quarta-feira, 8 de julho de 2009

:: Pride & Prejudice (o livro!) ::


JANE AUSTEN,
Orgulho e Preconceito

(Pride And Prejudice [1813],
Penguin Books, 428 pg.)

AMOR À ÚLTIMA VISTA
- notas de leitura -


Foi-me preciso engolir muito orgulho e vencer muito preconceito para topar encarar este romance-para-moças, leitura tão indigna para homens viris! Jane Austen, porém, me foi recomendada com empolgação por fontes tão dignas de crédito, que eu quis vencer minha tendência ignorantona a considerá-la como literatura de mariquinha, altamente kitsch e salta-pocinhas, e ir checar na fonte se a qualidade desta obra era mesmo inegável. Mergulhar nesta literatura, hoje reconhecida como das mais brilhantes da língua inglesa, a ponto de ser inserida por Harold Bloom entre as obras mais importantes do Cânone Ocidental, é descobrir uma autora de gênio na crônica social e no desvelamento psicológico da gente de seu tempo – e que possui, no fundo, uma mordaz ironia. Tudo isto salva sua obra de ser romantismo ingênuo para o consumo de moçoilas que esperam pelo príncipe encantado, tornando-a um clássico da literatura universal.

Jane Austen nos apresenta a um mundo hoje desaparecido e demodé. Um tempo onde o complexo processo de cortejar uma virgem virtuosa e bem-nascida demandava dos rapazes esgrimas “retóricas” espantosas. (Meus caros, chamar isso de “xaveco” é uma ofensa à complexidade inominável dos processos de sedução e persuasão em jogo!). Um tempo onde as moçoilas, sempre muito pudicas, ainda ruborizavam frente a olhares viris mais atrevidos e mantinham seus corpos muito bem escondidinhos detrás de pesados vestidos, véus e rendados. Um tempo em que os cavalheiros, sempre muito bem-trajados e polidos, se punham de joelhos para beijar com delicadeza a mãozinha enluvada das dondocas. Um tempo em que mamães casamenteiras dedicavam suas vidas à missão de casar seus rebentos com “homens honestos, ricos e de bom nascimento”. Um tempo onde todo um complexo jogo social, repleto de fofocas, fuxicos e boatos, envolvia os arranjos de matrimônio, e onde os interesses materiais eram levados em consideração até mais do que os afetos (apesar destes terem, também, um pouco de lugar).

Confesso, a princípio, que tive uma certa dificuldade para não ler com ironia toda essa finesse, esses hábitos tão civilizados, essas civilidades tão polidas, esse nhém-nhém-nhém aristocrático, que enche estas páginas tão maravilhosamente escritas, mas que podem soar, às vezes, tão afetadas e artificiais. Os personagens de Jane Austen são sempre, mesmo os mais atrevidinhos, repletos de pudicícia, desvelos, frescuras, ornamentos de linguagem e mil uma formas de ostentar sua “alta classe”.

É um mundo bem estranho às minhas peregrinações literárias mais frequentes, que normalmente vão dar em bodegas mais trash e bairros malsãos de cidades pestíferas. Minha juventude, eu passei na companhia dos junkies pirados de William S. Burroughs, dos fodidos-na-vida de Henry Miller, dos maníacos sexuais de Philip Roth, dos niilistas-sem-cura de Céline, das diabólicas maledicências poéticas de Rimbaud, Baudelaire e Lautreámont... Entrar no “ambiente” de Jane Austen, depois de ter passado tanto tempo na companhia desses insanos, é como visitar um palácio hi-class todo brilhoso e chique, depois de ter dormido por várias madrugadas na sarjeta, lambido pelos vira-latas e acordado pelos lixeiros.

O preciosismo, a delicadeza, a polidez irreprochável desses personagens é algo espantoso: não se acha em Jane Austen nem um grãozinho de grosseria ou truculência. Essa é a literatura de uma verdadeira lady! Até mesmo nos momentos em que os personagens precisam se dizer coisas desagradáveis e machucantes, o fazem de um modo extremamente classudo. O mais hilário dos exemplos é o do Mr Collins que, ao recusar um conselho de Elizabeth, faz mil piruetas retóricas para justificar sua “falta de educação”: “Pardon me for neglecting to profit by your advice, which on every other subject shall be my constant guide, though in the case above us I consider myself more fitted by education and habitual study to decide on what is right than a young lady like yourself...” (pg. 109). Très, très refiné!

Rachel Browstein, no estudo que dedica a Austen no Cambridge Companion, destaca que a leitura predileta de Jane Austen eram estas “ficções domésticas centradas em heroínas do sexo feminino” do tipo que se tornaram populares com os romances açúcarados de Richardson, Clarissa (1747) e Pamela (1742). Eram obras “severamente criticadas moral e esteticamente” pelos críticos de literatura, principalmente por serem “deliberadamente didáticas” no sentido de tentar “conscientemente instaurar padrões de moralidade”. Estes livros – apelidados de courtship novels - “davam aulas” às mocinhas sobre as engrenagens do cortejo masculino a uma virgem pudica e virtuosa, ressaltando sempre como ela deveria agir para manter-se digna e não sucumbir nem aos vícios da carne, nem às perfídias dos homens que são lobos em pele de cordeiro.

Mas o que faz Jane Austen ser um nome de tanto destaque na literatura dos últimos séculos é talvez o fato dela não ter sido uma mera repetidora destas fórmulas novelescas, mas sim a gênia que recriou o “romance-para-moças” através de um olhar que, além de espetacularmente sagaz e perceptivo, traz uma carga de ironia fortíssima. E não se trata de uma ironia fútil nem de um humor superficial, feito de palhaçadas e gracinhas, mas de um procedimento literário que besunta de alegre ironismo o “clima” dessas páginas tão deleitosas. “The seriousness of her irony baffles those readers who think wit must be either decorative or definite”, aponta Browstein, confessando que considerado esta “playful and purposeful irony” como a “coisa mais importante em Jane Austen” (pg. 34).

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ELIZABETH BENNETT

Elizabeth Bennett, “heroína” de Pride and Prejudice, é sem dúvida a mais fascinante e adorável personagem do livro – e nela, talvez, Jane Austen construiu uma das “criaturas” que melhor encarna esta “playful and purposeful irony” à qual Browstein se refere. Frente à frivolidade das irmãzinhas, que mal largaram a chupeta e já saíram à caça de oficiais, querendo garfar um ricaço bonitão para um matrimônio que idealizam que será sublime, Lizzie mostra-se muito mais complexa, madura, sarcástica e sagaz.

Seu senso-de-humor é um dos mais afiados dentre todos os personagens do livro (“I dearly love a laugh!”, diz), e não é surpresa que ela, a princípio, antipatize tanto com Darcy, que mostra-se circunspecto, calado, antipático e funebremente sério. Mas o humor de Lizzie não impede que ela seja, no fundo, uma mulher extremamente “ética” - daquelas que não usa a ironia para massacrar o que é “sábio” e “bom”, mas somente para alfinetar o que vê como frívolo, tolo, hipócrita e vicioso. Isso fica bem descrito neste magistral diálogo:

DARCY: “The wisest and the best of men, nay, the wisest and best of their actions, may be rendered ridiculous by a person whose first object in life is a joke.”

ELIZABETH: “Certainly. There are such people, but I hope I am not one of them. I hope I never ridicule what is wise and good. Follies and nonsense, whims and inconsistencies do divert me, I own, and I laugh at them whenever I can.”


(pg. 62-63)

Entre essas 5 irmãs, Elizabeth é a única que demonstra ter uma vida subjetiva mais rica e variada, uma alminha mais judiada por angústias de pequenez (“What are men to rocks and mountains?”, exclama a certo ponto) e que reclama de malesque só ela em Orgulho e Preconceito parece sentir: “disappointment and spleen” (pg. 174).

É também deliciosamente insubmissa, em certas ocasiões, como nas saborosas cenas em que confronta Lady Catherine De Bourgh, a nojenta e autoritária dama da alta-classe que trata os Bennetts como se fossem vira-latas. “She [Elizabeth] had heard nothing of Lady Catherine that spoke her awful from any extraordinary talents or miraculous virtue, and the mere stateliness of money and rank she tought she could witness without trepidation” (pg. 182), conta a narradora.

Adoro isso: que Elizabeth não se torne baba-ovo de socialite escrota nenhuma só por ela ter grana e poder! Adoro que ela seja capaz de enfrentar “sem trepidar” uma “nobre dama” que faz com que os outros se intimidem e abaixem as cabecinhas! “Elizabeth suspected herself to be the first creature who had ever dared to trifle with so much dignified impertinence” (pg. 187), escreve Austen – e, lendo essa frase, não fiz nada menos que vibrar! Como frente a um lindo gol do meu time do coração em final de campeonato.

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WIT AND VIRTUE

O fato de Elizabeth ser a união da mais esperta sagacidade (she's so witty!) e da mais conscienciosa “preocupação moral” se confessa um pouco na admiração que ela não cessa de nutrir por sua irmã Jane. Em Orgulho e Preconceito, Jane Bennett é a criatura mais angelical e irrepreensivelmente bondosa, e Elizabeth não pára de elogiar as virtudes de sua maninha, sem o mínimo sinal de ciúme ou raiva (no quê Austen, me parece, demonstra não ser lá uma pHd em psicologia “fraternal”: onde já se viu irmãs se darem assim tão bem, cáspita?!?)

De certo modo, Jane Bennett parece uma abençoada criatura que está sempre “de bem com a vida” e com sua própria consciência, sempre repleta de “cheerfulness” e dotada desse caráter privilegiado (que Jane Austen descreve lindamente): “the serenity of a mind at ease with itself, and kindly disposed towards every one, that had been scarcely ever clouded” (pg. 209).

ELIZABETH PARA JANE: “Your sweetness and desinterestedness are really angelic. (...) I feel as If I had never done you justice, or loved you as you deserve. (...) You wish to think all the world respectable, and are hurt if I speak ill of anybody.” (pg. 153) O fato de admirar na irmã esse tendência a “achar que todo mundo é bonzinho” e de ver tudo “sob a melhor luz” não impede que Elizabeth se manifeste contra essa noção de um “bom-mocismo generalizado”.

Elizabeth têm um olhar mais lúcido, que descobre os vícios e defeitos dos humanos com um realismo penetrante, acabando por parecer um tanto amarga e desiludida em relação à ingênua jovialidade da irmã Jane: “The more I see of the world, the more I am dissatisfied with it; and every day confirms my belief of the inconsistency of all human characters, and of the little dependence that can be placed on the appearance of either merit or sense.” (153)

Elizabeth, apesar de presa na teia de convencionalismo que a rodeia – e que faz com que todas as moças desejem um casamento (claro que monogâmico e vitalício!) com um homem "honesto" e de "bom nascimento", como papai e mamãe exigem! - é uma mulher que traz em si uma "insubmissão interior" bem mais pronunciada do que suas "silly little sisters". Por isso, como Harold Bloom escreve no Cânone Ocidental, ela é uma das “grandes heroínas de Jane Austen” (junto com Emma, Fanny e Anne), já que elas “possuem tanta liberdade interior que suas individualidades não podem ser reprimidas”.

Mulher ambiciosa e orgulhosa de sua inteligência e sarcasmo, Elizabeth tem uma língua à qual não falta veneno nem sagacidade. Há, por exemplo, uma cena em que Lizzie e Darcy estão dançando e ela, irônica e cáustica, querendo provocá-lo a sair de seu taciturno silêncio, alfineta seu calcanhar de Aquiles: o orgulho. “We are each of an unsocial, taciturn disposition, unwilling to speak unless we expect to say something that will amaze the whole room, and be handed down to posterity with all the eclat of a proverb.” (pg. 103)

As virtudes e nobrezas do caráter de Elizabeth também se explicitam nas críticas severas que ela faz ao comportamento de suas irmãs caçulas. No caso em que a louquinha da Lydia foge de casa com o demônio encarnado que é Wickham, Elizabeth não poupa o anátema: "Our importance, our respectability in the world, must be affected by the wild volatity, the assurance and disdain of all restraint that mark Lydia's character... she will soon be beyond the reach of amendment...from the ignorance and emptiness of her mind, wholly unable to ward off any portion of that universal contempt which her rage for admiration will excite... Vain, ignorant, idle and absolutely uncontrouled!" (pg. 255-56)

Liz fustiga sem dó o caráter vicioso da irmã – que é vaidosa, preguiçosa, frívola, ignorante e que nada faz além de seu tempo além de flertar com homens “interessantes”. O próprio Mr Bennet, pai das donzelas e fonte de altos sarcasmos, comenta: "At any rate, she cannot grow many degrees worse, without authorizing us to lock her up for the rest of her life." (256) Em meio à irmãzinhas tão fúteis e abobalhadas, Elizabeth aparece como um prodígio de nobreza, inteligência e fina ironia – um mulherão!

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LOVE AT LAST SIGHT

Sendo muito simplista e redutor, daria para dizer que a grande “moral da história”, em Orgulho e Preconceito (que é sim um nobre exemplar daqueles tempos onde os romances tinham sim uma “moral da história!), reduz-se àqueles velhos ditos clichêzudos que tantas mamães e vovós beatas, metidas a sábias, nos repetiram 50 mil vezes: que as “aparências enganam” e que “primeiras impressões nem sempre nos contam a verdade”!

Darcy é um personagem que todos abominam ao primeiro contato, Elizabeth inclusive. Ele aparece como um sujeitinho arrogante, intratável e horrorosamente antipático nas situações sociais, daqueles que não bate-papo nem tira as mocinhas pra dançar nos bailes. Ele possui dois grandes vícios paralelos: o orgulho e o ressentimento. “I cannot forget the follies and vices of others so soon as I ought, not their offences against myself”, confessa. “My temper would perhaps be called resentful. My good opinion once lost is lost for ever.” (63)

Elizabeth, ouvindo isso, forma uma péssima imagem de Darcy como alguém que odeia todo mundo e que se gaba da “implacabilidade de seus ressentimentos” como se isso fosse um mérito. Quando o venenoso Wickham lhe conta sobre os maus-tratos que sofreu nas mãos de Darcy, ela atinge um dos ápices de revolta contra este último: “I had supposed him to be despising his fellow-creatures in general, but did not suspect him of descending to such malicious revenge, such injustice, such inhumanity as this!” (pg. 90)

A cena em que Darcy pede Elizabeth em casamento, para absoluto espanto dela, é uma dos momentos mágicos da história da minha relação com a literatura: são páginas que li quase perdendo o fôlego, esquecendo do tempo, “caindo” totalmente dentro do diálogo, tão cativante e dramática é a situação. Pois Elizabeth está sendo cortejada por um homem que odeia: um sujeitinho pretensioso, abominavelmente orgulhoso, que fez das piores patifarias contra o pobre Wickham e que ainda foi responsável por estragar a possibilidade de casamento entre Jane e o Mr. Bingley! Ainda que ela sinta um pinguinho de satisfação por ver Darcy manifestar tão surpreendente desejo (“it was gratifying to have inspired unconciously so strong an affection” - pg. 215), ela não pode evitar lançar contra ele o anátema, o jorro de sua ira, sua cruel e machucante rejeição, expressa nos termos mais duros:

ELIZABETH PARA DARCY: “From the very beggining, from the first moment of my acquaintance with you, your manners impressing me with the fullest belief of your arrogance, your conceit, and your selfish disdain of the feelings of others, were such as to form that ground-work of disapprobation, on which succeeding events have built so immoveable a dislike; and I had not known you a month before I felt that you were the last man in the world whom I could ever be prevailed on to marry.” (pg. 215)

Se a declaração de Darcy gera nela uma onda de ira e retaliação, em que ela fere sem dó um homem que então desprezava com toda a força de sua alma, a carta de Darcy representa um "ponto de virada", uma reviravolta quase completa. É com esta carta que se começa a desvelar aos olhos de Liz o "verdadeiro caráter" do Mr. Darcy e uma certa "intimidade" começa a se estabelecer entre os dois. "...she had never, in the whole course of their acquaintance, an acquaintance which had latterly brought them much together and given her a sort of intimacy with his ways, seen any thing that betrayed him to be unprincipled or unjust - any thing that spoke him of irreligious or immoral habits" (pg. 229).

O arrependimento pelo preconceito que alimentou, e o "choque" positivo de perceber em Darcy um "bom homem" que ela nem suspeitava que podia viver por detrás de uma superfície tão antipática e pouco convidativa, fazem com que convivam nela, por uns tempos, um imbróglio de vergonha por si mesma e de crescente admiração pelo Darcy que antes desprezara. Ela até mesmo é obrigada a engolir seu orgulho, reconhecendo que as críticas que Darcy faz à sua família eram "merecidas" - o que não surpreende o leitor que soube captar toda a ironia que Lizzie volta contra suas irmãs caçulas, fúteis garfadoras de oficiais, e sua mãe, obcecada casamenteira. "The justice of his charge struck her too forcibly to deny." (230)

Aqui, o amor está muito longe de ser à primeira vista e só surge depois que os “pombinhos” já se bicaram, se xingaram, se machucaram até não poder mais. Tendo expectativas bem baixas em relação ao Darcy que ela considerou, a princípio, um sujeitinho desprezível e antipático, Liz não se choca pouco com a transformação que ocorre na imagem dele dentro dela: “the difference, the change was so great, and struck so forcibly on her mind, that she could hardly restrain her astonishment from being visible.” (288)

O caráter “anti-social” de Darcy, que o pessoalzinho altamente sociável e polido que o rodeia reputa como um “vício”, depois irá se desvelando, principalmente ao olhar de Elizabeth, muito mais como uma virtude. Até que enfim ela descubra, fascinada, que gosta do fato dele não ser um homem frívolo, um hedonista superficial, capaz de se encantar por qualquer mariazinha de belos peitos e dotes - e que tinha até altas exigências em relação à “mulher ideal”. Esta, para Darcy, precisa ter algo “substancial”, que ele sugere que só será conquistável pela leitura (“in the improvement of her mind by extensive reading” - pg. 43).

Quando, mesmo depois de ser rejeitado sem a mínima ternura por Liz, Darcy mostra-se gentil e amável, ela não consegue erguer diques contra as marés de ternura e de gratidão que lhe adentram o coração voltadas ao seu ex-inimigo:

"...when she considered how unjustly she had condemned and upbraided him, her anger was turned against herself; and his disappointed feelings became the object of compassion. His attachment excited gratitude, his general character respect..." (pg. 234). “Gratitude, not merely for having once loved her, but for loving her still well enough, to forgive all the petulance and acrimony of her manner in rejecting him, and all the unjust accusations accompanying her rejection. He who, she had been persuaded, would avoid her as his greatest enemy, seemed most eager to preserve the acquaintance. (...) Such a change in a man of so much pride excited not only astonishment but gratitude – for to love, ardent love, it must be attributed.” (291)

Aqui se mostra com clareza que Jane Austen parece colocar o afeto acima da paixão, como Harold Bloom bem apontou. Elizabeth, que no livro passa por um certo “encantamento à primeira vista” com Wickham, e depois descobre-o como lobo em pele de cordeiro, encontra um “verdadeiro” amor que é baseado não em impressões apressadas, fugidias e sensíveis, mas em gratidão, estima e admiração. Nos meandros dessa narrativa, Jane Austen parece filosofar que o amor só é sólido se baseado não somente em encantamentos dos sentidos, mas num vínculo afetivo mais profundo baseado em valores como personalidades harmônicas, interesses comuns, confiança mútua, intimidade e confiança (em suma: “a general similarity of feeling and taste”, pg. 382). Tanto que Elizabeth, quando pensa nas chances de felicidade de Lydia e Wickham, não deixa de suspeitar que seriam pífias: “...how little of permanent happiness could belong to a couple who were only brought together because their passions were stronger than their virtue, she could easily conjecture.” (342)

Consuma-se, pois, a inversão de papéis: Wickham, ainda mais depois que foge com Lydia, passa a ser demonizado (e como! Lizzie chega a sugerir que "o vício contido em toda raça humana estava concentrada em um só indivíduo"). Inicialmente adorado e admirado pela sua "casca" sedutora e simpática, ele é depois visto por Elizabeth, sob o efeito das revelações de Darcy, sob uma luz bem menos favorável. Ela passa a vê-lo como alguém sem escrúpulos, que não hesitou em trabalhar pelo naufrágio do caráter de Darcy, e que é francamente mercenário em sua escolha de mulheres. Darcy, depois de conhecido a fundo e em detalhe, aparece sobre uma luz intensamente favorável. "There certainly was some great mismanagement in the education of those two young men. One has got all the goodness, and the other the appearance of it." (pg. 249) Elizabeth sente-se invadida por um intenso remorso ao perceber o quanto tinha alimentado falsas imagens sobre estes dois homens, baseadas essencialmente em preconceitos apressados. "She grew absolutely ashamed of herself. Of neither Darcy nor Wickham could she think without feeling that she had been blind, partial, prejudiced, absurd." (229)

A própria opinião pública, “instituição” que Austen é mestra em descrever com ironia devido à sua volatilidade e instabilidade, sua frivolidade e maledicência, sofre também uma revolução: “All Meryton seemed striving to blacken the man who, but 3 months before, had been almost an angel of light. (...) Everybody declared that he was the wickedest young ma in the world; and every body began to find out that they had always distrusted the appearance of his goodness.” (323)

Darcy e Lizzie, de certo modo, no fim dessa montanha-russa emocional que enfrentaram, tornam-se gratos um ao outro pelas lições que se deram. Ela, encarnação do Preconceito que Austen pôs no título de seu romance, confessa que sua relação com ele fez com que ela vencesse esse seu vício: “gradually all her former prejudices had been removed” (405). Já ele, que por seu lado é encarnação do Orgulho, confessa que também aprendeu com ela a reconhecer sua pequenez e sua insuficiência: “Dearest, loveliest Elizabeth! What do I not owe you! You taught me a lesson. (...) By you, I was properl humbled. You showed me how insufficient were all my pretensions to please a woman worthy of being pleased.” (407)

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RESSALVAS

Por maior que seja minha admiração por uma obra literária tão bem-composta, tão deliciosa de ler, repleta de perspicácia e fina ironia, eu não posso evitar sentir um certo desagrado por certos “fatores”. Por exemplo isto: apesar da trama de “Orgulho e Preconceito” estar inteirinha centrada nas atrações e repulsões entre os sexos, a descrição desses “jogos” de sedução jamais “se rebaixa” ao nível do carnal, do sexual. Este é um livro “sobre o amor”, de 400 e tantas páginas, em que nenhum casal, jamais, dá uns beijinhos na boca ou se diverte com uns amassos ou umas trepadas! Os mocinhos, quando se interessam pelas ladies, jamais têm ereções imprevistas, jamais olham famintos para as zonas erógenas ou arriscam cantadas com um sugestivo cunho luxurioso. Tudo em Jane Austen me soa asséptico, higiênico e bem-comportado demais – e a sexualidade é completamente varrida para debaixo do tapete, num processo que Milan Kundera talvez considerasse como puro “kitsch” literário. Claro que era de se esperar que liberdade para fazer, falar e escrever sobre sexo não tivesse espaço de manifestação no mundo subjetivo de uma filha de reverendo, vivendo em tempos de moralidade vitoriana, que não pôde assimilar todas as benesses da libertação sexual advinda com a pílula anticoncepcional, o movimento hippie e todas as conquistas do feminismo no século 20.

Jane Austen, pois, mantêm-se sempre “elevada”, “espiritual”, como se o amor nada tivesse a ver com os corpos, com a libido, com o tesão – e com isso mutila de sua obra algo crucial tanto para a compreensão quanto para o retrato literário das criaturas humanas. Se digo que ela nunca “se rebaixa” ao domínio carnal, não será também por causa de um preconceito da autora (obviamente condicionado por sua educação e a cultura de seu tempo!), que faz com que ela censure e não permita que existam em sua obra esses “elementos” que ela aprendeu a chamar de “sujos” e “baixos” e indignos de figurarem nas páginas da Alta Literatura?

Toda essa pudicícia austeniana daria, aliás, uma ótima paródia – imaginem que hilário um Orgulho e Preconceito Versão Pornô, com diálogos mais ou menos assim:

ELIZABETH: Oh! Darcy! I'm obliged to confide that I shall not be able to conceal from you any longer the fact that I'm so god-damned horny! Shouldn't you punish me violently with your sword for my reproachable misconduct on being such a nasty little girl?

DARCY: Oh! Lizzie! I shall in no time have you acquainted with my noble willie-willie, who shall punish you infinitely!


Se Jane Austen tivesse “apimentado” este seu prato com um pouquinho de erotismo, talvez se saísse com um romance ainda mais excitante de ler e com um cheiro mais forte de realidade – mas que certamente iria escandalizar bem mais seus contemporâneos. Mas seria exigir dela que fosse o que não poderia ter sido, dadas suas circunstâncias biográficas e sua educação. Uma Jane Austen pimentinha, endiabrada, só poderia surgir no pós-1960, na esteira das conquistas do feminismo e da revolução sexual, e até me arrisco a sugerir que uma candidata já surgiu: Erica Jong, a ótima autora americana, que não é menos excelente por ter sido best seller, e que me soa como um mix entre Austen, Woody Allen, Sterne, Fielding e proto-Sex And The City em seus romances deliciosos - como “Medo de Voar”, “Salve Sua Vida” e “Fanny”, entre outros.

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Outra coisa que me dá um pouco de comichão é que há também uma constante idealização do matrimônio que soa bem ingênua e demodê a alguém como eu, acostumado a ler os ataques furiosos de Wilhelm Reich e José Ângelo Gaiarsa ao casório e que foi “educado” sobre o assunto por obras como Cenas de Um Casamento, de Bergman, Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, de Mike Nichols, e Revolutionary Road, de Sam Mendes (só pra ficar em poucos exemplos).

Os personagens de Jane Austen estão sempre doidinhos pra casar, como se isso fosse a coisa mais doce e sublime do mundo: o “grande dia” de subir ao altar é visto pelo Mr. Collins, por exemplo, como “the day that was to make him the happiest of men” (pg. 137); ver as filhas casadas causa à mamãe Bennett certos êxtases quase orgásticos; e as mocinhas, quando se consuma o pacto de casamento, vêem-se como as mais felizes das criaturas. Que possa haver uma pontinha de ironia austeniana na descrição dessas altas expectativas românticas em relação ao idílio conjugal, até acredito que possa ser verdade; mas como deixar de considerar isso como água-com-açúquice exagerada, nós todos que não temos um pingo dessa crença no maravilhosidade da “coisa”?

Também neste sentido Elizabeth parece uma mulher menos ingênua, mais complexa e infinitamente mais sábia do que todas as mulheres que a rodeiam neste livro. Ela não está “doidinha pra casar”, como as maninhas, e recebe as propostas de Mr. Collins e de Darcy sem dar mostrar de tolas ingenuidades ou de crenças absurdas em mágicas felicidades que nasceriam do enlace. Atormentada por dúvidas, filosofa a certo momento:

“...since we see every day that where there is affection, young people are seldom withheld by immediate want of fortune from entering into engagements with each other, how can I promise to be wiser than so many of my fellow creatures if I am tempted, or how am I even to know that it would be wisdom to resist?” (pg. 164)

O próprio casamento dos pais não é nada tão idílico e harmonioso a ponto de parecer algo digno de inveja. Em um dos trechos mais impregnados de fina ironia do romance (e quiçá de todo o romance inglês do século 19), Austen escreve:

"Had Elizabeth's opinion been all drawn fro her own family, she could not have formed a very pleasing picture of conjugal felicity or domestic confort. Her father captivated by youth and beauty, and that appearence of good humour, which youth and beauty generally give, had married a woman whose weak understanding and illiberal mind, had very early in their marriage put an end to real affection for her. Respect, esteem, and confidence, had vanished for ever; and all his views of domestic happiness were overthrown. (...) Her ignorance and folly had contributed to his amusement. This is not the sort of happiness which a man would in general with to oew to his wife; but where other powers of entertainment are wanting, the true philosopher will derive benefit from such as are given." (261)