quinta-feira, 2 de julho de 2009

:: Quills ::

OS CONTOS PROIBIDOS DO MARQUÊS DE SADE
[Quills, de Philip Kaufman, EUA, 2000, 124min]

com Geoffrey Rush, Michael Caine,
Kate Winslet e Joaquin Phoenix


“De tudo o que se escreve,
só aprecio o que é escrito com o próprio sangue.”

NIETZSCHE



Não faltaram as fogueiras para os hereges, as perseguições aos "desencaminhados", o sacrifício de "ovelhas desgarradas", as tentativas de exorcismo dos “possuídos” pelo dêmo, as queimas e censuras de livros malsãos, e todo o resto dos terrorismos dos beatos sanguinários, mas alguns “demônios” foi impossível calar. A voz de alguns “possessos” ressoa através dos séculos e das mordaças, para desespero das Igrejas e seu kitschismo sistemático. O Marquês de Sade, um dos protótipos supremos do homem blasfemo, com o capeta no corpo, louco para escandalizar, foi um desses que não se deixou reduzir ao silêncio por nada neste mundo. Nem tampouco por nenhuma ameaça de punição no outro ou qualquer promessa de recompensa dos céus em que cuspia.

O excelente filme de Philip Kaufman retrata o endemoniado autor francês na fase em que está preso num hospício. Ali goza de regalias que não possuem nenhum dos outros 200 louquinhos ali encerrados: tem um quarto luxuoso, vinho fino, sofás confortáveis, pena e papel à vontade e tratamento pra lá de “humanitário” por parte do padre que administra o asilo-de-loucos.

Encarnado por Geoffrey Rush com uma garra e uma visceralidade de encher de sangue os olhos do espectador, o Marquês de Sade é retratado aqui a descer numa espiral infernal em sua rebelião sem freios contra o Estado, a Religião e a Repressão Sexual, Política e de Expressão.

A princípio, extasiado com suas travessuras, mostra-se um capetinha alegre que, trancafiado pelas autoridades, consegue continuar publicando seus livros pornográficos e sacrílegos com a ajuda de uma lavadeira do manicômio (Kate Winslet) e de editores que sabem do imenso potencial comercial daquela obra escarlate e iconoclasta. É a época em que “Justine” torna-se um imenso sucesso na Paris napoleônica repleta de guilhotinas e decapitações públicas, “decorada” com anãs prostitutas e livros libertinos pirateados em becos. O falatório sobre o best-seller é tão disseminado que o próprio imperador Napoleão tem que tomar medidas drásticas contra o desbocado Marquês, reduzindo a chamas suas obras e enviando um “psicoterapeuta” tirano e sádico (vivido por Michael Caine) para pôr-lhe juízo.

A história, daí em diante, vai ganhando contornos cada vez mais trágicos, até se resolver num banho de sangue, vísceras e excrementos que parece uma junção de Shakespeare com Bocaccio levada à telona por um Pasolini dos novos tempos. “I've got all the demons of hell in my head”, confessa o Marquês, “and my only salvation is to vent them on paper.” Essa necessidade absolutamente imperiosa de escrever para exorcizar os próprios demônios é o que será atacado pelo médico-vilão contratado para silenciá-lo. Poderiam simplesmente matá-lo, esse Marquês tão irreverente e incômodo, mas preferem impedi-lo de se pronunciar. Não sabem que estão lidando com um homem para quem a escrita é como a respiração, como o alimento, e que irá se debater furiosamente, até seu último alento, contra os que querem impedir sua voz de soar. “My writing is involuntary, like the beating of my heart...”.


As acusações contra esta obra literária ultra-polêmica são inúmeras: o Marquês de Sade representa um “profundo insulto às pessoas decentes”, escreve nada além de uma “enciclopédia de perversões”, só revela “o pior da humanidade”, enche páginas onde a crueldade humana atinge os mais horrendos cumes e é quase "celebrada"... Que os escritos do Marquês de Sade, desde aquelas tempos, fazem soar os alarmes e são vistos como “perigosos”, daninhos, geradores de péssimos efeitos éticos, é bem sabido. Mas é interessantíssimo acompanhar os duelos que, em vida, o autor enfrentou contra seus opositores. Os diálogos de Sade com o padre (vivido por Joaquin Phoenix) são primorosos ao pôr frente-a-frente duas concepções de mundo radicalmente diversas que se chocam:

“Não crei o mundo, só o registro!”, diz Sade.

“Somente seus horrores e mais escuros pesadelos!”, retruca o padre. “E com quê objetivo? Nada além de sua própria gratificação mórbida!”

“Escrevo sobre as grandes verdades universais que cimentam a humanidade num só todo, por todo o mundo”, defende-se Sade, de certo modo tentando justificar o valor de seu trabalho pelo “realismo” de seu retrato (altamente misantropo) da “podridão dos corações humanos”. “Nós comemos, nós cagamos, nós trepamos, nós matamos e nós morremos.”

E o padre, contra essa unilateral sugestão de uma “universalidade” do mal, lembra da nossa capacidade para o bem: “Nós também somos capazes de amor, de construir cidades, de compôr sinfonias, de perseverar na vida. Não será a missão da arte nos elevar acima do nível das bestas?”

* * * * *

A revolta de Sade é não somente o ímpeto furioso de uma fera enjaulada por autoridades que não respeita, mas também expressão de um ateísmo radical, que vai muito mais longe do que a mera negação da existência de Deus e recai numa longa procissão irada de provocações e dedos-médios levantados para um céu abominavelmente vazio – e contra todos aqueles que, iludidos e enlouquecidos, continuam pregando sobre a sapiência e bondade do Criador em meio às guilhotinas e às criancinhas que morrem de fome.

Quando o padre tenta convertê-lo, ele se recusa terminantemente a abraçar um Deus tão abominável: “This monstruous God of yours? He strung up His very own son like a side of a veal. I shudder to think what He'd do to me”. Em outro momento do filme, o Marquês, com uma visão límpida dos horrores sociais que o rodeiam, lembra ao padre que vivem numa realidade que tem como protagonista “the endless procession of the guillotine”: “We're all lined up waitin' for the crunch of the blade. The rivers of blood are flowing beneath our feet. I've been to hell. You've only read about it.”

Como uma criança pimentinha que, ao ser castigada, só se torna mais endiabrada, o Marquês de Sade vai num crescendo de revolta e maledicência à cada chinelada, à cada chicotada, à cada tortura que lhe infligem. O padre e o “psiquiatra” tentam, cada um de seu modo, regenerá-lo, moralizá-lo, domesticá-lo, “harness the beast that rages in his soul”. Mas sempre em vão. Se lhe retiram a pena e o papel, ele utiliza ossos de frango e gotas de vinho para escrever em seu lençol, depois entregue à lavadeira que o repassa para os editores. Quando lhe tiram isso, ele usa lascas de espelho para romper a própria pele e escrever com o próprio sangue em suas próprias roupas. Esvaziam seu quarto de todos os móveis, todos objetos, deixando também o Marquês nu em pêlo. Ainda assim, ele acha meios de continuar criando sua insistente obra-blasfêmia, ainda que seja sussurando sua insana prosa através de buracos na parede para os loucos vizinhos. Como último recurso, cortam-lhe fora a língua, amarram-no ao chão com correntes, preso numa catacumba sem luz, e ainda assim ele escreve nas paredes com os próprios excrementos!

O filme de Kaufman, ao contrário do Salò ou 120 Dias de Gomorra de Pasolini, não faz uso da técnica do “choque pelo choque” e não foi feito meramente para escandalizar os suscetíveis, mas sim para fazer-nos sentir visceralmente as contradições e batalhas de um destino humano dilacerante.

Por um lado, o Marquês de Sade é descrito como um homem de extrema sagacidade, um escritor de brilhantismo e força, dotado de muito senso de humor e lucidez na crítica social. Em seu contato com a lavadeira, jamais descamba para o completo desrespeito ou para o apelo à força bruta: é um perfeito gentleman, apesar de suas safadices, e tenta convencê-la pela retórica e pelas carícias a “experimentar sem vergonha os prazeres da carne”, prometendo fazer nela altas delícias “ao Sul do Equador”. Momentos de humor fino e genial não faltam, sejam nos excertos dos contos, sejam em certos diálogos (como na cena em que o Marquês convida o padre a tomar um vinho para que o papo role com mais desenvoltura, “because conversation, like some parts of the anatomy, works really better when lubrificated”).

Mas o filme tampouco faz dele um “herói” e deixa aberta a possibilidade de que sua obra seja de fato perversa e daninha, instigando as pessoas a cometerem os crimes e abusos narrados em seus contos – o que acaba ocorrendo quando um dos loucos, em transe sanguinário sob o efeito das palavras do Marquês, assassina Madeleine. Mas resta a questão: o louco já não tinha uma predisposição à violência e à falta de contenção pulsional, sendo a obra do Marquês um mero estopim para o trasnbordamento de um oceano de fúria bruta que ele já trazia dentro de si?

Já as duas “autoridades” que agem diretamente sobre seu caso acabam caindo em perversidades disciplinatórias e sadismos corretivos que os tornam até piores do que os personagens que povoam os livros do Marquês de Sade – e é aí que está a genial ironia deste filme genial. Do mesmo modo que homens supostamente “santos” sujaram de sangue suas batinas ao perseguirem os heréticos e as bruxas, tornando-se muito mais diabólicos em suas inquisidoras perseguições do que suas vítimas, também aqui os “agentes da punição” tornam-se mais malévolos e anti-éticos do que o Marquês que tentam exorcizar. O padre, a princípio tão promissor em seu “humanitarismo”, atinge um estado horrendamente psicótico em que diz: “I'm not the first man God has asked to shed blood on His name”. O “psiquiatra”, desde o começo um poço profundo de perversidade, um mercenário/torturador sem escrúpulos, vai progressivamente aparecendo aos olhos do espectador como um homem ainda mais nojento e vicioso do que o artista atormentado que foi contratado para “consertar”.

Se hoje, em pleno século 21, estamos assistindo filmes hollywoodianos sobre o Marquês de Sade, com atores do primeiro escalão, sendo indicados ao Oscar por seus papéis, e podemos facilmente comprar livros dele, inclusive em shopping centers, é sinal de que sua voz, por mais sacrílega e blasfematória que seja, tem uma força irreprimível. Esta obra, polêmica e explosiva, prossegue como um espectro, assustador e fascinante, que muitos continuam a perseguir, mas que ninguém jamais conseguiu apagar da face da Terra, fazendo de conta que tais palavras e pensamentos nunca nasceram.

“In conditions of adversity, the artist flourishes”, sugere o Marquês em certo ponto do filme. Esta voz artística que se levanta dos lodaçais do destino, irada e insana, é testemunho de uma vida que os poderes assépticos e repressores não puderam silenciar. Se, para além do horror que o Marquês de Sade nos causa, ele é também uma figura de tamanho fascínio, talvez seja porque sentimos um certo respeito místico por um homem que esteve pessoalmente no inferno, enquanto nós só lemos a respeito. E é um inferno na Terra! Um inferno que lhe inscreveram na carne através de torturas e censuras; um inferno que o homem construiu com suas guilhotinas e suas religiões que decapitam os que pensam diferente; um inferno criado por uma repressão da sexualidade que só cria neuroses e perversões e jamais conduz ninguém à "santidade" alguma; um inferno em que encerram-se em hospícios as vozes da discórdia e que se empurra-se rumo a loucura aquele que questiona a normalidade - um inferno, enfim, contra o qual ele se insurgiu com toda a fúria, provando com seu tresloucado heroísmo que pode-se romper até com as mais apertadas e indestrutíveis das mordaças.