sexta-feira, 31 de julho de 2009

:: it's all surmountable ::

Is this just another day? In this god forgotten place.
First comes love and then comes pain. Let the games begin.
Questions rise and answers fall. Insurmountable.

Love boat captain, take the reigns.
And steer us towards the clear. Here.
It's already been sung but it can't be said enough.
All you need is love.

Is this just another phase? Earthquakes making waves.
Trying to shake the cancer off. Stupid human beings.
Once you hold the hand of love it's all surmountable.

Hold me and make it the truth.
That when all is lost there will be you.
Cause to the universe I don't mean a thing.
And there's just one word I still believe.
And it's love.

It's an art to live with pain.
Mix the light into grey.
Lost nine friends we'll never know.
Two years ago today.
And if our lives became too long
would it add to our regret?

And the young they can lose hope
cause they can't see beyond today.
The wisdom that the old can't give away.
Hey, constant recoil.
Sometimes life don't leave you alone.

Hold me and make it the truth.
That when all is lost there will be you.
Cause to the universe I don't mean a thing.
And there's just one word that I still believe and it's love.
Love. love. love. love.

Love boat captain take the reigns. Steer us towards the clear.
I know it's already been sung. Can't be said enough.
Love is all you need. All you need is love.
Love. Love. Love.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

:: dos poemas que amamos juntos... ::

...e sabendo que amar-sozinho é quase um crime.


O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a demais por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

(Alberto Caeiro)

* * * * *

“Que eu não veja empecilhos na sincera
união de duas almas. Não amor
É o que encontrando alterações se altera
Ou diminui se o atinge o desamor.
Oh, não! Amor é ponto assaz constante
Que ileso os bravos temporais defronta.
É a estrela guia do baixel errante,
De brilho certo, mas valor sem conta.
O Amor não é jogral do Tempo, embora
Em seu declínio os lábios nos entorte.
O amor não muda com o dia e a hora,
Mas persevera ao limiar da morte
E, se se prova que num erro estou,
Nunca fiz versos nem jamais se amou.”

(Let me not to the marriage of true minds
Admit impediments. Love is not love
Which alters when it alteration finds,
Or bends with the remove to remove.
Oh, no! It is an ever-fixed mark
That looks on tempests and is never shaken,
It is the star to every wand’ring bark,
Whose worth’s unknown, although his height be take
Love’s not time’s fool, though
Rosy lips and cheeks
Within his bending sickle’s compass come
Love’s alters not with his brief hours and weeks.
But bears it out even to the edge of doom
If this be error and upon me prov’d
I never writ, nor no man ever lov’d. )

(William Shakespeare)

sábado, 18 de julho de 2009

:: pensamentitos! ::

:: PENSAMENTINHOS ::
metidos a bonitos.


Li em algum lugar que, sobre a felicidade, só se pode pronunciar um moribundo: às beiras da morte, ele olharia para todo seu passado, para o arco completo de sua vida, e bateria o martelo do juízo: se seu viver foi ou não bem-sucedido... E eu, que sinto ganas de berrar de felicidade agora mesmo, quando ainda sou jovem e tenho pulmões sadios, quando trago nas veias amor corrente e no peito um coração comovido, cometerei o erro de cantar vitória antes da hora? Ora, ora, mas toda hora é hora de cantar vitória! E hoje sinto como se não precisasse mais, como o maratonista precisa da linha de chegada, ou o piloto da bandeirada, esperar o fim raiar, para só então comemorar... Não preciso que a morte chegue, ela que não vai me deixar língua para cantar, nem coração para se alegrar, antes de afirmar: viver valeu a pena! Ainda que a pena não tenha sido pequena.

Ando achando besteira dizer que o sucesso de uma vida só se pode julgar quando seu percurso está completo. Acaso só podemos dizer que é belo um cometa só depois dele ter terminado seu passeio pelo firmamento?! E uma festa, só pode ser julgada porreta quando se vai o último convidado e entra a faxineira? Eu, me desculpem, bato palmas agora mesmo! Até porque nem acho que a morte 'tá com essa bola toda...

De hoje em diante, a pergunta "a vida vale a pena ser vivida?" se desfaz em pó, como a estátua de pés de barro que era, como um bloco de gelo, derretido por um nascido sol, e que se torna água, líquido nada... A vida mesma respondeu-a, pela via das delícias, com um "mas é claro!"

E em mim o Nada perdeu seu fascínio. "Between nothing and grief, i choose grief!" – dizia o Faulkner, citado por Godard ao fim de Acossado. E é isso: a vida, ainda que doa, me soa sempre preferível ao nada, que pra mim é coisa que não tem graça nenhuma... Quer coisa mais besta que o nada? Quer coisa mais interessante, ainda que por vezes bizarra e dolorida, que a vida?

Hoje experimento essa novidade tão bem-vinda: a sensação de ser capaz de amar a vida. Não vejo na morte nem a panacéia, nem uma causa de infinita angústia, mas um suave fechar de cortinas que deve encerrar uma jornada bem vivida. "Vou pro céu com os pés no chão", canta o Karnak... e é esse o espírito!

* * * * *

A ETERNA NOVIDADE DO MUNDO

"Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir – é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida. Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção – isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos. Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão." (FERNANDO PESSOA)

Por detrás do morro do futuro, o que há? Nem sofro tanto pela condenação a nunca poder sabê-lo. Meu coração ama melhor quando ama curioso... Quando caminha, ao mesmo tempo apressado e cauteloso, na direção das surpresas contidas nos amanhãs. Aberto à eterna novidade do mundo. Vivendo no presente, não a temer os monstros que podem saltar desse negro vazio que chamamos de futuro, mas indo ao alegre encontro das novidades que os amanhãs inevitavelmente trarão. Que elas, as novas, boas ou más, nos encontrem convidativos e hospitaleiros, certos de que o Sol que nasce hoje não é o mesmo que ontem se pôs, e que a caneta da vida ainda está em nossas mãos, mortiça, perdendo tinta, pulsante de urgência, acessível para que rabisquemos um destino, um desenho, uma alegria, um sorriso...

* * * * *
a irremediável novidade dos segundos

este segundo, nunca houve.
nunca tinha havido.
jamais um igual,
no passado ou no futuro.
ainda que o poeta seja pobre,
e que pessoa o tenha melhor exprimido,
é fato, caro leitor, que jamais em tua vida
tinhas passado segundos
como passou estes.
e os anteriores.
e os próximos.
e todos os que virão.
e todos os que vieram.
todos, todos, todos!
segundos são sempre novos.
segundos são sempre recém-nascidos.
segundos são sempre portadores de ineditismo!

só não nota a eterna novidade de tudo
quem nega-se a descer, docemente, a corrente.
e se petrifica em estátua,
e se enrijece em pedra,
vivendo como se o Tempo fosse velho,
quando, pelo contrário,
ele é a própria Eterna Novidade!
enquanto os que possuem consciência dinossáurica,
fóssil, pesada, antiquada,
óssea, esqueletária, de cemitério,
dizem do Tempo:
“isso é coisa velha! e Ele é sempre o mesmo!”

nós, os serelepes, os de olhos sem vendas,
os que temos pés leves,
dionisos ébrios de vida,
almas livres amantes de quebrar correntes,
arregalamos os olhinhos pasmos,
abrimos amplamente as consciências boquiabertas,
e saudamos o Tempo, com um abraço,
sabendo que ele traz sempre o frescor glorioso do novo.

tudo sempre se desenrola
num eterno agora.

:: o riso dos demônios e o riso dos anjos ::



"Em sua origem, o riso pertence ao domínio do diabo. Existe alguma coisa de mau (as coisas de repente se revelam diferentes daquilo que pareciam ser), mas existe nele também uma parte de alívio salutar (as coisas são mais leves do que pareciam, elas nos deixam viver mais livremente, deixam de nos oprimir sob sua austera seriedade).

Quando o anjo ouviu pela primeira vez o riso do demônio, foi tomado de estupor. Isso se passou num festim, a sala estava cheia de gente e as pessoas foram dominadas umas após as outras pelo riso do diabo, que é horrivelmente contagiante. O anjo compreendeu claramente que esse riso era dirigido contra Deus e contra a dignidade de sua obra. Sabia que tinha que reagir rapidamente, de uma maneira ou de outra, mas sentia-se fraco e sem defesa. Não conseguindo inventar nada, imitou seu adversário. Abrindo a boca, emitiu sons entrecortados, descontínuos, em intervalos acima de seu registro vocal... mas dando-lhe um sentido oposto: Enquanto o riso do diabo mostrava o absurdo das coisas, o anjo, ao contrário, queria alegrar-se por tudo aqui embaixo ser bem ordenado, sabiamente concebido, bom e cheio de sentido.

Assim, o anjo e o diabo se enfrentavam e, mostrando a boca aberta, emitiam mais ou menos os mesmos sons, mas cada um expressava, com seu ruído, coisas absolutamente contrárias. E o diabo olhava o anjo rir, e ria cada vez mais, cada vez melhor e cada vez mais francamente, porque o anjo rindo era infinitamente cômico.

Um riso ridículo é um desastre. No entanto, os anjos ainda assim obtiveram um resultado. Eles nos enganaram com uma impostura semântica. Para designar sua imitação do riso e o riso original (o do diabo), existe apenas uma palavra. Hoje em dia nem nos damos conta de que a mesma manifestação exterior encobre duas atitudes interiores absolutamente opostas. Existem dois risos e não temos uma palavra para distingui-los.

* * * * *

"...não riem de nada de preciso, o riso delas não tem objeto, é a expressão do ser que se alegra em ser. Do mesmo modo que, pelo seu gemido, a pessoa que sofre prende-se ao momento presente de seu corpo que sofre (e fica inteiramente fora do passado e do futuro), também aquele que explode nesse riso extático fica sem lembrança e sem desejo, pois lança seu grito no momento presente do mundo e só quer saber desse momento.

Vocês certamente se lembram desta cena por tê-la visto em dezenas de filmes ruins: uma moça e um rapaz se dão as mãos e correm numa bela paisagem de primavera (ou de verão). Eles correm, correm, correm e riem. O riso dos dois corredores deve proclamar para o mundo inteiro e para os espectadores de todos os cinemas: nós somos felizes, estamos contentes de estar no mundo, estamos de acordo com o ser! É uma cena idiota, um clichê, mas ela exprime uma atitude humana fundamental: o riso sério, o riso além da brincadeira.

Todas as Igrejas, todos os fabricantes de lingerie, todos os generais, todos os partidos políticos estão de acordo a respeito desse riso e todos se precipitam para colocar a imagem desses dois corredores risonhos nos cartazes onde fazem propaganda de sua religião, de seus produtos, de sua ideologia, de seu povo, de seu sexo e de seu sabão de lavar louça.”

--- MILAN KUNDERA
--- O Livro do Riso e do Esquecimento.

:: filoso-viagem - "invertendo mallarmé" ::

(barbara kruger)


"A carne é triste e já li todos os livros..."
MALLARMÉ


São estas algumas das "palavras imortais" da Poesia Francesa, me garantem os entendidos. Um daqueles versos “antológicos” do idioma (o que abriria espaço para a piada, aliás meio escrota, de que o autor é, ora pois, uma comprovada anta). Achei-o tristíssimo, o verso, quando primeiro me deparei com ele - eu que infelizmente já trago no peito tendências a enxergar a tristeza das coisas, inclusive dos palhaços e dos carnavais... imaginei o autor como um espécimen sombrio como o breu, sofrendo do spleen de Baudelaire, mais fúnebre que um conto de cemitério de Edgar Allan Poe... “A carne é triste e jamais leremos todos os livros”! Que dor não parecia vir aí, escondida neste dito tão desconsolado! Dito que eu não me surpreenderia se viesse num epitáfio de um maníaco-depressivo ou como última sentença de um bilhete suicida... Ao mesmo tempo, sentir o próprio corpo como fonte de tristeza e a vida do “intelecto” como infértil e insossa?!? Hélas! Há labirinto mais tenebroso? Ser Pascal e Fausto, ao mesmo tempo, que imenso fardo!

Diria, até, que é tão tristonho, o verso, que mereceria ser dito: “é de cortar os pulsos!”. Mas eu não creio que se corte os pulsos por causa de versos. Apesar de saber que os escritores de versos, e os leitores deles, por vezes cortam-nos, apesar do pavor das lâminas, quando a dor aperta tanto que o nada soa mais doce que a vida...

A poesia, que eu saiba, não cria as dores da vida que ela relata – é, no máximo, um foco de luz. É: há desses que lançam focos de luz na escuridão que descobrem, e o que vemos não é a luz que jogam, mas a escuridão que descobriram.

Mas o que eu queria, aqui, era polemizar um pouco com o verso antológico. Porque, se a carne fosse de fato triste, ou seja, se isso fosse fato comprovado, como o 2+2 que dá vocês-sabem-quanto, o que fazer do viver seria problema bem simples: melhor seria jogar fora logo duma vez essa desgraça, esse vaso de dores e mal-estares, esse corruptível cadáver adiado, esse antro do pecado! Se a carne fosse triste, e sempre triste, de uma tristeza inelutável, inescapável, melhor seria pular logo no túmulo, beber a cicuta, mandar parar esse grotesco carrossel e ir no nada buscar o alívio de ao menos não sentir... Os niilistas estariam certos, coisa que eu nunca achei que estivessem.

Pois, me perdoem os trágicos, toda essa dramaticidade se esboroa frente, por exemplo, a um picolé, quando o dia é tórrido, ou uma banheira de hidromassagem, quando entramos nela bem-acompanhados. São coisas que nos ensinam, ó pobres de nós, o quanto a carne pode ser alegrável, o quanto o deleite pode ser sincero, o quanto a vida pode ser bela. Estar na mesma banheira com a mulher amada, ou fazer amor com nossa melhor amiga, quer prova mais inconteste de que a carne pode ser simpática, jovial e adorada?

Viver é essa complicação, claro, e é esse fascínio, justamente por este imbróglio, essa gororoba de prazeres e tormentos, essa mistureba entre os que nos exalta e o que nos atormenta! Nada, nunca, em "pureza"! Sempre gotas de limão em nosso açúcar! Sempre um certo amargume no chocolate! Mas e daí? Se a vida fosse só felicidade, que baita monotonia! Se tudo fosse sempre doce, que enjôo, que enfado, que sensaboria!

Tenho deixado, pois, sem resistências, até mesmo contra os poetas e suas melancolias assassinas, que os picolés e os amores me ensinem que a vida pode ser doce e bela – ainda que eles rápido derretam e ainda que meus lábios não sejam eternos...

A carne é problema, e possibilidade de glória. Carne condenada à morte, carne votada à vida. Capaz de exaltar-se e de atingir as mais luminosas alegrias, e capaz de doença, de ódio, de sofrimento, de mil modos de ser ferida... A carne: um bem ou um mal? A religião, de seu lado, fica aí, fazendo da carne um antro do pecado, algo a ser negado, degradado, cuspido, reprimido, poupado, em prol da tão superior vida do espírito, em nome duma quimérica vida paradisíaca no além-túmulo! No extremo oposto, os “hedonistas” em geral, que fazem da carne um palácio de mil delícias, que nos possibilita tantos gozos e deleites, na cama, na mesa, nos campos, ouvindo sinfonias, lendo poemas, acariciando a mulher amada!... E as seitas se dividem, e se digladiam, sem que jamais se suspeite que a resposta está em substituir, neste a carne é um bem ou um mal?, este "ou" por um "e"... A soma ao invés da exclusão! A união dos contrários ao invés da escolha por um dos pólos!
Percamos, pois, nosso pavor da carne, que é tudo que somos, que é nossa morada e nossa vida! Chutemos para escanteio, de vez, a mentira do espírito! Assumamos, enfim, que não temos alma, a despeito do que dizem os padres e os Cristos, e que isso não torna a vida menos deleitável, nem a sabedoria menos buscável e sorvível! Aterrisar no corpo, seria acaso avião descendo em aeroporto proibido? Seria infringir as leis cósmicas de trânsito? Arrancaria de Deus um gemido de lamento? Ah, céus, se a moda pega! Que aconteceria com os conventos!?! Se a notícia circula, aí tamos fritos! Qual daquelas noviças ainda não rebeldes ficaria auto-enjalada lá dentro, se lhes fosse ensinado que a carne pode ser bela? Não o vaso do demônio, não o palco do pecado, não o antro do vício e do desmazelo, mas nosso único aliado, nosso alicerce e sustentáculo, nosso companheiro perpétuo e introcável, capaz de êxtase e alegria, assim como de doença e envelhecimento! Palco onde se desenrola o mais maravilhoso e o mais grotesco, o mais deleitoso e o que mais nos machuca e desnorteia. O corpo é constelação!

Só me abraço à Mallarmé, pois, depois de botá-lo de ponta-cabeça; ou de escrever, na outra face da moeda, exatamente o oposto do que ele escreveu na de cima. E foi assim que me fiz um novo lema:

A CARNE É ALEGRE E JAMAIS LEREMOS TODOS OS LIVROS.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Maybe I'm Amazed

Baby I'm amazed at the way you love me all the time
Maybe I'm afraid of the way I love you
Baby I'm amazed at the the way you pulled me out of time
Hung me on a line
Maybe I'm amazed at the way I really need you

Baby I'm a man and maybe I'm a lonely man
Who's in the middle of something
That he doesn't really understand
Babe I'm a man and maybe you're the only woman
Who could ever help me.
Baby won't you help me understand?

quarta-feira, 8 de julho de 2009

:: Pride & Prejudice (o livro!) ::


JANE AUSTEN,
Orgulho e Preconceito

(Pride And Prejudice [1813],
Penguin Books, 428 pg.)

AMOR À ÚLTIMA VISTA
- notas de leitura -


Foi-me preciso engolir muito orgulho e vencer muito preconceito para topar encarar este romance-para-moças, leitura tão indigna para homens viris! Jane Austen, porém, me foi recomendada com empolgação por fontes tão dignas de crédito, que eu quis vencer minha tendência ignorantona a considerá-la como literatura de mariquinha, altamente kitsch e salta-pocinhas, e ir checar na fonte se a qualidade desta obra era mesmo inegável. Mergulhar nesta literatura, hoje reconhecida como das mais brilhantes da língua inglesa, a ponto de ser inserida por Harold Bloom entre as obras mais importantes do Cânone Ocidental, é descobrir uma autora de gênio na crônica social e no desvelamento psicológico da gente de seu tempo – e que possui, no fundo, uma mordaz ironia. Tudo isto salva sua obra de ser romantismo ingênuo para o consumo de moçoilas que esperam pelo príncipe encantado, tornando-a um clássico da literatura universal.

Jane Austen nos apresenta a um mundo hoje desaparecido e demodé. Um tempo onde o complexo processo de cortejar uma virgem virtuosa e bem-nascida demandava dos rapazes esgrimas “retóricas” espantosas. (Meus caros, chamar isso de “xaveco” é uma ofensa à complexidade inominável dos processos de sedução e persuasão em jogo!). Um tempo onde as moçoilas, sempre muito pudicas, ainda ruborizavam frente a olhares viris mais atrevidos e mantinham seus corpos muito bem escondidinhos detrás de pesados vestidos, véus e rendados. Um tempo em que os cavalheiros, sempre muito bem-trajados e polidos, se punham de joelhos para beijar com delicadeza a mãozinha enluvada das dondocas. Um tempo em que mamães casamenteiras dedicavam suas vidas à missão de casar seus rebentos com “homens honestos, ricos e de bom nascimento”. Um tempo onde todo um complexo jogo social, repleto de fofocas, fuxicos e boatos, envolvia os arranjos de matrimônio, e onde os interesses materiais eram levados em consideração até mais do que os afetos (apesar destes terem, também, um pouco de lugar).

Confesso, a princípio, que tive uma certa dificuldade para não ler com ironia toda essa finesse, esses hábitos tão civilizados, essas civilidades tão polidas, esse nhém-nhém-nhém aristocrático, que enche estas páginas tão maravilhosamente escritas, mas que podem soar, às vezes, tão afetadas e artificiais. Os personagens de Jane Austen são sempre, mesmo os mais atrevidinhos, repletos de pudicícia, desvelos, frescuras, ornamentos de linguagem e mil uma formas de ostentar sua “alta classe”.

É um mundo bem estranho às minhas peregrinações literárias mais frequentes, que normalmente vão dar em bodegas mais trash e bairros malsãos de cidades pestíferas. Minha juventude, eu passei na companhia dos junkies pirados de William S. Burroughs, dos fodidos-na-vida de Henry Miller, dos maníacos sexuais de Philip Roth, dos niilistas-sem-cura de Céline, das diabólicas maledicências poéticas de Rimbaud, Baudelaire e Lautreámont... Entrar no “ambiente” de Jane Austen, depois de ter passado tanto tempo na companhia desses insanos, é como visitar um palácio hi-class todo brilhoso e chique, depois de ter dormido por várias madrugadas na sarjeta, lambido pelos vira-latas e acordado pelos lixeiros.

O preciosismo, a delicadeza, a polidez irreprochável desses personagens é algo espantoso: não se acha em Jane Austen nem um grãozinho de grosseria ou truculência. Essa é a literatura de uma verdadeira lady! Até mesmo nos momentos em que os personagens precisam se dizer coisas desagradáveis e machucantes, o fazem de um modo extremamente classudo. O mais hilário dos exemplos é o do Mr Collins que, ao recusar um conselho de Elizabeth, faz mil piruetas retóricas para justificar sua “falta de educação”: “Pardon me for neglecting to profit by your advice, which on every other subject shall be my constant guide, though in the case above us I consider myself more fitted by education and habitual study to decide on what is right than a young lady like yourself...” (pg. 109). Très, très refiné!

Rachel Browstein, no estudo que dedica a Austen no Cambridge Companion, destaca que a leitura predileta de Jane Austen eram estas “ficções domésticas centradas em heroínas do sexo feminino” do tipo que se tornaram populares com os romances açúcarados de Richardson, Clarissa (1747) e Pamela (1742). Eram obras “severamente criticadas moral e esteticamente” pelos críticos de literatura, principalmente por serem “deliberadamente didáticas” no sentido de tentar “conscientemente instaurar padrões de moralidade”. Estes livros – apelidados de courtship novels - “davam aulas” às mocinhas sobre as engrenagens do cortejo masculino a uma virgem pudica e virtuosa, ressaltando sempre como ela deveria agir para manter-se digna e não sucumbir nem aos vícios da carne, nem às perfídias dos homens que são lobos em pele de cordeiro.

Mas o que faz Jane Austen ser um nome de tanto destaque na literatura dos últimos séculos é talvez o fato dela não ter sido uma mera repetidora destas fórmulas novelescas, mas sim a gênia que recriou o “romance-para-moças” através de um olhar que, além de espetacularmente sagaz e perceptivo, traz uma carga de ironia fortíssima. E não se trata de uma ironia fútil nem de um humor superficial, feito de palhaçadas e gracinhas, mas de um procedimento literário que besunta de alegre ironismo o “clima” dessas páginas tão deleitosas. “The seriousness of her irony baffles those readers who think wit must be either decorative or definite”, aponta Browstein, confessando que considerado esta “playful and purposeful irony” como a “coisa mais importante em Jane Austen” (pg. 34).

* * * * *

ELIZABETH BENNETT

Elizabeth Bennett, “heroína” de Pride and Prejudice, é sem dúvida a mais fascinante e adorável personagem do livro – e nela, talvez, Jane Austen construiu uma das “criaturas” que melhor encarna esta “playful and purposeful irony” à qual Browstein se refere. Frente à frivolidade das irmãzinhas, que mal largaram a chupeta e já saíram à caça de oficiais, querendo garfar um ricaço bonitão para um matrimônio que idealizam que será sublime, Lizzie mostra-se muito mais complexa, madura, sarcástica e sagaz.

Seu senso-de-humor é um dos mais afiados dentre todos os personagens do livro (“I dearly love a laugh!”, diz), e não é surpresa que ela, a princípio, antipatize tanto com Darcy, que mostra-se circunspecto, calado, antipático e funebremente sério. Mas o humor de Lizzie não impede que ela seja, no fundo, uma mulher extremamente “ética” - daquelas que não usa a ironia para massacrar o que é “sábio” e “bom”, mas somente para alfinetar o que vê como frívolo, tolo, hipócrita e vicioso. Isso fica bem descrito neste magistral diálogo:

DARCY: “The wisest and the best of men, nay, the wisest and best of their actions, may be rendered ridiculous by a person whose first object in life is a joke.”

ELIZABETH: “Certainly. There are such people, but I hope I am not one of them. I hope I never ridicule what is wise and good. Follies and nonsense, whims and inconsistencies do divert me, I own, and I laugh at them whenever I can.”


(pg. 62-63)

Entre essas 5 irmãs, Elizabeth é a única que demonstra ter uma vida subjetiva mais rica e variada, uma alminha mais judiada por angústias de pequenez (“What are men to rocks and mountains?”, exclama a certo ponto) e que reclama de malesque só ela em Orgulho e Preconceito parece sentir: “disappointment and spleen” (pg. 174).

É também deliciosamente insubmissa, em certas ocasiões, como nas saborosas cenas em que confronta Lady Catherine De Bourgh, a nojenta e autoritária dama da alta-classe que trata os Bennetts como se fossem vira-latas. “She [Elizabeth] had heard nothing of Lady Catherine that spoke her awful from any extraordinary talents or miraculous virtue, and the mere stateliness of money and rank she tought she could witness without trepidation” (pg. 182), conta a narradora.

Adoro isso: que Elizabeth não se torne baba-ovo de socialite escrota nenhuma só por ela ter grana e poder! Adoro que ela seja capaz de enfrentar “sem trepidar” uma “nobre dama” que faz com que os outros se intimidem e abaixem as cabecinhas! “Elizabeth suspected herself to be the first creature who had ever dared to trifle with so much dignified impertinence” (pg. 187), escreve Austen – e, lendo essa frase, não fiz nada menos que vibrar! Como frente a um lindo gol do meu time do coração em final de campeonato.

* * * * *

WIT AND VIRTUE

O fato de Elizabeth ser a união da mais esperta sagacidade (she's so witty!) e da mais conscienciosa “preocupação moral” se confessa um pouco na admiração que ela não cessa de nutrir por sua irmã Jane. Em Orgulho e Preconceito, Jane Bennett é a criatura mais angelical e irrepreensivelmente bondosa, e Elizabeth não pára de elogiar as virtudes de sua maninha, sem o mínimo sinal de ciúme ou raiva (no quê Austen, me parece, demonstra não ser lá uma pHd em psicologia “fraternal”: onde já se viu irmãs se darem assim tão bem, cáspita?!?)

De certo modo, Jane Bennett parece uma abençoada criatura que está sempre “de bem com a vida” e com sua própria consciência, sempre repleta de “cheerfulness” e dotada desse caráter privilegiado (que Jane Austen descreve lindamente): “the serenity of a mind at ease with itself, and kindly disposed towards every one, that had been scarcely ever clouded” (pg. 209).

ELIZABETH PARA JANE: “Your sweetness and desinterestedness are really angelic. (...) I feel as If I had never done you justice, or loved you as you deserve. (...) You wish to think all the world respectable, and are hurt if I speak ill of anybody.” (pg. 153) O fato de admirar na irmã esse tendência a “achar que todo mundo é bonzinho” e de ver tudo “sob a melhor luz” não impede que Elizabeth se manifeste contra essa noção de um “bom-mocismo generalizado”.

Elizabeth têm um olhar mais lúcido, que descobre os vícios e defeitos dos humanos com um realismo penetrante, acabando por parecer um tanto amarga e desiludida em relação à ingênua jovialidade da irmã Jane: “The more I see of the world, the more I am dissatisfied with it; and every day confirms my belief of the inconsistency of all human characters, and of the little dependence that can be placed on the appearance of either merit or sense.” (153)

Elizabeth, apesar de presa na teia de convencionalismo que a rodeia – e que faz com que todas as moças desejem um casamento (claro que monogâmico e vitalício!) com um homem "honesto" e de "bom nascimento", como papai e mamãe exigem! - é uma mulher que traz em si uma "insubmissão interior" bem mais pronunciada do que suas "silly little sisters". Por isso, como Harold Bloom escreve no Cânone Ocidental, ela é uma das “grandes heroínas de Jane Austen” (junto com Emma, Fanny e Anne), já que elas “possuem tanta liberdade interior que suas individualidades não podem ser reprimidas”.

Mulher ambiciosa e orgulhosa de sua inteligência e sarcasmo, Elizabeth tem uma língua à qual não falta veneno nem sagacidade. Há, por exemplo, uma cena em que Lizzie e Darcy estão dançando e ela, irônica e cáustica, querendo provocá-lo a sair de seu taciturno silêncio, alfineta seu calcanhar de Aquiles: o orgulho. “We are each of an unsocial, taciturn disposition, unwilling to speak unless we expect to say something that will amaze the whole room, and be handed down to posterity with all the eclat of a proverb.” (pg. 103)

As virtudes e nobrezas do caráter de Elizabeth também se explicitam nas críticas severas que ela faz ao comportamento de suas irmãs caçulas. No caso em que a louquinha da Lydia foge de casa com o demônio encarnado que é Wickham, Elizabeth não poupa o anátema: "Our importance, our respectability in the world, must be affected by the wild volatity, the assurance and disdain of all restraint that mark Lydia's character... she will soon be beyond the reach of amendment...from the ignorance and emptiness of her mind, wholly unable to ward off any portion of that universal contempt which her rage for admiration will excite... Vain, ignorant, idle and absolutely uncontrouled!" (pg. 255-56)

Liz fustiga sem dó o caráter vicioso da irmã – que é vaidosa, preguiçosa, frívola, ignorante e que nada faz além de seu tempo além de flertar com homens “interessantes”. O próprio Mr Bennet, pai das donzelas e fonte de altos sarcasmos, comenta: "At any rate, she cannot grow many degrees worse, without authorizing us to lock her up for the rest of her life." (256) Em meio à irmãzinhas tão fúteis e abobalhadas, Elizabeth aparece como um prodígio de nobreza, inteligência e fina ironia – um mulherão!

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LOVE AT LAST SIGHT

Sendo muito simplista e redutor, daria para dizer que a grande “moral da história”, em Orgulho e Preconceito (que é sim um nobre exemplar daqueles tempos onde os romances tinham sim uma “moral da história!), reduz-se àqueles velhos ditos clichêzudos que tantas mamães e vovós beatas, metidas a sábias, nos repetiram 50 mil vezes: que as “aparências enganam” e que “primeiras impressões nem sempre nos contam a verdade”!

Darcy é um personagem que todos abominam ao primeiro contato, Elizabeth inclusive. Ele aparece como um sujeitinho arrogante, intratável e horrorosamente antipático nas situações sociais, daqueles que não bate-papo nem tira as mocinhas pra dançar nos bailes. Ele possui dois grandes vícios paralelos: o orgulho e o ressentimento. “I cannot forget the follies and vices of others so soon as I ought, not their offences against myself”, confessa. “My temper would perhaps be called resentful. My good opinion once lost is lost for ever.” (63)

Elizabeth, ouvindo isso, forma uma péssima imagem de Darcy como alguém que odeia todo mundo e que se gaba da “implacabilidade de seus ressentimentos” como se isso fosse um mérito. Quando o venenoso Wickham lhe conta sobre os maus-tratos que sofreu nas mãos de Darcy, ela atinge um dos ápices de revolta contra este último: “I had supposed him to be despising his fellow-creatures in general, but did not suspect him of descending to such malicious revenge, such injustice, such inhumanity as this!” (pg. 90)

A cena em que Darcy pede Elizabeth em casamento, para absoluto espanto dela, é uma dos momentos mágicos da história da minha relação com a literatura: são páginas que li quase perdendo o fôlego, esquecendo do tempo, “caindo” totalmente dentro do diálogo, tão cativante e dramática é a situação. Pois Elizabeth está sendo cortejada por um homem que odeia: um sujeitinho pretensioso, abominavelmente orgulhoso, que fez das piores patifarias contra o pobre Wickham e que ainda foi responsável por estragar a possibilidade de casamento entre Jane e o Mr. Bingley! Ainda que ela sinta um pinguinho de satisfação por ver Darcy manifestar tão surpreendente desejo (“it was gratifying to have inspired unconciously so strong an affection” - pg. 215), ela não pode evitar lançar contra ele o anátema, o jorro de sua ira, sua cruel e machucante rejeição, expressa nos termos mais duros:

ELIZABETH PARA DARCY: “From the very beggining, from the first moment of my acquaintance with you, your manners impressing me with the fullest belief of your arrogance, your conceit, and your selfish disdain of the feelings of others, were such as to form that ground-work of disapprobation, on which succeeding events have built so immoveable a dislike; and I had not known you a month before I felt that you were the last man in the world whom I could ever be prevailed on to marry.” (pg. 215)

Se a declaração de Darcy gera nela uma onda de ira e retaliação, em que ela fere sem dó um homem que então desprezava com toda a força de sua alma, a carta de Darcy representa um "ponto de virada", uma reviravolta quase completa. É com esta carta que se começa a desvelar aos olhos de Liz o "verdadeiro caráter" do Mr. Darcy e uma certa "intimidade" começa a se estabelecer entre os dois. "...she had never, in the whole course of their acquaintance, an acquaintance which had latterly brought them much together and given her a sort of intimacy with his ways, seen any thing that betrayed him to be unprincipled or unjust - any thing that spoke him of irreligious or immoral habits" (pg. 229).

O arrependimento pelo preconceito que alimentou, e o "choque" positivo de perceber em Darcy um "bom homem" que ela nem suspeitava que podia viver por detrás de uma superfície tão antipática e pouco convidativa, fazem com que convivam nela, por uns tempos, um imbróglio de vergonha por si mesma e de crescente admiração pelo Darcy que antes desprezara. Ela até mesmo é obrigada a engolir seu orgulho, reconhecendo que as críticas que Darcy faz à sua família eram "merecidas" - o que não surpreende o leitor que soube captar toda a ironia que Lizzie volta contra suas irmãs caçulas, fúteis garfadoras de oficiais, e sua mãe, obcecada casamenteira. "The justice of his charge struck her too forcibly to deny." (230)

Aqui, o amor está muito longe de ser à primeira vista e só surge depois que os “pombinhos” já se bicaram, se xingaram, se machucaram até não poder mais. Tendo expectativas bem baixas em relação ao Darcy que ela considerou, a princípio, um sujeitinho desprezível e antipático, Liz não se choca pouco com a transformação que ocorre na imagem dele dentro dela: “the difference, the change was so great, and struck so forcibly on her mind, that she could hardly restrain her astonishment from being visible.” (288)

O caráter “anti-social” de Darcy, que o pessoalzinho altamente sociável e polido que o rodeia reputa como um “vício”, depois irá se desvelando, principalmente ao olhar de Elizabeth, muito mais como uma virtude. Até que enfim ela descubra, fascinada, que gosta do fato dele não ser um homem frívolo, um hedonista superficial, capaz de se encantar por qualquer mariazinha de belos peitos e dotes - e que tinha até altas exigências em relação à “mulher ideal”. Esta, para Darcy, precisa ter algo “substancial”, que ele sugere que só será conquistável pela leitura (“in the improvement of her mind by extensive reading” - pg. 43).

Quando, mesmo depois de ser rejeitado sem a mínima ternura por Liz, Darcy mostra-se gentil e amável, ela não consegue erguer diques contra as marés de ternura e de gratidão que lhe adentram o coração voltadas ao seu ex-inimigo:

"...when she considered how unjustly she had condemned and upbraided him, her anger was turned against herself; and his disappointed feelings became the object of compassion. His attachment excited gratitude, his general character respect..." (pg. 234). “Gratitude, not merely for having once loved her, but for loving her still well enough, to forgive all the petulance and acrimony of her manner in rejecting him, and all the unjust accusations accompanying her rejection. He who, she had been persuaded, would avoid her as his greatest enemy, seemed most eager to preserve the acquaintance. (...) Such a change in a man of so much pride excited not only astonishment but gratitude – for to love, ardent love, it must be attributed.” (291)

Aqui se mostra com clareza que Jane Austen parece colocar o afeto acima da paixão, como Harold Bloom bem apontou. Elizabeth, que no livro passa por um certo “encantamento à primeira vista” com Wickham, e depois descobre-o como lobo em pele de cordeiro, encontra um “verdadeiro” amor que é baseado não em impressões apressadas, fugidias e sensíveis, mas em gratidão, estima e admiração. Nos meandros dessa narrativa, Jane Austen parece filosofar que o amor só é sólido se baseado não somente em encantamentos dos sentidos, mas num vínculo afetivo mais profundo baseado em valores como personalidades harmônicas, interesses comuns, confiança mútua, intimidade e confiança (em suma: “a general similarity of feeling and taste”, pg. 382). Tanto que Elizabeth, quando pensa nas chances de felicidade de Lydia e Wickham, não deixa de suspeitar que seriam pífias: “...how little of permanent happiness could belong to a couple who were only brought together because their passions were stronger than their virtue, she could easily conjecture.” (342)

Consuma-se, pois, a inversão de papéis: Wickham, ainda mais depois que foge com Lydia, passa a ser demonizado (e como! Lizzie chega a sugerir que "o vício contido em toda raça humana estava concentrada em um só indivíduo"). Inicialmente adorado e admirado pela sua "casca" sedutora e simpática, ele é depois visto por Elizabeth, sob o efeito das revelações de Darcy, sob uma luz bem menos favorável. Ela passa a vê-lo como alguém sem escrúpulos, que não hesitou em trabalhar pelo naufrágio do caráter de Darcy, e que é francamente mercenário em sua escolha de mulheres. Darcy, depois de conhecido a fundo e em detalhe, aparece sobre uma luz intensamente favorável. "There certainly was some great mismanagement in the education of those two young men. One has got all the goodness, and the other the appearance of it." (pg. 249) Elizabeth sente-se invadida por um intenso remorso ao perceber o quanto tinha alimentado falsas imagens sobre estes dois homens, baseadas essencialmente em preconceitos apressados. "She grew absolutely ashamed of herself. Of neither Darcy nor Wickham could she think without feeling that she had been blind, partial, prejudiced, absurd." (229)

A própria opinião pública, “instituição” que Austen é mestra em descrever com ironia devido à sua volatilidade e instabilidade, sua frivolidade e maledicência, sofre também uma revolução: “All Meryton seemed striving to blacken the man who, but 3 months before, had been almost an angel of light. (...) Everybody declared that he was the wickedest young ma in the world; and every body began to find out that they had always distrusted the appearance of his goodness.” (323)

Darcy e Lizzie, de certo modo, no fim dessa montanha-russa emocional que enfrentaram, tornam-se gratos um ao outro pelas lições que se deram. Ela, encarnação do Preconceito que Austen pôs no título de seu romance, confessa que sua relação com ele fez com que ela vencesse esse seu vício: “gradually all her former prejudices had been removed” (405). Já ele, que por seu lado é encarnação do Orgulho, confessa que também aprendeu com ela a reconhecer sua pequenez e sua insuficiência: “Dearest, loveliest Elizabeth! What do I not owe you! You taught me a lesson. (...) By you, I was properl humbled. You showed me how insufficient were all my pretensions to please a woman worthy of being pleased.” (407)

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RESSALVAS

Por maior que seja minha admiração por uma obra literária tão bem-composta, tão deliciosa de ler, repleta de perspicácia e fina ironia, eu não posso evitar sentir um certo desagrado por certos “fatores”. Por exemplo isto: apesar da trama de “Orgulho e Preconceito” estar inteirinha centrada nas atrações e repulsões entre os sexos, a descrição desses “jogos” de sedução jamais “se rebaixa” ao nível do carnal, do sexual. Este é um livro “sobre o amor”, de 400 e tantas páginas, em que nenhum casal, jamais, dá uns beijinhos na boca ou se diverte com uns amassos ou umas trepadas! Os mocinhos, quando se interessam pelas ladies, jamais têm ereções imprevistas, jamais olham famintos para as zonas erógenas ou arriscam cantadas com um sugestivo cunho luxurioso. Tudo em Jane Austen me soa asséptico, higiênico e bem-comportado demais – e a sexualidade é completamente varrida para debaixo do tapete, num processo que Milan Kundera talvez considerasse como puro “kitsch” literário. Claro que era de se esperar que liberdade para fazer, falar e escrever sobre sexo não tivesse espaço de manifestação no mundo subjetivo de uma filha de reverendo, vivendo em tempos de moralidade vitoriana, que não pôde assimilar todas as benesses da libertação sexual advinda com a pílula anticoncepcional, o movimento hippie e todas as conquistas do feminismo no século 20.

Jane Austen, pois, mantêm-se sempre “elevada”, “espiritual”, como se o amor nada tivesse a ver com os corpos, com a libido, com o tesão – e com isso mutila de sua obra algo crucial tanto para a compreensão quanto para o retrato literário das criaturas humanas. Se digo que ela nunca “se rebaixa” ao domínio carnal, não será também por causa de um preconceito da autora (obviamente condicionado por sua educação e a cultura de seu tempo!), que faz com que ela censure e não permita que existam em sua obra esses “elementos” que ela aprendeu a chamar de “sujos” e “baixos” e indignos de figurarem nas páginas da Alta Literatura?

Toda essa pudicícia austeniana daria, aliás, uma ótima paródia – imaginem que hilário um Orgulho e Preconceito Versão Pornô, com diálogos mais ou menos assim:

ELIZABETH: Oh! Darcy! I'm obliged to confide that I shall not be able to conceal from you any longer the fact that I'm so god-damned horny! Shouldn't you punish me violently with your sword for my reproachable misconduct on being such a nasty little girl?

DARCY: Oh! Lizzie! I shall in no time have you acquainted with my noble willie-willie, who shall punish you infinitely!


Se Jane Austen tivesse “apimentado” este seu prato com um pouquinho de erotismo, talvez se saísse com um romance ainda mais excitante de ler e com um cheiro mais forte de realidade – mas que certamente iria escandalizar bem mais seus contemporâneos. Mas seria exigir dela que fosse o que não poderia ter sido, dadas suas circunstâncias biográficas e sua educação. Uma Jane Austen pimentinha, endiabrada, só poderia surgir no pós-1960, na esteira das conquistas do feminismo e da revolução sexual, e até me arrisco a sugerir que uma candidata já surgiu: Erica Jong, a ótima autora americana, que não é menos excelente por ter sido best seller, e que me soa como um mix entre Austen, Woody Allen, Sterne, Fielding e proto-Sex And The City em seus romances deliciosos - como “Medo de Voar”, “Salve Sua Vida” e “Fanny”, entre outros.

* * * * *

Outra coisa que me dá um pouco de comichão é que há também uma constante idealização do matrimônio que soa bem ingênua e demodê a alguém como eu, acostumado a ler os ataques furiosos de Wilhelm Reich e José Ângelo Gaiarsa ao casório e que foi “educado” sobre o assunto por obras como Cenas de Um Casamento, de Bergman, Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, de Mike Nichols, e Revolutionary Road, de Sam Mendes (só pra ficar em poucos exemplos).

Os personagens de Jane Austen estão sempre doidinhos pra casar, como se isso fosse a coisa mais doce e sublime do mundo: o “grande dia” de subir ao altar é visto pelo Mr. Collins, por exemplo, como “the day that was to make him the happiest of men” (pg. 137); ver as filhas casadas causa à mamãe Bennett certos êxtases quase orgásticos; e as mocinhas, quando se consuma o pacto de casamento, vêem-se como as mais felizes das criaturas. Que possa haver uma pontinha de ironia austeniana na descrição dessas altas expectativas românticas em relação ao idílio conjugal, até acredito que possa ser verdade; mas como deixar de considerar isso como água-com-açúquice exagerada, nós todos que não temos um pingo dessa crença no maravilhosidade da “coisa”?

Também neste sentido Elizabeth parece uma mulher menos ingênua, mais complexa e infinitamente mais sábia do que todas as mulheres que a rodeiam neste livro. Ela não está “doidinha pra casar”, como as maninhas, e recebe as propostas de Mr. Collins e de Darcy sem dar mostrar de tolas ingenuidades ou de crenças absurdas em mágicas felicidades que nasceriam do enlace. Atormentada por dúvidas, filosofa a certo momento:

“...since we see every day that where there is affection, young people are seldom withheld by immediate want of fortune from entering into engagements with each other, how can I promise to be wiser than so many of my fellow creatures if I am tempted, or how am I even to know that it would be wisdom to resist?” (pg. 164)

O próprio casamento dos pais não é nada tão idílico e harmonioso a ponto de parecer algo digno de inveja. Em um dos trechos mais impregnados de fina ironia do romance (e quiçá de todo o romance inglês do século 19), Austen escreve:

"Had Elizabeth's opinion been all drawn fro her own family, she could not have formed a very pleasing picture of conjugal felicity or domestic confort. Her father captivated by youth and beauty, and that appearence of good humour, which youth and beauty generally give, had married a woman whose weak understanding and illiberal mind, had very early in their marriage put an end to real affection for her. Respect, esteem, and confidence, had vanished for ever; and all his views of domestic happiness were overthrown. (...) Her ignorance and folly had contributed to his amusement. This is not the sort of happiness which a man would in general with to oew to his wife; but where other powers of entertainment are wanting, the true philosopher will derive benefit from such as are given." (261)

quinta-feira, 2 de julho de 2009

:: Quills ::

OS CONTOS PROIBIDOS DO MARQUÊS DE SADE
[Quills, de Philip Kaufman, EUA, 2000, 124min]

com Geoffrey Rush, Michael Caine,
Kate Winslet e Joaquin Phoenix


“De tudo o que se escreve,
só aprecio o que é escrito com o próprio sangue.”

NIETZSCHE



Não faltaram as fogueiras para os hereges, as perseguições aos "desencaminhados", o sacrifício de "ovelhas desgarradas", as tentativas de exorcismo dos “possuídos” pelo dêmo, as queimas e censuras de livros malsãos, e todo o resto dos terrorismos dos beatos sanguinários, mas alguns “demônios” foi impossível calar. A voz de alguns “possessos” ressoa através dos séculos e das mordaças, para desespero das Igrejas e seu kitschismo sistemático. O Marquês de Sade, um dos protótipos supremos do homem blasfemo, com o capeta no corpo, louco para escandalizar, foi um desses que não se deixou reduzir ao silêncio por nada neste mundo. Nem tampouco por nenhuma ameaça de punição no outro ou qualquer promessa de recompensa dos céus em que cuspia.

O excelente filme de Philip Kaufman retrata o endemoniado autor francês na fase em que está preso num hospício. Ali goza de regalias que não possuem nenhum dos outros 200 louquinhos ali encerrados: tem um quarto luxuoso, vinho fino, sofás confortáveis, pena e papel à vontade e tratamento pra lá de “humanitário” por parte do padre que administra o asilo-de-loucos.

Encarnado por Geoffrey Rush com uma garra e uma visceralidade de encher de sangue os olhos do espectador, o Marquês de Sade é retratado aqui a descer numa espiral infernal em sua rebelião sem freios contra o Estado, a Religião e a Repressão Sexual, Política e de Expressão.

A princípio, extasiado com suas travessuras, mostra-se um capetinha alegre que, trancafiado pelas autoridades, consegue continuar publicando seus livros pornográficos e sacrílegos com a ajuda de uma lavadeira do manicômio (Kate Winslet) e de editores que sabem do imenso potencial comercial daquela obra escarlate e iconoclasta. É a época em que “Justine” torna-se um imenso sucesso na Paris napoleônica repleta de guilhotinas e decapitações públicas, “decorada” com anãs prostitutas e livros libertinos pirateados em becos. O falatório sobre o best-seller é tão disseminado que o próprio imperador Napoleão tem que tomar medidas drásticas contra o desbocado Marquês, reduzindo a chamas suas obras e enviando um “psicoterapeuta” tirano e sádico (vivido por Michael Caine) para pôr-lhe juízo.

A história, daí em diante, vai ganhando contornos cada vez mais trágicos, até se resolver num banho de sangue, vísceras e excrementos que parece uma junção de Shakespeare com Bocaccio levada à telona por um Pasolini dos novos tempos. “I've got all the demons of hell in my head”, confessa o Marquês, “and my only salvation is to vent them on paper.” Essa necessidade absolutamente imperiosa de escrever para exorcizar os próprios demônios é o que será atacado pelo médico-vilão contratado para silenciá-lo. Poderiam simplesmente matá-lo, esse Marquês tão irreverente e incômodo, mas preferem impedi-lo de se pronunciar. Não sabem que estão lidando com um homem para quem a escrita é como a respiração, como o alimento, e que irá se debater furiosamente, até seu último alento, contra os que querem impedir sua voz de soar. “My writing is involuntary, like the beating of my heart...”.


As acusações contra esta obra literária ultra-polêmica são inúmeras: o Marquês de Sade representa um “profundo insulto às pessoas decentes”, escreve nada além de uma “enciclopédia de perversões”, só revela “o pior da humanidade”, enche páginas onde a crueldade humana atinge os mais horrendos cumes e é quase "celebrada"... Que os escritos do Marquês de Sade, desde aquelas tempos, fazem soar os alarmes e são vistos como “perigosos”, daninhos, geradores de péssimos efeitos éticos, é bem sabido. Mas é interessantíssimo acompanhar os duelos que, em vida, o autor enfrentou contra seus opositores. Os diálogos de Sade com o padre (vivido por Joaquin Phoenix) são primorosos ao pôr frente-a-frente duas concepções de mundo radicalmente diversas que se chocam:

“Não crei o mundo, só o registro!”, diz Sade.

“Somente seus horrores e mais escuros pesadelos!”, retruca o padre. “E com quê objetivo? Nada além de sua própria gratificação mórbida!”

“Escrevo sobre as grandes verdades universais que cimentam a humanidade num só todo, por todo o mundo”, defende-se Sade, de certo modo tentando justificar o valor de seu trabalho pelo “realismo” de seu retrato (altamente misantropo) da “podridão dos corações humanos”. “Nós comemos, nós cagamos, nós trepamos, nós matamos e nós morremos.”

E o padre, contra essa unilateral sugestão de uma “universalidade” do mal, lembra da nossa capacidade para o bem: “Nós também somos capazes de amor, de construir cidades, de compôr sinfonias, de perseverar na vida. Não será a missão da arte nos elevar acima do nível das bestas?”

* * * * *

A revolta de Sade é não somente o ímpeto furioso de uma fera enjaulada por autoridades que não respeita, mas também expressão de um ateísmo radical, que vai muito mais longe do que a mera negação da existência de Deus e recai numa longa procissão irada de provocações e dedos-médios levantados para um céu abominavelmente vazio – e contra todos aqueles que, iludidos e enlouquecidos, continuam pregando sobre a sapiência e bondade do Criador em meio às guilhotinas e às criancinhas que morrem de fome.

Quando o padre tenta convertê-lo, ele se recusa terminantemente a abraçar um Deus tão abominável: “This monstruous God of yours? He strung up His very own son like a side of a veal. I shudder to think what He'd do to me”. Em outro momento do filme, o Marquês, com uma visão límpida dos horrores sociais que o rodeiam, lembra ao padre que vivem numa realidade que tem como protagonista “the endless procession of the guillotine”: “We're all lined up waitin' for the crunch of the blade. The rivers of blood are flowing beneath our feet. I've been to hell. You've only read about it.”

Como uma criança pimentinha que, ao ser castigada, só se torna mais endiabrada, o Marquês de Sade vai num crescendo de revolta e maledicência à cada chinelada, à cada chicotada, à cada tortura que lhe infligem. O padre e o “psiquiatra” tentam, cada um de seu modo, regenerá-lo, moralizá-lo, domesticá-lo, “harness the beast that rages in his soul”. Mas sempre em vão. Se lhe retiram a pena e o papel, ele utiliza ossos de frango e gotas de vinho para escrever em seu lençol, depois entregue à lavadeira que o repassa para os editores. Quando lhe tiram isso, ele usa lascas de espelho para romper a própria pele e escrever com o próprio sangue em suas próprias roupas. Esvaziam seu quarto de todos os móveis, todos objetos, deixando também o Marquês nu em pêlo. Ainda assim, ele acha meios de continuar criando sua insistente obra-blasfêmia, ainda que seja sussurando sua insana prosa através de buracos na parede para os loucos vizinhos. Como último recurso, cortam-lhe fora a língua, amarram-no ao chão com correntes, preso numa catacumba sem luz, e ainda assim ele escreve nas paredes com os próprios excrementos!

O filme de Kaufman, ao contrário do Salò ou 120 Dias de Gomorra de Pasolini, não faz uso da técnica do “choque pelo choque” e não foi feito meramente para escandalizar os suscetíveis, mas sim para fazer-nos sentir visceralmente as contradições e batalhas de um destino humano dilacerante.

Por um lado, o Marquês de Sade é descrito como um homem de extrema sagacidade, um escritor de brilhantismo e força, dotado de muito senso de humor e lucidez na crítica social. Em seu contato com a lavadeira, jamais descamba para o completo desrespeito ou para o apelo à força bruta: é um perfeito gentleman, apesar de suas safadices, e tenta convencê-la pela retórica e pelas carícias a “experimentar sem vergonha os prazeres da carne”, prometendo fazer nela altas delícias “ao Sul do Equador”. Momentos de humor fino e genial não faltam, sejam nos excertos dos contos, sejam em certos diálogos (como na cena em que o Marquês convida o padre a tomar um vinho para que o papo role com mais desenvoltura, “because conversation, like some parts of the anatomy, works really better when lubrificated”).

Mas o filme tampouco faz dele um “herói” e deixa aberta a possibilidade de que sua obra seja de fato perversa e daninha, instigando as pessoas a cometerem os crimes e abusos narrados em seus contos – o que acaba ocorrendo quando um dos loucos, em transe sanguinário sob o efeito das palavras do Marquês, assassina Madeleine. Mas resta a questão: o louco já não tinha uma predisposição à violência e à falta de contenção pulsional, sendo a obra do Marquês um mero estopim para o trasnbordamento de um oceano de fúria bruta que ele já trazia dentro de si?

Já as duas “autoridades” que agem diretamente sobre seu caso acabam caindo em perversidades disciplinatórias e sadismos corretivos que os tornam até piores do que os personagens que povoam os livros do Marquês de Sade – e é aí que está a genial ironia deste filme genial. Do mesmo modo que homens supostamente “santos” sujaram de sangue suas batinas ao perseguirem os heréticos e as bruxas, tornando-se muito mais diabólicos em suas inquisidoras perseguições do que suas vítimas, também aqui os “agentes da punição” tornam-se mais malévolos e anti-éticos do que o Marquês que tentam exorcizar. O padre, a princípio tão promissor em seu “humanitarismo”, atinge um estado horrendamente psicótico em que diz: “I'm not the first man God has asked to shed blood on His name”. O “psiquiatra”, desde o começo um poço profundo de perversidade, um mercenário/torturador sem escrúpulos, vai progressivamente aparecendo aos olhos do espectador como um homem ainda mais nojento e vicioso do que o artista atormentado que foi contratado para “consertar”.

Se hoje, em pleno século 21, estamos assistindo filmes hollywoodianos sobre o Marquês de Sade, com atores do primeiro escalão, sendo indicados ao Oscar por seus papéis, e podemos facilmente comprar livros dele, inclusive em shopping centers, é sinal de que sua voz, por mais sacrílega e blasfematória que seja, tem uma força irreprimível. Esta obra, polêmica e explosiva, prossegue como um espectro, assustador e fascinante, que muitos continuam a perseguir, mas que ninguém jamais conseguiu apagar da face da Terra, fazendo de conta que tais palavras e pensamentos nunca nasceram.

“In conditions of adversity, the artist flourishes”, sugere o Marquês em certo ponto do filme. Esta voz artística que se levanta dos lodaçais do destino, irada e insana, é testemunho de uma vida que os poderes assépticos e repressores não puderam silenciar. Se, para além do horror que o Marquês de Sade nos causa, ele é também uma figura de tamanho fascínio, talvez seja porque sentimos um certo respeito místico por um homem que esteve pessoalmente no inferno, enquanto nós só lemos a respeito. E é um inferno na Terra! Um inferno que lhe inscreveram na carne através de torturas e censuras; um inferno que o homem construiu com suas guilhotinas e suas religiões que decapitam os que pensam diferente; um inferno criado por uma repressão da sexualidade que só cria neuroses e perversões e jamais conduz ninguém à "santidade" alguma; um inferno em que encerram-se em hospícios as vozes da discórdia e que se empurra-se rumo a loucura aquele que questiona a normalidade - um inferno, enfim, contra o qual ele se insurgiu com toda a fúria, provando com seu tresloucado heroísmo que pode-se romper até com as mais apertadas e indestrutíveis das mordaças.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

:: colecionador de palavras preciosas (III) ::



“Tudo faz amor”. E eu acrescento, quando me dizes “faz amor”: até mesmo o passo com a estrada, até a baqueta com o tambor. Até o dedo com o anel, até a rima com a razão, até o vento com a vaga, até o olhar com o horizonte. Até o riso com a boca, até o vime com o facão, até o corpo com a cama e a bigorna debaixo do martelo. Até o fio com a tela, a terra com o verme, o edifício com a estrela, o sol com o mar. Assim como a flor faz com a árvore, até a cedilha faz com o c, até o epitáfio com o mármore, e a memória com o passado. A molécula com o átomo, o calor com o movimento, um tomo juntado ao outro, até a argola com a corrente... tudo, enfim, exceto o Ódio e o coração que Ele corrompe. Sim, tudo faz amor, debaixo das asas do próprio Amor, como se fosse no seu Palácio. Até as torres das cidadelas com a saraivada de balas. Até as cordas da harpa com a falange do dedo. Até o braço com a atadura e a coluna com o teto. (...) Tudo, enfim, tudo em todo o universo, exceto a face com a bofetada...” --- GERMAIN NOUVEAU (1852-1920)


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“Muito se teria de dizer sobre esse contentamento e essa ausência de dor, sobre esses dias suportáveis e submissos, nos quais nem o sofrimento nem o prazer se manifestam, em que tudo apenas murmura e parece andar nas pontas dos pés. Mas o pior de tudo é que tal contentamento é exatamente o que não posso suportar. Após um curto instante parece-me odioso e repugnante. Então, desesperado, tenho de escapar a outras regiões, se possível a caminho do prazer, se não, a caminho da dor. Quando não encontro nem um nem outro e respiro a morna mediocridade dos dias chamados bons, sinto-me tão dolorido e miserável em minha alma infantil, que atiro a enferrujada lira do agradecimento à cara satisfeita do sonolento deus, preferindo sentir em mim uma verdadeira dor infernal do que essa saudável temperatura de um quarto aquecido. Arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada... bem como um desejo louco de destruir algo, seja um armazém ou uma catedral, ou a mim mesmo, de cometer loucuras temerárias, de arrancar a cabeleira a alguns ídolos venerandos, de entregar a um casal de estudantes rebeldes os ansiados bilhetes de passagem para hamburgo, de violar uma jovem ou de torcer o pescoço a algum defensor da ordem e da lei. Pois o que eu odiava mais profundamente e maldizia mais, era aquela satisfação, aquela saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado...” --- das anotações de Harry Haller (em O Lobo da Estepe, de Herman Hesse)

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"Un ciel délivré des ombres, c'était l'horreur pour moi. Je n'appréciais que les temps gris, et cela en raison de la mélancolie en moi, de l'insecte de mélancolie qui cheminait en moi comme dans une souche creuse, vermoulue. C'est une maladie qui affecte l'esprit d'autant plus sûrement qu'il craint alors de s'en défaire: le mélancolique est celui qui est persuadé d'avoir tout perdu - sauf sa mélancolie à quoi il tient farouchement. C'est la maladie de celui qui, dépité de n'être pas tout, choisit, par un revers enfantin de l'orgueil, de n'être rien. (...) Cette maladie m'est passé, madame. Je ne sais trop comment, mais elle m'est passé. Aujourd'hui je sais vous aimer, et si je goûte toujours les ciels gris, c'est d'une manière plus calme: je les aime parce qu'ils sont, non parce qu'ils confirmeraient une catastrophe éprouvée au-dedans de mon esprit. Au fond, même dans ces accès de mélancolie, je n'ai jamais trop su quoi faire de cette vie sinon l'aimer, l'aimer follement et le lui dire: écrire des lettres d'amour, éclairer la blancheur d'un papier en y renversant de l'encre... (...) Je vous aime, madame - même si cet amour ne vaut pas et ne vaudra jamais pour un acquiescement au monde: on ne peut ressentir la douceur de cette vie sans en même temps concevoir une colère absolue contre le mal qui la serre de toutes parts." ---
CHRISTIAN BOBIN, L'Inespérée