidade para que a relação pudesse voltar a se açucarar. Perderam-se, desnorteados, esmagando suas cabeças e corações um contra o outro, continuando ambos presos dentro da cela cultural de onde tentaram se evadir.
Há muito tempo não víamos projetada na tela uma disputa matrimonial tão cruel. O casal Wheeler traz à lembrança todos os horrendos combates entre Liz Taylor e Richard Burton em Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, aquela imensa orgia da catarse de ressentimentos reprimidos com a qual Mike Nichols deixou marcado seu nome na história do cinema logo em seu longa de estréia. Um homem e uma mulher que tacam pedras e bosta na cara um do outro, por tempo integral, é de fato um espetáculo indigesto de se ver, mas ali parecia que um repouso, no fim da tempestade, era possível: não haveriam os dois de se aquietarem como dois exércitos cansados, um rendido ao outro, assim que a munição acabasse ou o campo de batalha estivesse já muito infestado de cadáveres?
Em Revolutionary Road, depois dos histéricos disparos das metralhadoras giratórias, uma chance de conserto do quebrado até se rascunha. Mas... é um rascunho que se amassa e lança-se ao lixo, besuntado de sangue, como um plano que sabe-se que não funcionaria. Depois da briga mais feia que o casal tem, tendo dito um para o outro os horrores mais imperdoáveis, nasce o dia seguinte em aparente calmaria. Ela, que no dia anterior era emanação pura de ódio, de desamor, de sadismo (“fuck whoever you like!”, diz April ao marido, e que bordoada!), aparece transformada numa doce, atenciosa e suave dona-de-casa, que prepara os ovos para o maridinho, o enche de mimos no breakfast e deseja-lhe um bom dia de trabalho, meu querido. Ele, que tinha amaldiçoado o ventre da mãe de seus filhos, fazendo uma das mais horrendas ofensas que se pode fazer a uma mulher, descobre-se surpreso com a súbita paz que se faz após a catástrofe da véspera. E embarca na viagem dela, fazendo o papel do comportado maridinho trabalhador que está contentíssimo com uma vida altamente convencional. Nem percebe a farsa. Pois aquilo é ela armando para ele um teste definitivo – e ele não passa.
No fim das contas, a matemática da vida oferece um resultado totalmente negativo às complexas aritméticas que estes dois procuraram equacionar. Os dois revolucionários falhados, mártires de sua própria covardia e crueldade, ficam assombrando como espectros esta melancólica Revolutionary Road - a rua das ilusões perdidas, das fantasias desfeitas e dos machucados sem remissão - onde pinga, gota a gota, do útero de uma mãe que está ferida demais para continuar vivendo, a vermelha e trágica água que mancha o prendado carpete do Sonho Americano.
( + + + + : new yorker - berardinelli - rolling stone -roger ebert - empire - ws post - omelete -portal de cinema - cinerepórter -pablo vilaça - cinesmacópio - ...)
Postado por Unknown às 14:08 |
Em A Graça de Deus, o brilhante romance de despedida de Malamud (que o escreveu em 1982, morrendo em 1986), esta divindade terrivelmente temperamental e bizarra é retratada perdendo as estribeiras. Depois de muito aguentar as macaquices da raça humana, o Cara Mais Poderoso do Universo se enfeza feito um gângster, tem um ataque psicótico incontrolável e decide mandar tudo pras cucuias. Ele lança sobre a Terra um Segundo Dilúvio, monumental e impiedoso, que faz picadinho - ou melhor: dá um belo dum caldo... - em todas as criaturas vivas sobre a face do planeta. Ou quase. Pois um judeuzinho rabudo, que estava em seu submarino na hora do atentado da jihad divina, acaba sobrevivendo. Numa ilha deserta, ao lado de um grupelho de macacos, vai tentar recomeçar a aventura humana como um Segundo Adão.
Mas Malamud escreveu um livro muito mais profundo do que uma mera ficção alarmista, que qualquer autorzinho cristão apocalíptico e moralista de meia-tigela poderia ter composto. O autor não só soa os alarmes contra os abusos ecológicos e morais da raça humana, como usa a catástrofe para desencadear todo um estouro da boiada de questionamentos teológicos.
Pois esses ápices no HORROR que o Homem conseguiu atingir nestes escândalos que sujam o século 20 podem gerar dois tipos de confrontação teológica. Por um lado, a negação absoluta da Divindade, o ateísmo completo, que diz que uma Criação tão cheia de pecado não corresponde a uma Causa Divina e Bondosa. Além disso, se o Onipotente não se manifestou para impedir tamanhos massacres e indignidades, é certamente porque: ou é Do Mal, o que não corresponde a Deus, ou simplesmente Não Existe. Existe um Demônio ou não existe nada: a isso se reduzem nossas opções. Ou seja, a hipótese de um Deus Bondoso, Onipotente e Interventor morreu de vez em Auschwitz e devemos seguir em frente sem essa imensa ilusão que nos entravou o caminho para o conhecimento por milênios.
* * * * * *
Esse é um livro desbocado, provocativo, às vezes bastante obsceno. Mais parece um livro de juventude, em que Malamud se mostra com a impertinência de um adolescente peralta, imaginando situações que a maioria dos homens ficaria de cabelo em pé só de imaginar. É o caso das cenas de sexo inter-espécies em "A Graça De Deus". Pois a certo ponto do romance, nosso herói, perdendo as esperanças de se deparar com alguma fêmea homo sapiens sobrevivente do Dilúvio, bola um "plano ousado" para driblar esse pequeno empecilho.
"O extraordinário feito que tinha em mente valia uma punhalada no escuro" (156). "Se ele e a macaca Maria Madalenta, unidos pela afeição mútua, e qualquer que fosse sua maneira de assestar e penetrar ele conseguisse depositar naquele útero acolhedor um jato do seu audacioso esperma, isso poderia mais cedo ou mais tarde exercer o efeito que ele esperava. (...) a evolução dos primatas exigia, como fundamento, além de algumas afortunadas mudanças macroevolucionárias, uma certa potência cerebral. Partindo de uma criança produzida por uma combinação de homem e chimpanzé, os dois seres mais inteligentes entre todas as criaturas de Deus, poderia surgir essa nova espécie - em última análise uma invenção de Cohn..." (157) Enfim: ele literalmente se decide a "fazer macaquices com a evolução" (159).
"A Graça de Deus" é tão sarcástico e iconoclástico, tão desrespeitoso frente a tabus sexuais e religiosos, que mais parece a obra de um autor ateu brincando de escrever uma continuação para a Bíblia. Nem de longe soa como o último livro de um escritor célebre por ter raízes judaicas profundas, o que nos faria supor um certo respeito temoroso por Jeová. Ao deixar sua imaginação voar livre e solta na criação desta infame parábola, Malamud cometeu uma obra que beira a ficção científica distópica e satírica - algo como um Planeta dos Macacos ou um Senhor das Moscas todo besuntado de questionamento teológico e ironia mordaz. Ao fazê-lo, esse brilhante autor americano, fechando com classe sua carreira de romancista, me dá a impressão de que escreveu um novo capítulo - divertidíssimo, pungente e estarrecedor! - do maior livro de ficção científica que a humanidade já imaginou: a Bíblia Sagrada.
(Já falei sobre outro clássico de Malamud, "O Bode Expiatório", aqui...)
Postado por Unknown às 00:01 |