(barbara kruger)"A carne é triste e já li todos os livros..."MALLARMÉ
São estas algumas das "palavras imortais" da Poesia Francesa, me garantem os entendidos. Um daqueles versos “antológicos” do idioma (o que abriria espaço para a piada, aliás meio escrota, de que o autor é, ora pois, uma comprovada anta). Achei-o tristíssimo, o verso, quando primeiro me deparei com ele - eu que infelizmente já trago no peito tendências a enxergar a tristeza das coisas, inclusive dos palhaços e dos carnavais... imaginei o autor como um espécimen sombrio como o breu, sofrendo do spleen de Baudelaire, mais fúnebre que um conto de cemitério de Edgar Allan Poe... “A carne é triste e jamais leremos todos os livros”! Que dor não parecia vir aí, escondida neste dito tão desconsolado! Dito que eu não me surpreenderia se viesse num epitáfio de um maníaco-depressivo ou como última sentença de um bilhete suicida... Ao mesmo tempo, sentir o próprio corpo como fonte de tristeza e a vida do “intelecto” como infértil e insossa?!? Hélas! Há labirinto mais tenebroso? Ser Pascal e Fausto, ao mesmo tempo, que imenso fardo!
Diria, até, que é tão tristonho, o verso, que mereceria ser dito: “é de cortar os pulsos!”. Mas eu não creio que se corte os pulsos por causa de versos. Apesar de saber que os escritores de versos, e os leitores deles, por vezes cortam-nos, apesar do pavor das lâminas, quando a dor aperta tanto que o nada soa mais doce que a vida...
A poesia, que eu saiba, não cria as dores da vida que ela relata – é, no máximo, um foco de luz. É: há desses que lançam focos de luz na escuridão que descobrem, e o que vemos não é a luz que jogam, mas a escuridão que descobriram.
Mas o que eu queria, aqui, era polemizar um pouco com o verso antológico. Porque, se a carne fosse de fato triste, ou seja, se isso fosse fato comprovado, como o 2+2 que dá vocês-sabem-quanto, o que fazer do viver seria problema bem simples: melhor seria jogar fora logo duma vez essa desgraça, esse vaso de dores e mal-estares, esse corruptível cadáver adiado, esse antro do pecado! Se a carne fosse triste, e sempre triste, de uma tristeza inelutável, inescapável, melhor seria pular logo no túmulo, beber a cicuta, mandar parar esse grotesco carrossel e ir no nada buscar o alívio de ao menos não sentir... Os niilistas estariam certos, coisa que eu nunca achei que estivessem.
Pois, me perdoem os trágicos, toda essa dramaticidade se esboroa frente, por exemplo, a um picolé, quando o dia é tórrido, ou uma banheira de hidromassagem, quando entramos nela bem-acompanhados. São coisas que nos ensinam, ó pobres de nós, o quanto a carne pode ser alegrável, o quanto o deleite pode ser sincero, o quanto a vida pode ser bela. Estar na mesma banheira com a mulher amada, ou fazer amor com nossa melhor amiga, quer prova mais inconteste de que a carne pode ser simpática, jovial e adorada?
Viver é essa complicação, claro, e é esse fascínio, justamente por este imbróglio, essa gororoba de prazeres e tormentos, essa mistureba entre os que nos exalta e o que nos atormenta! Nada, nunca, em "pureza"! Sempre gotas de limão em nosso açúcar! Sempre um certo amargume no chocolate! Mas e daí? Se a vida fosse só felicidade, que baita monotonia! Se tudo fosse sempre doce, que enjôo, que enfado, que sensaboria!
Tenho deixado, pois, sem resistências, até mesmo contra os poetas e suas melancolias assassinas, que os picolés e os amores me ensinem que a vida pode ser doce e bela – ainda que eles rápido derretam e ainda que meus lábios não sejam eternos...
A carne é problema, e possibilidade de glória. Carne condenada à morte, carne votada à vida. Capaz de exaltar-se e de atingir as mais luminosas alegrias, e capaz de doença, de ódio, de sofrimento, de mil modos de ser ferida... A carne: um bem ou um mal? A religião, de seu lado, fica aí, fazendo da carne um antro do pecado, algo a ser negado, degradado, cuspido, reprimido, poupado, em prol da tão superior vida do espírito, em nome duma quimérica vida paradisíaca no além-túmulo! No extremo oposto, os “hedonistas” em geral, que fazem da carne um palácio de mil delícias, que nos possibilita tantos gozos e deleites, na cama, na mesa, nos campos, ouvindo sinfonias, lendo poemas, acariciando a mulher amada!... E as seitas se dividem, e se digladiam, sem que jamais se suspeite que a resposta está em substituir, neste a carne é um bem ou um mal?, este "ou" por um "e"... A soma ao invés da exclusão! A união dos contrários ao invés da escolha por um dos pólos!
Percamos, pois, nosso pavor da carne, que é tudo que somos, que é nossa morada e nossa vida! Chutemos para escanteio, de vez, a mentira do espírito! Assumamos, enfim, que não temos alma, a despeito do que dizem os padres e os Cristos, e que isso não torna a vida menos deleitável, nem a sabedoria menos buscável e sorvível! Aterrisar no corpo, seria acaso avião descendo em aeroporto proibido? Seria infringir as leis cósmicas de trânsito? Arrancaria de Deus um gemido de lamento? Ah, céus, se a moda pega! Que aconteceria com os conventos!?! Se a notícia circula, aí tamos fritos! Qual daquelas noviças ainda não rebeldes ficaria auto-enjalada lá dentro, se lhes fosse ensinado que a carne pode ser bela? Não o vaso do demônio, não o palco do pecado, não o antro do vício e do desmazelo, mas nosso único aliado, nosso alicerce e sustentáculo, nosso companheiro perpétuo e introcável, capaz de êxtase e alegria, assim como de doença e envelhecimento! Palco onde se desenrola o mais maravilhoso e o mais grotesco, o mais deleitoso e o que mais nos machuca e desnorteia. O corpo é constelação!
Só me abraço à Mallarmé, pois, depois de botá-lo de ponta-cabeça; ou de escrever, na outra face da moeda, exatamente o oposto do que ele escreveu na de cima. E foi assim que me fiz um novo lema:
A CARNE É ALEGRE E JAMAIS LEREMOS TODOS OS LIVROS.
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