quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006



COMPLEXO DE PORTNOY,
de Philip Roth


Há aqueles livros que representam pra muita gente uma espécie de rito de iniciação na literatura: é aquele livro que a gente lê cedo na vida, com um imenso prazer, com uma fome devoradora, virando as folhas com pressa, sem notar que os ponteiros do relógio continuam a rodar... E bate aquela surpreendente descoberta: afinal não é somente por obrigação que as pessoas lêem, mas sim por gosto, por prazer, por vontade!... Porque ninguém já nasce amigo da leitura. Todo mundo sabe que o gosto pelos livros é algo que precisa ser cultivado - e é um dilema pedagógico, e um dos mais importantes, esse de achar um meio de fazer com que a pirralhada, e depois os adolescentes (e depois até mesmo os adultos...), adquiram gosto pela leitura. E é claro que ninguém começa sua jornada literária direto com um Proust, um Joyce ou um Faulkner, da mesma maneira que ninguém começa a ouvir rock indo direto pro Sonic Youth, pro Velvet Underground ou pro Faust. Antes é preciso que o gosto pela leitura seja conquistado através de obras que, apesar de não muito respeitadas pela crítica séria, conseguem mudar vidas e fazer com que nasça em alguns um apetite de literatura que pode durar pela vida afora...

Muita gente cita como predileto certos livros que são tipicamente obras de “porta-de-entrada-na-literatura”, tipo O Apanhador no Campo de Centeio do J.D. Salinger, o On The Road do Jack Kerouac, o Pergunte ao Pó do John Fante, qualquer um do Bukowski, entre muitos outros... No meu caso, foi o Complexo de Portnoy um desses preciosos livrinhos que me fez ficar apaixonado pela literatura. Não foi o primeiro que li, é claro, nem o primeiro que eu amei: desde bem moleque eu já tinha esse estranhíssimo hábito de ler livros que as professoras do colégio nem tinham pedido... Meus colegas de classe, é claro, ficavam espantados. “Mas por que você está lendo isso? Nem vai cair na prova!” Naqueles tempos, só mesmo sendo maluco – e masoquista! – pra ficar lendo coisas que não eram obrigatórias... afinal, a Verdade reconhecida por todos era: ler é tão chato!

No começo de tudo, claro, foi Pedro Bandeira. A saga dos Karas, pra uma imensa galera que nasceu nos anos 80, marcou nossa vida no Ginásio. Eu li todos os cinco livros (e se existissem 10, teria lido os 10!), mesmo que somente A Droga da Obediência e o Anjo da Morte tenham sido obrigatórios pra num rodar na prova... Depois, óbvio, rolou a fase Agatha Christie – ê clichê! Li, sei lá, uns 6 ou 7 livros da Dama do Crime, quase que na sequência, querendo adivinhar o assassino em pelo menos um – em vão! Li também alguns best-sellers americanos, principalmente os do Dean R. Koontz, cara que eu idolatrava, achando muito melhor do que o muito mais famoso Stephen King... E, claro, num dá pra esquecer do mais do que fundamental O Mundo de Sofia, de Jostein Gaardner, tão importante pra minha vida (estaria eu hoje cursando Filosofia sem ele?) que merece um texto especial, qualquer dia desses...

O Complexo de Portnoy, de Philip Roth (conheça-o melhor: 1, 2, 3), é uma dessas obras da minha Era Primórdios da Leitura que mais marcou. Lido no momento certo, quando aquilo era exatamente o que eu estava querendo ler, o clássico de Roth acabou por virar um objeto altamente querido e, de um modo ou outro, mudou a minha vida. Foi uma leitura tão prazeirosa que, daí em diante, eu não tive mais dúvidas: era possível, sim, retirar de um livro, esse objeto aparentemente tão bobo e tão chato, um imenso deleite... E eu realmente cascava o bico em vários momentos do relato de Alex Portnoy, o personagem-narrador de Philip Roth, descobrindo que um livro conseguia arrancar de mim mais risadas do que qualquer comédia em filme. Até hoje acho que esse é, de longe, um dos livros mais engraçados que já li, competindo pelo lugar mais alto no pódio com o também hilário Pantaleón e As Visitadoras, do Vargas Llosa. Também acho Céline extremamente cômico, mas não conheço ninguém que concorde - então deixa pra lá...

Me lembro bem o impacto que foi a descoberta do Complexo de Portnoy quando eu tinha lá meus 15 anos de idade e estava apenas começando a dar meus primeiros passos dentro do vasto templo da literatura mundial. Foi o Daniel Galera quem recomendou o troço, provavelmente em algum COL bem antigo – e eu sou eternamente agradecido ao cara por ter me apresentado, não só ao Roth, mas a outros dois autores de que sou fã e que só fui procurar porque ele recomendava: Albert Camus e Ernest Becker. Achar o Complexo em sebo não foi problema, e depois descobri porquê: o excesso de pornografia, palavrões e piadinhas sujas, sem falar do tom incessantemente debochado do narrador, faz com que muitas “pessoas de bem” odeiem com o maior preconceito o livro de Roth e se livrem dele com pressa. Deve ser por isso que em qualquer sebo fuleiro se encontra, fácil fácil, pelo menos uma edição do muito mal-afamado volume das Confissões Sexuais e Emocionais de Alexander Portnoy. Comprei o meu por R$ 1,90.

Não confiem no que dizem as sinopses por aí. Não é de bom tom dizer do que se trata realmente o livro, então vai estar escrito que o livro é um “retrato convincente da família judia urbana” ou qualquer porcaria desse tipo - o que acaba por afastar qualquer um da leitura. Eu pelo menos nunca escolheria ler um livro só por ser um “retrato da família judia na América”: não é exatamente um tema que me atraia... Não, não é sobre isso O Complexo de Portnoy. No duro, ele é sobre sacanagem, sobre punheta, sobre sexo, sobre rebeldia adolescente, sobre paranóias maternas, sobre relações familiares bizarras... Alex Portnoy, nosso narrador-personagem em 1ª pessoa, narra a história de sua vida para seu psicanalista Spielvogel, principalmente infância e adolescência, num jorro tagarela de fatos que entretêm, diverte e excita. E Roth demonstra, sim, um imenso talento literário nessas páginas aparentemente despretensiosas e bem-humoradas - se viver mais alguns anos, o já veterano autor americano dificilmente vai escapar de vencer o Prêmio Nobel de Literatura. Merece.

A família de Portnoy, apesar de tradicionalmente judia, não é muito diferente das famílias que conhecemos - e não é difícil de se identificar com Portnoy e sua rabugenta reclamação incessante contra seus pais. Sei que eu li O Complexo de Portnoy dizendo a toda hora “podecrê, cara! Podecrê! É assim mesmo!”... Alex era o “garotinho cu-de-ferro que corre para casa depois da escola cheio de notas máximas, o ultra-aplicado inocente, incessantemente à procura da chave daquele mistério indevassável, a aprovação de sua mãe” (pg. 43). Mas a mãe, por sua vez, possessiva e extremamente paranóica, só sabe se preocupar, temer, dar sermões, prescrever os “atos certos”... E o paizão, omisso e covarde, está mais ocupado com seus intestinos e com suas apólices de seguro do que com o filho.

Mas o Dilema principal do livro é que o pobre Alex, ao mesmo tempo que vê seus hormônios borbulharem e sua libido fervente (buscando então refúgio em práticas sexuais solitárias), não consegue evitar o sentimento de culpa trazido por sua educação rígida. Philip Roth, apesar do tom meio de caricatura, demonstra aqui um perfeito domínio da psicanálise e do dilema freudiano entre o id e o super-ego, por exemplo. Perceber a inteligência da análise psicológica pode ser difícil para a maioria dos leitores, que vão estar ocupados demais rolando no chão, às gargalhadas, com a descrição absolutamente hilária das epopéias punhetórias de Alex. Mas o autor demonstra sim, pra quem souber analisar bem, um imenso talento ao criar um personagem-símbolo do embate entre o instinto e a moralidade, o tesão e a repressão. Alex Portnoy tem dentro da cabeça um super-ego do tamanho de uma melancia e dentro da cueca uma besta selvagem que se debate em sua jaula... “Sou o Raskólnikov da ejaculação!”, confessa Alex, aludindo ao Crime e Castigo de Dostoivéski: para Portnoy, a punheta é o crime sempre punido pelo seu terrívelmente intenso sentimento de culpa.

É isso o Complexo de Portnoy que dá nome ao livro: “um distúrbio em que fortes impulsos éticos e altruísticos se apresentam em perpétua luta com extremados anseios sexuais, frequentemente de natureza perversa”. O psicanalista Spielvogel esclarece: “Em consequência da moralidade do paciente, entretando, nem a fantasia nem o ato resultam em genuína satisfação sexual, mas antes em avassaladores sentimentos de culpa e temores de punição, especialmente sob a forma de castração” (pg. 5). O próprio Alex, num momento de insight, nota que sua personalidade o obriga a viver “dilacerado por desejos que me repugnam à consciência e uma consciência que repugna aos meus desejos” (pg. 108). Não é a história de nossas vidas?

E é claro que é contra a Família, a educação recebida, a religião transmitida, que Alex vai voltar sua ácida rebeldia, espalhada pelo livro inteiro. O Complexo de Portnoy parece realmente um livro escrito por um moleque nervoso: a Voz que Philip Roth conseguiu captar aqui é jovem, impetuosa, impaciente, cheia de vida... Como bom adolescente que se torna ateu e rebelde, Alex Portnoy passa a vociferar contra toda o sistema moral de papi e mami, chegando à conclusão, por exemplo, de que a religião só está lá para dizer que “a vida é feita de limitações e restrições e nada mais, centenas de milhares de regrinhas estabelecidas ninguém sabe por quem, regras a quem a gente obedece sem discutir, por mais idiotas que possam parecer” (pg. 67). A repressão sexual e verbal excessiva também deixa suas marcas. “Sou marcado dos pés à cabeça pelos meus recalques”, reclama Alex. “É possível viajar ao longo do comprimento e da largura do meu corpo, percorrendo rodovias de vergonha, inibição e medo” (pg. 101).

São numerosas as páginas que Alex dedica a falar mal de sua família – e são deliciosas! Por exemplo:“O grau de histeria e de superstição! Os ‘olhe aí’ e os ‘tome cuidado’! (...) Não podia sequer pensar em beber um copo de leite junto com o meu sanduíche de salame sem ofender seriamente ao Deus Todo-Poderoso! Imagine o que me custaram na consciência todas aquelas ejaculações! A culpa, os temores – o terror incutido em meus ossos! No mundo deles, o que não estaria carregado de perigos, gotejante de vermes, repleto de riscos? Oh, onde estava o prazer, onde estavam a audácia e a coragem? Quem saturou esses meus pais de uma visão tão temerosa assim da existência?” (pg. 32)

A mania dos pais judeus – mas não só deles, com certeza – de se sacrificarem pelos filhos, depois acusando rancorosamente os rebentos pela ingratidão, é outro alvo de Portnoy. A mãe, que parecia disputar com as vizinhas o título de “santa padroeira da abnegação”, é daquele tipo que sempre vê em tudo uma possibilidade de desastre: um espirro é motivo pra chamar uma ambulância, um pouquinho de febre e ela já tá mandando o filho pra UTI... E é sermão que não acaba mais... De modo que o pobre Alex, não importa o quanto seja um rapaz exemplar, estudioso, respeitoso e extremamente moralizado, não consegue arrancar de seus pais nenhum afeto, nenhum sentimento de ser amado: é sempre somente uma causa de preocupação, de aflição, de sacrifício, de dor... Ah, não é, de novo, a História de Nossas Vidas?

Quando o livro começa a avançar na narração da vida adulta de Portnoy, tema de outros livros posteriores de Philip Roth (O Diário de uma Ilusão, principalmente), o tom permanece o mesmo. Mesmo depois de adulto e bem-empregado, Alex não se livra da ingerência de sua sua família e da eterna impossibilidade de agradá-los – pois “um judeu com pais vivos é um garoto de quinze anos, e há de permanecer um garoto de quinze anos até que eles morram!”. E os ímpetos de sua “coisinha” não se acalmaram, é claro: “Trinta e três anos e ainda comendo com os olhos, e devaneando sobre cada garota que cruza as pernas no metrô diante dele! Ainda se amaldiçoando por não ter dirigido a palavra ao suculento par de tetas que viajou com ele vinte e cinco andares num elevador!” (pg. 83)

Sei que há quem vá achar que Alex Portnoy é somente um jovenzinho rebelde e ranzinza, um personagem cuja única virtude é “ser engraçadinho” - mas aí é subestimar o “cara”. Eu vejo muita sabedoria em Alex. Me explico: acho muito elogiável e digno de imitação esse lance de fazer uma minuciosa investigação subjetiva, uma passeio para dentro, uma jornada de auto-conhecimento, mas sem a tradicional seriedade que costuma caracterizar o processo... Alex tem a manha de dar risada de si mesmo, de seus fracassos, de seus vícios, de suas baixezas, se mantendo sempre razoavelmente alegre e integralmente sincero - o que é ótimo. Ele não precisa mentir sobre si mesmo, escondendo seus ímpetos sexuais e seus maus sentimentos, por exemplo, nem fazer suas confissões as levando demasiado a sério. Estamos perto de Woody Allen aqui, ele que também é mestre nesse estilo de humor auto-reprovatório e confessional – foi ele que nos legou pérolas como “Não me associaria a nenhum clube que aceitasse como sócio uma pessoa como eu” ou “A única coisa de que me arrependo nessa vida é não ser outra pessoa”.... Pena que Woody não tenha o costume de adaptar para o cinema obras literárias, sempre escrevendo seus próprios roteiros, pois uma adaptação d’O Complexo pela lente de Allen teria tudo pra ficar ultra-trimmassa... ainda mais se Woody interpretasse Alex!

Pra concluir: Complexo de Portnoy é um livro que exala um imenso frescor, juventude e ânimo. E me parece mais verdadeiro do que muito Grande Clássico da Literatura, onde os personagens nunca batem punheta, nunca ficam olhando fascinados para a derrière feminina, nem nunca dão vazão a sua rabugices mais idiotas – em uma palavra, nunca exibem seu lado vulgar. Alex Portnoy é um dos meus personagens prediletos na história da literatura por mim conhecida (que é, digamos, 0,0001% de toda a literatura...): ele tem uma voz inconfundível, um talento imenso pra ser um adorável palhaço, um jeito de ser que eu adoro... Se eu pudesse dar um só conselho aos professores de português do ginásio e do colegial, daria esse: peloamordedeus, não obriguem os moleques a enfrentarem Vidas Secas ou Primo Basílio! O Complexo de Portnoy é o livro certo para fazer um adolescente cair de amores pela literatura – e não fica devendo nada em termos de qualidade estética, na minha opinião: é um livro magistralmente escrito e digno de ser considerado um clássico da boa literatura de tom humorístico, nada inferior a um Fielding ou Sterne. O Complexo de Portnoy me fisgou quando eu era moleque e depois dele eu nunca mais parei de ser um assaltante de biblioteca – e se ele fez isso por mim, creio que pode fazer o mesmo por muitos outros.

(obs: AVANTE, GONZO JORNALISMO! AVANTE!)

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[um trecho antológico:]

"Que negócio mais misterioso! O fascínio interminável desses orifícios e aberturas! Como vê, não posso parar! Ou me prender a qualquer uma. Tenho casos que duram um ano, um ano e meio, meses e meses de amor, a um tempo terno e voluptuoso, mas no fim - é inevitável como a morte - o tempo marcha e o desejo se acaba. No fim, simplesmente não consigo dar aquele passo para o casamento. Mas por que deveria dá-lo? Por quê? Existe alguma lei que diga que Alex Portnoy tem de ser o marido e o pai de alguém? Doutor, elas podem trepar no parapeito da janela e ameaçar se espatifar lá embaixo no solo, podem empilhar Seconal até o teto - talvez tenha de viver semanas a fio no terror de essas moças decididas ao casamento se jogarem debaixo do trem; o fato é que, simplesmente, não posso, simplesmente não quero fazer um contrato de dormir com uma só mulher pelo resto dos meus dias. Imagine só: suponha que eu me decidisse e me casasse com A, com as suas bonitas tetas e assim por diante, o que sucederá quando aparecer B, que as tem ainda mais bonitas, ou pelo menos mais novas? Ou C, que sabe mexer o traseiro de alguma maneira especial que eu jamais vi, ou D, ou E, ou F. Estou tentando ser franco com o senhor, doutor, pois, no que se refere a sexo, a imaginação dispara até Z e ainda vai além! Tetas, pombas, pernas, lábios, bocas, línguas e orifícios traseiros! Como posso renunciar ao que nem mesmo cheguei a ter, por causa de uma garota que, por mais deliciosa e provocante que tenha sido algum dia, se tornará tão familiar para mim como uma fatia de pão? Por amor? Que amor? É isso que liga as pessoas que conhecemos - as que têm o trabalho de se deixar ligar? Não se trata antes de uma fraqueza? Não será antes conveniência, apatia e idéia de culpa? Não será antes medo, exaustão, inércia, falta de fibra pura e simples, muito mais isso do que aquele "amor" com que os conselheiros matrimoniais, autores de canções e psicoterapeutas estão sempre sonhando? Por favor, vamos deixar de nos encher um ao outro com esta história de "amor" e a sua duração."