(GOYA'S GHOSTS)
de Milos Forman
Uma formidável cinebiografia de um artista célebre já era de se esperar das Mãos de Mestre do Milos Forman. E o cara é mesmo De Confiança! Já tinha nos dado filmetos muito apreciáveis sobre personalidades tão díspares quanto Mozart (em Amadeus), o comediante Andy Kaufman (em Man On The Moon), o pornógrafo Larry Flynt (em O Povo Contra Larry Flynt...) e um bando de hippies cabeludos e cantarolantes (em Hair), mas esse esplêndido novo filme do veterano diretor é muito mais que uma mera Biografia de um Artista de Grandeza. Goya, o grande pintor espanhol, que em sua época era o predileto de Sua Majestade e de altos membros do clero, é quase um coadjuvante desse monumental e poderoso retrato dos tempos históricos no fim do século 18 e começo do 19.
Pra começo de conversa, o filme é um dos mais perfeitos retratos dos descalabros obscenos cometidos pela Igreja Católica durante a Inquisição. Os acontecimentos do filme se desenrolam justamente no período mais linha-dura de perseguição aos hereges e pagãos na Espanha. Todo cidadão era minuciosamente investigado pelos Seríssimos Tiras de Batina em busca de qualquer mínimo sinal de desvio da doutrina cristã oficial. Era preciso vasculhar os livros para ver se ninguém estava se contaminando com a leitura de algum veneno terrível e pernicioso como... Voltaire. Se alguém fosse visto mijando em algum banheiro público e escondendo o próprio pênis, que ficassem de olho: provavelmente era um cincunciso – e prendam já o judeuzinho! Se alguém fosse visto dizendo “templo” ao invés de “igreja”, merecia também ir em cana... vai que é um protestante! Era uma época em que você podia ser preso e levado para um singelo “interrogatório” (onde você era dependurado pelos braços até que suas juntas se rasgassem e mantido suspenso como um pedaço de carne no açougue) se, por exemplo, recusasse uma porçãozinha de porco.
“A Inquisição foi um grande negócio, pois os parentes das vítimas eram obrigados a pagar as despesas do seu julgamento, sua tortura e execução. É relevante o fato de que quase todas as vítimas pertenciam ao sexo feminino, enquanto os juízes, padres, carrascos, bispos e papas eram todos homens. As “bruxas” eram mulheres de todas as idades, às vezes até meninas. Comissões de investigações especiais anotavam as acusações dos cidadãos e levavam as caixas postais às portas das igrejas; qualquer pessoa que quisesse se livrar de um vizinho ou rival odiado precisava apenas escrever seu nome com a devida acusação num pedaço de papel e colocá-lo na caixa postal. Pessoas suspeitas da mais leve falta eram arrastadas à câmara de tortura e obrigadas a confessar sua aliança com o Demônio. Quem chegava à câmara de tortura podia contar que só sairia de lá aleijado ou morto.”
Inês, encarnada esplendidamente pela cada vez mais talentosa Natalie Portman (que já está fazendo por merecer o primeiro Oscar de sua carreira), é uma linda garota da classe alta que serve como modelo para as pinturas de Goya. Em um dia qualquer, numa taverna, é vista recusando-se a comer porco. Os gênios da batina, amestrados para as suspeitas mais absurdas, concluem: ora ora, essa menina está com suspeitíssimos Hábitos Judeus! Que perigo! Ela é chamada para dar as devidas explicações para as autoridades da Igreja e diz o óbvio: “mas diacho, eu não como porco porque não gosto do sabor!” Os sábios senhores manda-chuvas da Igreja Católica, claro, sedentos pelo sangue das bruxas, querendo aumentar o número de incréus queimados nas fogueiras, como maneira de dar um bom exemplo para o público, tornando o mundo todo cada vez mais Temente a Deus, obviamente não acreditam. A menina certamente é uma Agente Secreta do Judaísmo! Ora essa, não comer porco! A pobre moça, jovem, linda e radiante, é então torturada da maneira mais sádica e grotesca possível, levada a confessar seu “crime” e finalmente mantida presa por 15 anos na escuridão das catacumbas, nua e acorrentada, lentamente caindo na loucura, pois assim quiseram os Honráveis Representantes de Deus na Terra. Que tempos aqueles!
“Quando uma feiticeira confessava o seu delito, era evidentemente culpada. Quando se calava, era o Diabo que lhe conferia forças para resistir, e sua boca era violentamente dilacerada com certos instrumentos. Se gritasse, considerava-se isso como uma manobra para enganar. Se ela não gritasse, isso era considerado uma prova de sua obstinação. Se ela sucumbisse sob tortura, isso significava que o Demônio fora expulso. Se ela se afogasse na prova da água, era inocente, porém se não se afogasse era culpada, pois a água pura não a havia aceito. Todos esses detalhes constavam das instruções oficiais da Igreja no Malleus maleficarum, o “Martelo das Bruxas”. Se uma bruxa confessava sua culpa, era misericordiosamente liberada de suas penas por estrangulamento ou por decapitação. De outro modo, continuava a ser submetida a ferros em brasa, seus seios eram abertos com instrumentos especiais tipo “aranhas”, suas mãos eram cortadas até que, finalmente, elas eram queimadas vivas nas fogueiras. Procedia-se à tortura em si em várias etapas, desde o uso de parafusos para os polegares até a distensão pela roda do corpo inteiro. Alguns dos pecadores eram lançados de construções elevadas até que a maioria dos ossos se destroçassem, ou então esses eram quebrados um a um. As feiticeiras tinham que montar no “burro espanhol” ou na “cadeira de virgem”, e depois eram regadas com enxofre escaldante ou com óleo fervente."
No filme, Goya (interpretado pelo ótimo Stellan Skarsgård, que conhecemos de Dogville) não é exatamente o Heróico Salvador da Donzela Injustamente Condenada, mas sim o Homem Poderoso Que é Chamado a Intervir Pela Família da Supliciada. Pois Goya era um Cara Com Contatos. Goya tinha Influência Lá No Alto. Goya estava sempre nas cortes, pintando retratos da Rainha, podendo falar diretamente com o Rei, amigo de gente do primeiro escalão no Clero. E ele conhecia Inês, apenas uma das milhares de mulheres e moças que estavam sendo torturadas e aprisionadas e obrigadas a confessar as coisas mais absurdas pelo Sadismo Irrefreável da Igreja Católica.
“Os servos torturadores faziam anotações sobre os seus progressos a cada nova vítima. Um protocolo do ano 1672 dizia o seguinte: “...utilização de botas espanholas. Primeiro o parafuso da direita ajustado, depois o esquerdo. Ela grita: ‘Querido Jesus, ajuda-me, nada tenho a confessar mesmo se me torturarem até a morte’. Os parafusos continuam a ser apertados. Ela diz que não é uma bruxa. O parafuso da direita é torcido. Ela grita bem alto: ‘Querida mãe, vem e me salva, ó Jesus, ajuda-me’. Assim continua a tortura, e os parafusos são torcidos mais dezesseis vezes, até que seu corpo fica rijo. Então a sua boca é dilacerada para que possa confessar a sua culpa. Porém ela só urra como um cachorro”. Quando amigos ou parentes das vítimas escreviam aos juízes para declarar a inocência dos réus, tornavam-se suspeitos. As bruxas eram forçadas a fazer as mais estranhas confissões durante os processos; diziam, por exemplo, ter comido crianças ou cadáveres, voado em vassouras ou “tirado leite do cabo de uma faca”. Confessavam ainda ter matado pessoas com seu mau-olhado ou ter tido relações sexuais com o Demônio. ”
Uma das cenas-chave do filme, absolutamente genial, mostra a família de Inês em uma calorosa discussão com o representante da Igreja (Javier Bardem, aquele do Mar Adentro...) que vem trazer as más notícias: “olha, meus bons senhores, sua filhinha confessou “sob interrogatório” seus Hábitos Judaizantes e agora não vai ser fácil livrá-la das garras ávidas por sangue da Igreja!” E aí o ricão, o pai de Inês, numa cena sou-durão-pra-cacete que não fica longe dos Melhores Momentos de Macheza de John Wayne ou Clint Eastwood nos velhos westerns, pega o padreco, que obviamente nunca havia sido vítima de tortura, e faz com que ele tenha um... digamos... Gostinho da Experiência.
Fica provado o que todo mundo sabe: que, sob tortura, qualquer ser humano acaba por confessar qualquer absurdo que lhe mandem - pois o importante é que a porra da dor PARE. Não somos tão amantes da verdade assim para nos sacrificarmos a esse ponto por elas. O padreco assina então uma confissão que diz mais ou menos assim: “na verdade eu sou filho bastardo de um macaco com um chimpanzé e entrei para o Santo Ofício só pra bagunçar o coreto...”. É um momento bem cômico do filme, gostoso de ver, A Queda Da Autoridade Arrogante Que Advogava a Favor da Bárbarie, mas ao mesmo tempo é algo que gera um Documento Sério e Importante. Ter a assinatura de um padre numa confissão de “macacalidade” não é pouca coisa! Pois ali está a Prova Concreta de que os Métodos de Interrogatório da Igreja obviamente não são assim tão válidos e que as confissões arrancadas sob tortura obviamente não são dignas de crédito. E você, não confessaria até ter matado sua vovózinha a machadadas se a Igreja Maluca te torturasse miseravelmente?
(Outro detalhe histórico interessante é a Preferência que a Igreja tinha por torturar, aprisionar e queimar vivas as MULHERES muito mais que os Homens. O Chris fala coisas legais sobre isso também, ó: “O deus do Velho Testamento não precisava de nenhuma ajuda feminina para gerar filhos. Ele criou o primeiro homem de um simples pedaço de barro. Somente mais tarde, veio-lhe a idéia de criar também uma mulher, e o fez a partir da costela do homem. Portanto, a mulher é secundária e pode ser reproduzida de uma parte do homem. Seria quase impossível conceber uma história da criação que vá mais ao encontro da vaidade e da presunção masculinas. Todas as religiões monoteístas paternalistas (a cristã, a maometana e a judaica) desde as suas bases são distorcidas a favor do homem e da mentalidade masculina. Isso em parte se explica pelo fato de que todos se originaram de tribos nômades, que sobreviviam em regiões desertas e inóspitas. Nesse ambiente, as virtudes masculinas eram com frequência mais importantes para a sobrevivência do que as femininas.”)
A Igreja, é claro, com milênios de dogmatismo cego e intolerância absoluta nos ombros, obviamente não iria admitir tão fácil assim a ineficácia ou a imoralidade de seus “Santos Métodos de Obtenção de Informação” (diria o Simão: “tucanaram a tortura!”). Ao invés de admitir que as pobres crianças martirizadas estavam apodrecendo nas catacumbas injustamente por causa de confissões absolutamente inválidas e arrancadas à força, eles lançam o anátema sobre o padreco herege que ousou confessar que era um macaco. Como ele ousa?!? É triste mas é verdade: nesta Obra-de-Arte de tio Milos Forman não há nenhuma concessão às Soluções Emocionalmente Agradáveis e a Pobre Moça Injustiçada não é salva do Tenebroso Vilão Diabólico, a Igreja Católica. 15 anos de cadeia para a moça e, depois, é claro, a Loucura Perpétua. Imaginem que a Inquisição durou 3 séculos, que matou umas 3 milhões de pessoas e que estamos falando, olhem só, de uma Sobrevivente! Imaginem a Dimensão Inimaginável e Grotesca do Horror. Se houvesse um combate entre a Inquisição e o Holocausto pelo Prêmio de Vergonha Suprema da Humanidade, eu não saberia em quê votar.
Goya, sozinho, seria incapaz de deter o avanço grotesco do Moedor de Carne Humana da Inquisição, claro, e ele nem era assim tão rebelado contra o treco – até porque podia acabar na grelha também! Quem acaba servindo de Aparente Salvação é ele, o bom e velho Napoleão, que faz seus exércitos marcharem sobre Madri, como mais um pit-stop na Campanha Para a Disseminação da Boa Nova Chamada Revolução Francesa, e dá um basta no SuperPoder da Igreja, e vai lá e instala seu próprio irmão no trono espanhol, e rolam as cabeças do Velho Regime, amém! Mas claro que os exércitos napoleônicos não são descritos como os Nobres Benfeitores que vieram trazer a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade a uma nação antes afundada nas Trevas do Dogmatismo Cristão – pois o banho de sangue que é a invasão francesa não é menos terrificante do que o terror cotidiano antes perpetrado pela Igreja. Goya, por sinal, que na época da invasão napoleônica já estava surdo, serviu como uma testemunha ocular para todos os horrores perpetrados pelos invasores, tendo criado algumas de suas maiores obras-primas retratando o Terror daqueles Tempos Conturbados.
Se o filme é bom? Eu achei excelente, impecável, maravilhoso (juro que não entendo os críticos que andam malhando com tanta severidade esse filmaço – 29% no Tomates Podres é Heresia!). Sombras de Goya é ao mesmo tempo comovente e chocante; ao mesmo tempo uma Aula de História (e com quê Retrato Realista do Banho de Sangue!) e uma Peça Trágica Quase Shakesperiana; um filme que comove, que revolta, que nos faz sentir intensamente coisas como Indignação, Compaixão e Deslumbramento... Um dos melhores filmes do Milos Forman (um cara que eu admiro e que é também o dono do crássico Um Estranho No Ninho, olhem só!), uma das melhores interpretações da Natalie Portman (Oscar nela!) e um dos grandes dramas históricos da Década. O tipo de filme que até o Victor Hugo adoraria ver: personagens notáveis e marcantes envolvidos numa Enorme Trama Histórica Que os Ultrapassa e Os Arrasta. Colossal!
(9.2 / 10.0)
(p.s.: entre aspas e com cor diferenciada são citações de Christopher Markert, dum livro que eu li faz tempo - achei bom pôr aqui pra Fornecer Uma Contextualização pro filme...)