quarta-feira, 1 de julho de 2009

:: colecionador de palavras preciosas (III) ::



“Tudo faz amor”. E eu acrescento, quando me dizes “faz amor”: até mesmo o passo com a estrada, até a baqueta com o tambor. Até o dedo com o anel, até a rima com a razão, até o vento com a vaga, até o olhar com o horizonte. Até o riso com a boca, até o vime com o facão, até o corpo com a cama e a bigorna debaixo do martelo. Até o fio com a tela, a terra com o verme, o edifício com a estrela, o sol com o mar. Assim como a flor faz com a árvore, até a cedilha faz com o c, até o epitáfio com o mármore, e a memória com o passado. A molécula com o átomo, o calor com o movimento, um tomo juntado ao outro, até a argola com a corrente... tudo, enfim, exceto o Ódio e o coração que Ele corrompe. Sim, tudo faz amor, debaixo das asas do próprio Amor, como se fosse no seu Palácio. Até as torres das cidadelas com a saraivada de balas. Até as cordas da harpa com a falange do dedo. Até o braço com a atadura e a coluna com o teto. (...) Tudo, enfim, tudo em todo o universo, exceto a face com a bofetada...” --- GERMAIN NOUVEAU (1852-1920)


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“Muito se teria de dizer sobre esse contentamento e essa ausência de dor, sobre esses dias suportáveis e submissos, nos quais nem o sofrimento nem o prazer se manifestam, em que tudo apenas murmura e parece andar nas pontas dos pés. Mas o pior de tudo é que tal contentamento é exatamente o que não posso suportar. Após um curto instante parece-me odioso e repugnante. Então, desesperado, tenho de escapar a outras regiões, se possível a caminho do prazer, se não, a caminho da dor. Quando não encontro nem um nem outro e respiro a morna mediocridade dos dias chamados bons, sinto-me tão dolorido e miserável em minha alma infantil, que atiro a enferrujada lira do agradecimento à cara satisfeita do sonolento deus, preferindo sentir em mim uma verdadeira dor infernal do que essa saudável temperatura de um quarto aquecido. Arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada... bem como um desejo louco de destruir algo, seja um armazém ou uma catedral, ou a mim mesmo, de cometer loucuras temerárias, de arrancar a cabeleira a alguns ídolos venerandos, de entregar a um casal de estudantes rebeldes os ansiados bilhetes de passagem para hamburgo, de violar uma jovem ou de torcer o pescoço a algum defensor da ordem e da lei. Pois o que eu odiava mais profundamente e maldizia mais, era aquela satisfação, aquela saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado...” --- das anotações de Harry Haller (em O Lobo da Estepe, de Herman Hesse)

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"Un ciel délivré des ombres, c'était l'horreur pour moi. Je n'appréciais que les temps gris, et cela en raison de la mélancolie en moi, de l'insecte de mélancolie qui cheminait en moi comme dans une souche creuse, vermoulue. C'est une maladie qui affecte l'esprit d'autant plus sûrement qu'il craint alors de s'en défaire: le mélancolique est celui qui est persuadé d'avoir tout perdu - sauf sa mélancolie à quoi il tient farouchement. C'est la maladie de celui qui, dépité de n'être pas tout, choisit, par un revers enfantin de l'orgueil, de n'être rien. (...) Cette maladie m'est passé, madame. Je ne sais trop comment, mais elle m'est passé. Aujourd'hui je sais vous aimer, et si je goûte toujours les ciels gris, c'est d'une manière plus calme: je les aime parce qu'ils sont, non parce qu'ils confirmeraient une catastrophe éprouvée au-dedans de mon esprit. Au fond, même dans ces accès de mélancolie, je n'ai jamais trop su quoi faire de cette vie sinon l'aimer, l'aimer follement et le lui dire: écrire des lettres d'amour, éclairer la blancheur d'un papier en y renversant de l'encre... (...) Je vous aime, madame - même si cet amour ne vaut pas et ne vaudra jamais pour un acquiescement au monde: on ne peut ressentir la douceur de cette vie sans en même temps concevoir une colère absolue contre le mal qui la serre de toutes parts." ---
CHRISTIAN BOBIN, L'Inespérée