domingo, 12 de fevereiro de 2006

2 FILMES.



T A P E
de Richard Linklater, 2001.


Minimalista ao extremo, Tape é assim: uma câmera digital presa dentro de um quarto de motel por todo o tempo, acompanhando em tempo real o diálogo de 85 minutos entre três personagens, num lance bem "teatro filmado" de um ato só. É extrema a diferença de estilo entre Waking Life e Tape, dois filmes lançados no mesmo ano (2001) como "experimentos" em cinema digital. Waking Life era um filme altamente viajado, com um visual exuberante e colorido, com um climão de sonho e de delírio, saturado com papos-cabeças e numerosos personagens. Já em Tape Linklater cometeu um de seus filmes mais pé-no-chão, mais realistas, mais "toscos", meio que voltando ao cinema simplão e sem firulas de um Slacker, seu filme de estréia. Tape é bem low-fi. E ao contrário de outros filmes do cara, que demonstram relacionamentos humanos funcionando com uma harmonia, uma simpatia e uma compreensão mútua invejáveis (tipo o casal perfeitamente conectado de Before Sunset / Before Sunrise), Tape é mais "pesadão".

O relacionamento entre os dois protagonistas é lotado de agressividade, de rancor, de violência contida, de feridas do passado que não cicatrizaram... E o quarto de motel onde estão é quase um campo de batalha onde eles digladiam. O que começa aparentando ser um filme sobre a amizade e sobre o reencontro de velhos companheiros acaba virando um conto de vingança e de provocações mútuas, que só por pouco num descamba pra violência física e pra tragédia. Tape é um filme cheio de mind games, que nos envolve numa espécie de triângulo amoroso claustrofóbico, interpretado de maneira meio improvisada e livre, e que acaba por parecer bem genuíno e acreditável.

Ethan Hawke e Robert Sean Leonard, que já trabalharam juntos no Sociedade dos Poetas Mortos quando eram ainda moleques, interpretam aqui dois amigos em duelo principalmente a respeito de um certo episódio do passado envolvendo uma certa Amy (Uma Thurman), namorada de um, depois parceira sexual do outro, que mais para o fim do filme irá irromper na tela para um ótimo desfecho - bem no estilo "Momento da Verdade". Tape vale principalmente pelas atuações, pelos diálogos, pela análise de personagens, pelo combate de personalidades, pelo realismo com que aborda o relacionamento desses três, por esse árduo processo de desenterrar segredos do passado. É o menos "idealizado" dos filmes de Linklater - pé-no-chão mesmo. No fim da "batalha", apesar de não haver nenhum cadáver no chão, saímos do filme com a sensação de termos presenciado a devastadora morte de uma amizade... Ou talvez, e resta um fiapo de esperança no ar, algo que vai conduzir a um recomeço do relacionamento em bases mais verdadeiras. Soou parecido com algo que o Mestre Mike Leigh faria.

Longe de ser meu filme predileto de Linklater (ainda sou mais Before Sunrise / Before Sunset - e prometo que qualquer dia escrevo um texto enorme sobre eles), Tape é um filme que eu curti principalmente por isso: pois ele inspira a fazer cinema. Meio como os Ramones na música. Por mostrar que você não precisa realmente de muitos recursos técnicos e financeiros pra fazer cinema decente nos últimos tempos. Uma câmera digital, um quarto de hotel, dois ou três atores, boas idéias na cabeça e uma semana de filmagens foi tudo o que Richard Linklater precisou para cometer um grande filme. Depois de assistir a Tape, não são poucos que vão dizer: pô, eu, você, qualquer um de nós, também podemos fazer um filme! Não é algo restrito a gente cheia de capital ou de importância... Não é algo assim tão inacessível, tão utópico (Guido Deve Morrer tá aí pra provar!)... A popularização e o barateamento do preço das câmeras digitais promete tornar o cinema uma arte ainda mais democrática, de modo que Tape pode mesmo ser visto como um dos precursores de uma Nova Era (ou eu exagero?). Sei que eu mesmo ando já acalentando certos sonhos, e já cozinhando certas idéias, para os meus (prováveis) filmes do futuro... que já não acho tão impossíveis assim de virem ao mundo. E, se saírem algum dia, vou agradecer Linklater pelo exemplo, pelo modelo, pela inspiração...

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PALINDROMES,
de Todd Solonsz, 2004.


Eu entendo os filmes do Todd Solondz (de Bem-Vindo À Casa de Bonecas, Felicidade, Histórias Proibidas...) como um FREAK SHOW, mas que tem a pretensão a ser tomado como Arte Séria e Provocativa e não somente como um espetáculo de bizarrices. Este Palindromes, outro filme que vem pra causar polêmica e ser odiado por grande parte do público, é uma das obras mais perversas e cheia-de-alfinetadas da carreira do jovem diretor americano. O humor negro, presente em todos os filmes anteriores (e que pra muita gente não tem graça nenhuma e não passa de sintoma da perversidade do diretor), aqui atinge realmente o cume. Dá pra cair na gargalhada em vários momentos dessa estranha viagem de Solondz em Palindromes, o seu "filme sobre aborto", mas o "ambiente" que ele cria é muito estranho e asfixiante para que esse humor seja qualquer coisa parecida com um alívio ou uma diversão... A gente ri pra não chorar, ri com culpa, ri com dó...

Há por aqui algo de Larry Clark e de Gus Van Sant, pelo interesse em interpretar e fotografar os dilemas de uma juventude transviada, mas há também algo de Fellini, algo de Lynch, algo de Cronenberg - em uma palavra: algo de BIZONHO. Primeira bizarrice: a utilização de uma meia-dúzia de atrizes diferentes interpretando a personagem principal, o que apesar das aparências não dificulta demais a compreenssão. Passada a estranheza inicial, o filme se mostra perfeitamente compreensível e linear. É bem provável que o rodízio de atrizes queira sugerir que a história que estamos vendo poderia ter acontecido com muitas diferentes garotinhas, de diversas caras, corpos e cores. As várias faces de Aviva, a personagem principal, passam essa sensação de "multidão condensada em um personagem". Um recurso bastante criativo e ousado, que poderia ter ficado bom, por exemplo, se utilizado também num filme do tipo Maria Cheia de Graça, baseado em "1.000 histórias reais"...

Visto de fora, "Palindromes" parece um tradicional drama familiar, com a sequência de eventos que é de se esperar num filme com essa temática: garota solteira e rica engravida / família entra em crise histérica / um aborto é imposto à moça (que desejava ter o filho) / a jovem, depois de abortar, só de raiva foge de casa / longe das garras da família, põe o pé na estrada e começa um road movie... Solondz, porém, trata sempre de distorcer o realismo em favor de um ambiente um tanto surreal, grotesco e por vezes francamente desagradável. A gente pode não gostar dos filmes dele - e confesso que é muito difícil se sentir bem assistindo a Todd Solondz... (se sentir mal é muito mais provável!) - mas o fato é que ele arruma um jeito de mexer com a gente, de um modo ou outro.

O episódio no "orfanato" de Mama Sunshine é particularmente um achado e uma fina provocação. Aviva, em certo momento de sua jornada, acaba indo procurar refúgio nas mãos de uma organização cristã radicalmente contrária ao aborto, que acolhe crianças abandonadas ou com problemas físicos e mentais. Essa "ONG" milita, inclusive com a utilização dos meios mais sangrentos, contra médicos que praticam clandestinamente os abortos. O ácido sarcasmo que Solondz derrama sobre Mama Sunshine e a "ideologia" que ela representa é um golpe certeiro - e é evidente que ela é uma caricatura do tipo de pessoa que sustenta que o aborto é um crime contra a religião. Vemos no "orfanato" um amontoado gigantesco de miséria humana - crianças nascidas sem olhos, sem braços, sem pernas, deformadas, epiléticas, retardadas... - cantando musiquinhas de louvor ao Senhor e à Sabedoria de sua Criação! E Solondz pergunta, discretamente: não seria preferível que essas crianças tivessem sido abortadas ao invés de terem sido obrigadas a nascer assim, defeituosas, doentes, retardadas, condenadas a um imenso sofrimento na vida?

Muitos podem não concordar com essa visão um tanto niilista, que diz que para alguns não nascer é uma vantagem... E claro que se pode sustentar que mesmo essas crianças tem todo o "direito à vida". Não quero ficar entrando na discussão sobre aborto aqui - não é esse o momento. Mas o fato é que Solondz consegue nos persuadir muito bem de que há certos casos onde o aborto, longe de ser condenável, pode ser um ato de misericórdia que vai impedir um novo ser de vir à Terra só para sofrer e sofrer e sofrer. Nessas cenas e em muitas outras, Todd Solondz faz suas provocações com competência e com certeza acaba por produzir um filme que é capaz de aquecer o debate sobre a questão do aborto como poucos que eu conheça.

Mas há um porém: o olhar de Solondz, como muitos críticos já notaram, revela frequentemente uma espécie de misantropia, como se ele mal suportasse a presença de seus próprios personagens - que são quase sempre miseráveis, infelizes, losers e disfuncionais. O espectador quase pode sentir que ele, por trás das câmeras, mal consegue disfarçar seu nojo pela condição desses seus personagens, e um nojo contra a própria Condição Humana, contra o fato de que alguns simplesmente tem o azar de nascer feios, deformados, retardados ou anormais, sem nenhuma culpa que explique essa "punição".

Eu quase consigo "ouvir", por detrás da obra toda de Solondz, um grito de protesto contra a "Loteria do Nascimento"... Ninguém pede pra nascer, e ninguém escolhe ser quem é, e as injustiças que decorrem daí são grandes o bastante para fazer surgir em alguns quase que uma revolta contra a vida - e isso está impresso em fogo através da carreira toda de Todd Solondz. Eu, pessoalmente, sinto falta de uma só coisa para que ele se torne um cineasta de primeira grandeza: que ele consiga transformar sua misantropia em misericórdia, e consiga olhar para suas criaturas com um pouco mais de compaixão e de ternura...