quinta-feira, 28 de julho de 2005



C O R A Ç Õ E S e M E N T E S
(Hearts and Minds), de Peter Davis, EUA, 1974.

Michael Moore, com seu tradicional gosto pelas frases bombásticas, disse que considera "Corações e Mentes" o "melhor documentário de todos os tempos" e "um dos melhores filmes já feitos na história do cinema". Não sei se o filme de Peter Davis (que levou o Oscar de Melhor Documentário em 1975) merece toda essa pagação de pau, mas é com certeza uma obra com uma puta importância histórica e um marco para o cinema político.

"Corações e Mentes" é um retrato da Guerra do Vietnã que, bem no estilo que depois iria marcar o jeito mooriano de documentar, está longe de uma suposta "imparcialidade": o filme de Davis se preocupa mesmo é em esmurrar bonito a cara do governo e do exército americano (desde Truman até Nixon), mostrando claramente toda a arrogância imperialista e a grotesca capacidade de cometer os maiores horrores com a consciência tranquila...

A conclusão principal que se tira é que isso que aprendemos a chamar de Guerra de Vietnã foi muito mais uma campanha contra-revolucionária, um ataque imperialista ou um genocídio sistemático do que propriamente uma guerra. Nenhuma das justificações que vem sendo utilizadas pelos EUA nos últimos anos para justificar invasões e carnificinas se aplicavam ao caso Vietnã: o pequenino e lamacento país asiático não tinha armas nucleares que ameaçava utilizar, não tinha mandado terrorista algum pra causar estragos em solo americano, nenhum tipo de ataque militar vietnamita contra a América tinha acontecido... Nem mesmo uma ameaça. Tudo o que o Vietnã fez para merecer a chuva de bombas made in USA foi cometer o "inominável crime" de tentar o comunismo, coisa que, em plena Guerra Fria, os EUA não podiam aceitar de modo algum...

Afinal, a Guerra Fria não foi tão "fria" assim, como bem mostra a retrospectiva histórica que faz "Corações e Mentes": pode ser que as duas superpotências não tenham efetivamente chegado à treta propriamente dita, mas mini-guerras foram sim lutadas em defesa das respectivas ideologias. Por exemplo: a União Soviética invadiu o Afeganistão, ocasião que exigiu que os Estados Unidos, muito ironicamente, tratassem de auxiliar com armamentos o regime Talibã que décadas depois trataria de causar seus estragos em Manhattan e Washington... Os EUA, por sua vez, financiaram grande parte da campanha militar francesa na Indochina, outro capítulo da odisséia para salvar o mundo do "demônio comunista"...

O mais legal é que Peter Davis, para realizar esse seu fundamental documento histórico que revelava toda as atrocidades cometidas pelos EUA no Vietnã, não ficou só olhando de longe, seguro e protegido: sua câmera pousa realmente no Vietnã, filma as casas destroçadas dos camponeses, conversa com os vietnamitas que tiveram parentes mortos ou moradias reduzidas a pó, nos coloca frente a frente com uma enorme quantidade de dor humana concreta... Que dizer da tristeza gigantesca que é ver a confecção dos miúdos caixões de madeira feitos para as crianças mortas "acidentalmente" pelos ataques à bomba americanos? Que dizer da indignação que se sente vendo aquelas duas velhinhas que tiveram suas casas bombardeadas e que choram de desespero frente ao olhar frio e obstinado da câmera de Davis? Ou do pai que, enlouquecido e frenético, aponta para a câmera os locais exatos onde TODOS OS SEUS FILHOS morreram, e que depois atira a blusa de sua filha ao cinegrafista e manda que ele a entrege a Nixon? E como esquecer aquela cena, aliás uma das imagens mais clássicas que entraram na história da Guerra do Vietnã, em que o vietnamita toma um tiro na cabeça, despenca ao chão e seu crânio se transforma num chafariz de sangue jorrante? O horror, o horror...

Fica óbvia a brutalidade dos ataques americanos, evidente que fizeram numerosas vítimas entre civis totalmente indefesos e nada perigosos, não só por causa das bombas, do napalm, das rajadas de metralhadora, mas também por causa daquele horrível veneno que os aviões despejavam sobre as plantações e que matava os vietnamitas como se fossem pulgas... Muito interessantes também são as declarações dos três aviadores da aeronáutica americana que Davis entrevista(um que se transformou em herói e que dá aulas de "american way of life" para criancinhas, um que ficou teraplégico, um que se mostra terrivelmente arrependido de seus atos). Eles esclarecem que esta guerra era sentida por eles como algo de muito "limpo" e higiênico: ninguém via, lá de cima, as pessoas reais, os gritos, as agonias, o sangue, os ferimentos, a dor imensa. Tratava-se somente de pilotar os aviões com competência, despejar as bombas no alvo indicado pelos chefes, vê-lo explodir excitantemente (é grotesca a confissão de certos aviadores, que dizem que sentiam muito tesão e excitação ao matar...) e depois dar o fora, sem que nenhum tipo de má consciência moral se formasse...

Uma cena em particular me pareceu extremamente bem-bolada: é aquela em que um certo membro do governo americano, meio hesitante em sua declaração, como se suspeitasse estar proferindo uma imensa bobagem, tenta mostrar que a "filosofia oriental" considera que "a vida não é importante". Corte rápido para as bombas americanas caindo silenciosamente sobre o Vietnã. É genial: Peter Davis não precisa de nenhuma palavra, de nenhum discurso, de nenhuma argumentação complexa, para demolir o discurso em um segundo, pois as imagens já dizem tudo, pois a contradição entre o discurso precedente e a evidência das imagens que surgem é inegável. Afinal, não é a "filosofia oriental" que acha que a vida não é importante, caro senhor, mas sim esses poderosos senhores americanos que esmagam pessoas como se fossem insetos debaixo do napalm, do veneno e das bombas... Qual foi mesmo o país que fez caírem duas bombas atômicas em solo japonês quando a guerra já estava praticamente ganha? Quem é que seria capaz de um ato de uma monstruosidade dessas sem ser indiferente à vida humana? É para ti, América arrogante, que a vida humana não parece ter mais valor do que a vida das baratas ou das pulgas, que pode ser imolada e destroçada sem grandes remorsos, que pode ser banhada em fogo aos milhares e aos milhões por coisas "muito mais importantes"... como petróleo, dinheiro, poder, ideologia, talvez diversão... (8.8 / 10.0)

terça-feira, 26 de julho de 2005



MATE-ME POR FAVOR .

Não é à toa que se costuma dizer que "Mate-me Por Favor" é a Bíblia do Punk. Com suas quase 500 páginas e inumeráveis declarações coletadas, o livro organizado por Legs McNeil e Gillian McGain narra os primórdios do movimento punk com uma riqueza de detalhes e um vigor narrativo impressionantes. É o que basta para torná-lo um dos documentos literários mais fundamentais para quem deseja entender como nasceu essa que é uma das mais importantes movimentações culturais das últimas décadas.

Obviamente, o livro não pretende ser uma enciclopédia punk que esgote o assunto. O que se trata aqui é principalmente do início de tudo, nos EUA do fim dos anos 60 e começo dos 70, quando a semente do punk começou a germinar. Para quem ainda compartilha da noção simplista de que o punk começa em 1977, com os Sex Pistols levantando um circo de baderna na terra da Rainha, aprende novas verdades aqui. Muitos anos antes de Johnny Rotten, Sid Vicious e companhia começarem a atormentar os ingleses com palavrões ditos na tevê aberta, atentados sônicos e shows dos mais caóticos que já se havia visto, já surgiam nos EUA as primeiras bandas, estilos e comportamentos que depois seriam reconhecidas como proto-punks.

As bandas de que se trata aqui são essencialmente underground: não fizeram sucesso nos grandes meios de comunicação ou nas grandes rádios, não lotavam estádios com seus shows e até hoje permanecem muito mais como artistas cult do que fenômenos populares. Mesmo assim, a influência do Velvet Underground, do MC5, dos Stooges, dos New York Dolls, do Television e dos Ramones em quem os viu e na geração que se seguiria é enorme. É aquele velho papo: só umas cem pessoas iam aos shows do Velvet durante a existência da banda, mas umas 90 delas saiam do show e montavam uma banda.

A irreverência dos New York Dolls, que tocavam vestidos de mulher e banhados em abundante maquiagem cafona, prenuncia todo o glam rock que viria a seguir (T Rex, Roxy Music, Placebo, Suede, um certo David Bowie, entre muitos outros, continuam devedores). A rebeldia trash dos Stooges, com as atitudes altamente nojentas de Iggy Pop (que costumava tomar a simpática atitude de vomitar sobre o público ou cortar-se com cacos de vidro no meio dos shows), será depois imitada pelos Sex Pistols e tantas outras bandas de hardcore. O peso mastodôntico da música do quinteto de Detroit MC5 é como o heavy metal dando seus primeiros passos, pouco antes do começo da popularização do Black Sabbath e do Led Zeppelin. A poesia maníaca e rimbaudiana de Patti Smith e a experimentação iconoclasta do Velvet Underground representavam as ambições artísticas e intelectuais mais elevadas dentro daquela abençoada turma de amigos na Nova York do começo dos 70. Os complexos e virtuosos duelos de guitarra do Television, em músicas que chegavam a ultrapassar os 10 minutos de duração, apontam para um lado mais progressvio e virtuosístico do punk. E Richard Hell, Elvis Costello e o Blondie, por sua vez, ao começarem a misturar pop fácil com barulho apunkalado e irreverência, inventaram o que seria a new wave. A música pop nunca mais seria a mesma.

Adotando um estilo original de narração, "Mate-me Por Favor" é uma sucessão de declarações dadas pelos protagonistas e figurantes da história toda, sem nenhuma intervenção de um narrador que organize o aparente caos. Centenas de entrevistas coletadas, editadas, mescladas e entretecidas formam a narração do livro, uma imensa Babel punk onde a saga é contada conjuntamente por uma centena de vozes. Desde escritores da geração beat que se interessavam por música pop (como Allen Ginberg e William S. Burroughs), até figurinhas da cena artística e intelectual de New York (Andy Warhol o mais ativo deles), passando por produtores e donos de lojas de discos, até desconhecidas groupies e roadies, todos ganham voz para darem sua contribuição à essa história coletiva do punk. Mas que não se imagine uma obra teórica, sociológica, antropológica, histórica, escrita em linguajar acadêmico e pretensioso: nada mais distante da verdade. "Mate-me Por favor" é totalmente baseado na oralidade, no informal, nos bate-papos, nas zoações, coisa que o torna, antes de mais nada, uma leitura extremamente divertida. Fundamental.




DISCOGRAFIA FUNDAMENTAL DO "PROTO-PUNK" AMERICANO

VELVET UNDERGROUND - "Velvet Underground & Nico" e "White Light/White Heat"
MC5 - "Kick Out The Jams"
STOOGES - "Stooges", "Funhouse" e "Raw Power"
NEW YORK DOLLS - "New York Dolls"
TELEVISION - "Marquee Moon"
PATTI SMITH - "Horses"
RAMONES - "Ramones", "Leave Home", "Rocket To Russia"
BLONDIE - "Parallel Lines"
ELVIS COSTELLO - "My Aim Is True"
RICHARD HELL - "Blank Generation"
JOHNNY THUNDERS & THE HEARTBREAKERS - "Born To Lose"

domingo, 24 de julho de 2005



9 CANÇÕES
(9 Songs), de Michael Winterbottom, EUA, 2005, 69 min.

Já tava sabendo da má reputação desse filme (tomates podres / metacritic / cinemascópio) antes de me arriscar a ir ver, mas pensei que não podia ser tão mau quanto diziam...; tava achando que pessoas muito puritanas, que já estão gritando de horror quando vêem uma genitália exposta na tela, é que estavam queimando a imagem do troço; que provavelmente era algo de muito divertido, com uma trilha sonora excitante e muita putaria da boa; que devia ser muito "provocativo" e muito "chocante"... Mas não: comprovei que Nove Canções é mesmo tão ruim quanto andam falando e que não se fala mal dele por ser "muito brutal" ou "muito pornográfico", coisas que certamente não é, mas simplesmente por ser cineminha meia-boca: repetitivo, praticamente sem enredo, sem qualquer diálogo mais inteligente, sem nenhuma criatividade verdadeira, com personagens pouco interessantes, rasinhos, rasinhos...

O filme é independente, filmado com câmera digital, de baixo orçamento, somente três pessoas na equipe (o diretor Winterbottom, o cameraman e o cara do som) e um elenco mínimo de duas pessoas; e a idéia era registrar um rápido affair entre um jovem casal na Inglaterra que gasta os 69 minutos de projeção com sexo (muito), drogas (um pouco) e rock and roll (com rápidas férias num concerto de piano). Os pombinhos - aparentemente ninfomaníacos em estado muito avançado da doença - se conhecem num show do Black rebel Motorcycle Club e daí em diante, além de irem a vários shows de bandas do Novo Rock americano e britânico, brincam de fazer amor das mais variadas formas conhecidas.

Começando como um soft-porn suave, meio metido a "artístico", o filme vai lentamente se transformando em algo mais descaradamente pornográfico e vulgar, com direito a penetração, ejaculação e buraquinho anal exibido. Fica-se com a impressão de que Nove Canções é só um filme pornô tradicional (daquele que nem precisa de muita "historinha" antes de chegar à ação propriamente dita) que resolve intercalar alguns videoclipes entre uma cena de putaria e a próxima, e só, nada mais. Ou que é um documentário sobre grandes canções de rock dos últimos anos que intercala uma ou outra cena de putaria entre uma canção e a próxima. Uma "idéia" que, evidentemente pouquíssimo criativa, parece ter saído da cabeça de algum adolescente burguês com os hormônios borbulhantes que ganhou de papi uma câmera digital e que viu a luz: "Vou filmar umas putarias e uns shows de rock, e depois vou me fingir de cineasta radical e transgressor!"...

O filme se reduz a essa fórmula simplérrima, pouco ambiciosa e bem medíocre: uma canção, uma trepada, uma canção, uma trepada, uma canção, uma trepada, ao infinito... Tudo bem que as cenas de sexo são filmadas com realismo, crueza, falta completa de frescurites, o que faz com que o espectador sinta que o sexo ali gravado não é somente uma simulação. It's the real deal. E, claro, Winterbottom foge dos clichês tradicionais que o cinemão comercial utiliza nas cenas de sexo: os joguinhos de luz, os ângulos que são escolhidos de propósito para "não mostrar muita coisa", aquela trilha sonora saxofônica (amém, Kenny G...) que é tão melada que chega a dar ânsias de vômito... E também dá pra admirar a atitude dos atores, que se entregam ao olhar das câmeras sem dar nenhuma amostra visível de pudor ou inibição, o que não é tarefa fácil para um filme que exige que eles atuem nus na maioria das cenas. "Nove Canções" pode muito bem ser o primeiro filme com pretensões a ser "sério" e "cinema de verdade" em que os atores ficam mais tempo pelados do que com roupa, "proeza" que nem "O Império dos Sentidos" conseguiu.

Mas o problema é que "Nove Canções" não se sustenta como filme e acaba se parecendo muito mais com um AMONTOADO DE CENAS pornô em que Winterbottom põe em prática um modo de abordar o erotismo que pareça mais realista do que o usual. Tudo bem, acho até louvável querer mostrar a coisa com mais naturalidade, menos grandiloquência, menos efeitos cinematográficos, mas isso daria algo de bom somente se estivesse inserido num filme verdadeiro, com história, enredo, desenvolvimento, coisa que "Nove Canções" não consegue ter. Esse filme "não sai do lugar", é esse o problema... ele não anda pra frente... fica estagnado no sexo e nas canções e sua repetição cansativa e tola...

E só pra disfarçar a monotonia e a repetividade revoltantes, se enfia à força no meio da salada algumas informações de Almanaque sobre a Antártida (?), aliás aparentemente arbitrárias e um tanto absurdas. Neste "momento cult" de 9 Canções o espectador é presenteado com muitas curiosidades sobre o continente de gelo que, veja só, não foi pisado por ninguém antes do século 20 e que possui sei lá quantos mil quilômetros quadrados de gelo.... Que diabos a Antártida tem a ver com o rock and roll e com a odisséia sexual de nossos protagonistas? Absolutamente nada, a não ser que o gelo seja metáfora para a vida afetiva dos nossos dois amantes...

Pois entre esses dois não parece haver nenhum tipo de atração mais profunda, nenhuma verdadeira simpatia ou amizade, nada que mereça receber o nome de "amor" ou mesmo de "paixão". O que eles fazem é usufruir de seus corpos, como animaizinhos no cio, sem que seus "eus interiores" sintam qualquer comunhão mais próxima. E, aliás, parecem se conhecer muito mal e se interessar ainda menos por qualquer coisa que não seja o corpo alheio. Que diferente é o casal de "Antes do Amanhecer" e "Antes do Pôr-do-Sol", os lindos filmes de Richard Linklater: aí o verdadeiro valor é a conexão entre os espíritos, a amizade entre os amantes, o conhecimento mútuo e o bom-humor... Quão ridículo, medíocre e pouco atraente me parece esse casalzinho de "Nove Canções" quando comparado com aquele de Ethan Hawke e Julie Delpy... E podem me chamar de romântico, não me importo nem um pouco.

Ok, "Nove Canções" até funciona como um conjunto de video-clipes que registra as performances ao vivo de bandas bacaninhas, desde as atualmente hypadas (Black Rebel, Franz Ferdinand, Von Bondies), as já clássicas (Primal Scream, Super Furry Animals) e as meio medíocres (Elbow, Dandy Warhols...). O duro é que a música, que deveria salvar o filme de ser um desastre total, não empolga tanto assim (falando por mim). É incrível, por exemplo, como as backing vocals do Von Bondies cantam pessimamente o refrão de "Come On" (música tão legal que é um crime estragá-la assim, gurias...), quão mal-aproveitado foi o show do Super Furry Animals (com certeza havia um trecho melhor a selecionar), que musiquinha mais chata dos Dandy Warhols foi inserida no filme... E duvido muito que haja muita gente que vá ao cinema para ver os clipes ao invés da putaria...

Veredito: Nove Canções, como filme pornô, é medíocre (não sou nenhum phD no assunto, juro por Deus, mas tenho certeza que há uns muito mais excitantes e quentes do que este!); como "filme de rock", é um tanto decepcionante (pela falta de qualquer entusiasmo verdadeiro dos personagens pelo estilo e pela oscilação entre canções foda e outras chumbregas...); como "obra de arte", é totalmente nulo. Pra mim, o filme de Winterbottom conseguiu a proeza de ser pior do que "Ken Park", filme este que, pelo menos, tem uma ou outra sacada inteligente, um ou outro diálogo marcante (gosto principalmente da última fala do filme de Larry Clark, quando a pergunta "Você gostaria que a sua mãe tivesse te abortado?" recebe como "resposta" um dos silêncios mais eloquentes que já vi)... Eu acho que já passou da hora de certos caras perceberem que filmar sexo explícito, ejaculações, penetrações, punhetas e chupadas não é o que basta para ganhar a medalha de Cineasta Transgressor e Revolucionário... (2.0 / 10.0).

obs: em cartaz no ESPAÇO UNIBANCO da Rua Augusta.

sexta-feira, 22 de julho de 2005


FOLHAS SOLTAS

Ontem, hoje, amanhã... Como simbolizar
O passado, o presente, o futuro - as três fases
Da vida? com três frases
De sentido corrente e de uso o mais vulgar:

- Uma saudade; um grande esforço; uma esperança.

Ou antes, e talvez melhor, expondo-as numa
Tríplice imagem que resume a vida inteira:
- Um rosto, luminoso e alegre, de criança;
Duas mãos perseguindo uma bolha de espuma;
E rindo-se (de quê? de tudo) uma caveira.

(vicente de carvalho)

sábado, 16 de julho de 2005

E D U K A T O R S
(Alemanha, 2004, de Hans Weingartner)


Esse é um daqueles mistérios da alma humana que é difícil de entender: por que diabos um ricaço nunca está realmente satisfeito com a fortuna que tem? Por que precisa sempre adicionar mais um zero a seu saldo bancário, um carro à sua garagem (que digo eu!? a seu GALPÃO!), um iate a sua praia particular...? O que faz com que ele nunca consiga se satisfazer com o que já possui e tenha que partir sempre em busca de mais e mais e mais?

É realmente de indignar, de revoltar, de deixar louco de raiva, a atitude da maioria dos bilionários desse planeta: eles insistem em cultivar suas fortunas pessoais, e entesourar seus capitais, e fazê-los render indefinidamente, enquanto que em todos os cantos desse mundo se ouvem os gemidos das multidões que agonizam de fome, de frio, de humilhação... E, afinal, fala sério: que diferença faz ter um bilhão de dólares ou trinta, cinquenta, cem bilhões? Um bilhão de dólares é grana mais do que suficiente para que se compre tudo o que se possa desejar. E ainda assim, para terem o orgulhozinho escroto de um saldo bancário com dezenas de zeros à direita, para gozarem da celebridade de serem incluídos em alguma listinha enojante dos mais ricos do mundo de alguma revista de negócios, eles, os milionários, se agarram a suas fortuninhas... Tristes humanos, tão contaminados por seu egoísmo, tão pouco capazes de se sensibilizar com os destinos de outros homens, tão apegados a suas posses, que se esquecem completamente que existem coisas chamadas caridade, solidariedade, compaixão, generosidade...

Não que sejamos, todos nós, muito diferentes... Mas o que revolta no milionário é que ele poderia muito bem doar uma enorme parcela de sua renda para outros mais necessitados sem que isso fizesse muita falta para ele. Exemplo: um homem que possui 50 bilhões de dólares e que doasse 49 bilhões para alguma entidade de combate à fome no Quarto Mundo sairia realmente prejudicado por isso? Com o bilhão que manteve no bolso, pode ainda viver a vida a viajar pelos lugares mais belos do mundo, se hospedando nos mais belos hotéis, comendo as mais caras das comidas, andando nos mais belos carros... E ainda assim eles permanecem comprando o supérfluo para si ao invés de doar o necessário a outros em situações agoniantes. Quem já não teve vontade de punir os milionários por seu comportamento revoltantemente egoísta? Quem já não teve fantasias sangrentas sobre imolações e torturas contra esses porcos capitalistas?...

Pensamentos como esses foram trazidos à tona pelo filme alemão EDUKATORS, segundo longa-metragem do jovem cineasta Hans Weingartner. É mais um filme nessa leva que vem crescendo ultimamente: a de filmes subversivos que pretendem criticar o atual estado de desenvolvimento do capitalismo e do neoliberalismo (e uma de suas principais consequências: a péssima distribuição de riquezas no planeta). Só ficando nos exemplos do cinemão mainstream, tivemos grandes obras nesse estilo com o Clube da Luta (que, para quem sabe ver bem, é uma espertíssima crítica ao vazio existencial na sociedade de consumo) e os documentários do Michael Moore...

EDUKATORS é o nome de uma organização subversiva de protesto criativo contra o capitalismo. Jan (Daniel Bruhl, que protagonizou também o ótimo Adeus Lênin!) e Peter (Stipe Erceg), dois companheiros de longa data, armam um novo método de "terrorismo poético" ou de "protesto não-violento contra o sistema capitalista": gastam suas madrugadas a invadir mansões de bilhardários (que estão ausentes de suas casas) para realizar uma espécie de "trote". Uma vez lá dentro, não roubam nem destroem nada, como se quisessem provar que não tem intenções baixas de apossamento indevido de bens alheios nem de holocaustos raivosos de riquezas. Somente mudam de lugar os móveis e objetos de decoração, arranjando-os de forma meio caótica, meio brincalhona, e depois deixam um recado para os invadidos que diz "Seus dias de fartura estão contados!" ou "Você tem mais dinheiro do que deveria ter!". E assinam com o codinome EDUKATORS.

A intenção é clara: os Edukators não são uma organização criminosa à la Robin Hood que quer roubar os bens dos ricões e distribui-los para as massas, mas sim um coletivo que se propõe a acordar a consciência dos milionários para a desigualdade social. É questionável se esses métodos funcionam. Primeiro, pode-se objetar que entrar na casa de uma meia dúzia de ricões nada vai resolver num nível nacional, muito menos global, já que, mesmo que esses ricos invadidos procurem realizar mais "atos caridosos e humanitários" para provarem a seus Educadores que "melhoraram", seriam somente atos isolados que não resolveriam muito para o quadro geral. A essa objeção os Edukators já tem resposta pronta: eles são somente os precursores, aqueles que fornecem o modelo, o exemplo; outros seguidores do credo virão na sequência e darão continuidade ao "projeto". É o modo de pensar Luther Blissett: a gente começa a realizar certos atos e os "assina" com um certo nome, convidando outros jovens rebeldes a adotá-lo também, e então Edukators ou Luther Blissett deixa de ser o nome de um certo grupo específico, localizado num espaço geográfico muito bem delimitado, e se torna algo de muito especial: um MITO, desterritorializado e múltiplo, muito mais difícil de ser derrotado pelo poder por não ter nenhuma liderança central. Mas há aqui uma diferença fundamental: Edukators não é o nome de um movimento contra-cultural realmente existente como o Luther Blissett, mas nem precisa sê-lo para servir como modelo. O cinema serve aqui como uma notável ferramenta de propagandear um certo modo de subversão aos seus espectadores mais ousados. Quem duvida que exista uma parcela do público que sai do cinema a fim de imitar a atitude dos Edukators? E como não pensar que o diretor tenha tido essa intenção inspiradora?

Mas também se pode objetar outra coisa: não será muito mais plausível que os ricões, ao invés de passarem a magicamente se dedicar a atos de filantropia, se decidam muito mais a um fechamento ainda mais paranóico em seus mundinhos estanques? O que leva os Edukators a crer que ter sua casa invadida por um grupo rebelde fará com que o milionário passe a agir de modo mais altruísta? É muito mais plausível que instale um sistema de alarme mais eficiente, que contrate seguranças mais fortemente armados para fazer a vigilância de sua propriedade, que mande blindar todos os seus automóveis com a mais impenetrável das carapaças... Se bem que em nenhum momento se explicita realmente que a intenção é que os capitalistas passem a distribuir suas riquezas: se trata muito mais de assustá-los, de fazê-los temer novas invasões, de torturá-los um pouco com o medo... “Queremos que eles se sintam inseguros mesmo com toda a segurança que pensam ter. Queremos que fiquem apavorados.”, diz Jan (cito de cabeça, ou seja, com pouca exatidão...). Mas de que serve instigar a paranóia alheia, se isso só serviria para que eles ficassem ainda mais receosos de perder suas posses e se esforçassem para resguardá-las ainda melhor?

A coisa se complica quando a namorada de Peter, a loirinha Jule (Julia Jentsch), incapaz de pagar o aluguel de seu apartamento, se muda para a casa do companheiro. Dois homens e uma mulher dividindo a mesma moradia... já dá pra suspeitar aonde isso vai dar. Num fim-de-semana em que o “dono oficial” da garota estava em viagem, Jan e Jule se engraçam. A garota conta para o amigo a história de sua desgraça: um tempo atrás, dirigindo seu carrinho velho por uma estrada, havia batido na Mercedes de um grande empresário, causando a destruição completa do veículo. Resultado: adquiriu uma dívida de 100.000 euros, que paga gota a gota trabalhando como garçonete num restaurante para grã-finos. Segundo seus cálculos, vai precisar de OITO ANOS de trabalho só para pagar o carro destruído do desgraçado. Como não podia deixar de ser, a garota adquiriu um certo ódio contra todos os milionários e suas frescuras idiotas (chega até mesmo a riscar os BMWs e Ferraris em estacionamentos), e vai encontrar em Jan um aliado em seu ódio. Ambos acham revoltante que June tenha que trabalhar por anos e anos e anos para sustentar o estilo de vida do milionário, e ainda mais por saberem que um carro, para uma pessoa dessas, é uma mixaria. Paralelamente à atração que nasce entre os dois, nasce também o interesse empolgado de Jule pela ação dos Edukators. Mas logo se vê que é a vingança o que busca a mocinha.

Quando invadem a casa do milionário Hardenberg, aquele que obriga June a trabalhar “escravamente” para pagar sua dívida, são surpreendidoss pelo mesmo e obrigados a levá-lo como refém de um sequestro improvisado. Algumas das melhores cenas do filme vão se passar no cativeiro, quando os três jovens idealistas e revolucionários duelam verbalmente com o empresário bilionário. O que está em questão, claro, é a indiferença dos homens mais ricos do mundo em relação aos destinos humanos no terceiro e quarto mundo. Hardenberg está certo de que tem o direito de usufruir da fortuna que, diz ele, foi conquistada por seu trabalho duro... Ao que respondem: quem trabalha de verdade são as pessoas esfomeadas e esfarrapadas da América do Sul, da Ásia e da África, por um salário de miséria, e o senhor somente se apropria desse trabalho para multiplicar o capital... Hardenberg, por sua vez, diz que não tem culpa por não ter nascido na Ásia miserável, que “não criou as regras do jogo e somente o joga”, ao que respondem: “o culpado não é só quem criou a arma, mas também quem puxa o gatilho”. E assim vamos acompanhando alguns dos diálogos mais espertos e instigantes que o cinema político já apresentou aos seus espectadores em toda sua história.

O filme certamente não é simplista ou excessivamente maniqueísta: de forma alguma reduz os personagens a expressões do bem absoluto aqui, do mal absoluto acolá. Os três revolucionários, por exemplo, são descritos com uma verossimilhança impressionate. Não há por aqui nenhuma insistência em mostrá-los como heróis totalmente imaculados e sem nenhum traço de interesse pessoal, ganância ou mesquinharias egóicas. Exemplos: Peter não resiste à tentação de surrupiar um Rolex da casa de um ricão invadido, mesmo sabendo que os Edukators não são uma organização que aprove o furto. Jule, por sua vez, sabe que o sequestro do milionário não é verdadeiramente um ato “altruísta”: é muito mais motivado por um rancoroso desejo de vingança do que por uma real preocupação com as outras pessoas que são fodidas pela péssima distribuição de riquezas no planeta. E, claro, a fidelidade ao ideal revolucionário acaba por ser atrapalhada pelo ciúme e pela briga interna dentro do triângulo amoroso.

O empresário sequestrado, por sua vez, não é descrito caricatamente, como se esperaria de um filme de esquerda mais fanático, como uma pessoa irremediavelmente gananciosa, egoísta, conservadora, insensível... Não: trata-se de um ex-militante de esquerda da geração 1968, que viveu em repúblicas estudantis, e que depois não pôde resistir às tentações do mercado e do luxo bruguês. Um homem que manifesta seu “respeito” ao idealismo juvenil e que, como se diz, talvez nem seja “má pessoa”. Um sequestrado que acaba até por simpatizar com os seus sequestradores (o que os psicanalistas chamam, se não me engano, de Síndrome de Estocolmo) e que parece estar curtindo suas férias longe de sua vidinha tradicional em sua mansão, fazendo poucos esforços para fugir. Tudo bem que acaba por instigar a guerra entre os jovens e que acaba por tomar uma decisão que nos deixa com raiva no final do filme (calma que eu não vou contar nada).

EDUKATORS, mesmo que esteja claramente do lado dos revolucionários e sempre procure nos fazer simpatizar com eles e sua luta, não sacrifica a verdade do retrato e não cai nunca na caricatura. Trata-se de fazer cinema com as pessoas como são, não com estereótipos ou ideais, e foi isso que Hans Weingartner parece ter entendido muito bem. Saiu-se com um filme gostoso de assistir, que instiga identificação com os personagens e que inspira a imitá-los, que junta dramas humanos pessoais com críticas sociais gerais, enfim, um cinema jovem, inteligente, tocante, excitante. O mundo precisa de mais filmes como este.

quarta-feira, 13 de julho de 2005

DLMsongs atualizado!



JACK JOHNSON - in between dreams. 2005. alguns chamam de música de surfista, mas não tem por aqui nada que remeta ao surf rock de Dick Dale, Ventures e Man Or AstroMan. Nem mesmo guitarras. Outros chamam de música de maconheiro, e aí a definição já cola melhor. Eu gosto mesmo de chamar de folk-rock introspectivo de inspiração praiana. Nada de extremamente festeiro, ensolarado, brilhante: a música de Jack Johnson, se tem algo a ver com praia, é mais com aqueles momentos no fim da tarde, quando o Sol está se pondo no horizonte e tingindo o céu com cores melancólicas e belas, quando uma maresia mais gelada começa a arrepiar as peles, enquanto um luauzinho rola na areia... algo assim. Violõezinhos mansos, vocais serenos, letrinhas trimmassa, mensagem de hedonismo aplacado e sem grandes transes... eis um disco que me deixa na paz. Se os ditadores e senhores da guerra desse mundo fossem fãs de Jack Johnson, certeza que muito menos guerras seriam travadas...



SLEATER-KINNEY - the woods. 2005. disco novo de uma das minhas bandas prediletíssimas. cada vez mais investindo no seu lado mais "épico", o Sleater-Kinney deixou de ser essencialmente ramônico ou riot girrrl e passou a ser um power trio de hard-rock apunkalado e ultradivertido. Agora tem até música de 10 minutos de duração, com uns explosivos guitarrismos improvisados e hendrixianos. E músicas complexas com várias diferentes seções e andamentos. E a Corin Tucker tá cantando com aquela tradicional excitação e punch que arrepiam meus ossos e minhas entranhas. E prosseguem os duelos vocais e guitarrais entre ela e a Carrie Brownstein (a mina mais guitar-hero desse mundo). The Woods prova que o Sleater-Kinney continua em plena forma, conseguindo compor um sucessor à altura do excelente One Beat, de 2002 (disco que eu cultuo de joelhos todas as noites). Se elas lançarem mais uns dois álbuns do mesmo nível no futuro próximo, tem tudo para se tornarem a melhor banda desta década. E olha que já são umas das melhores da que passou.




THE SHINS - chutes too narrow. 2003. pequena pérola de power pop sessentista lançada pela Sub Pop de Seattle (gravadora que faz tempo expandiu seus negócios para além do grunge e do punk independente local). Esse segundo álbum dos Shins foi quase unanimemente considerado pela crítica como um dos 15 melhores discos de 2003.

(pra baixar: www.gmail.com, username DLMSONGS, password QUEROMP3).

terça-feira, 12 de julho de 2005

terça-feira, 5 de julho de 2005


F R U S C I A N T E.
a beleza terrível.


Há aqueles fãs de banda que, de tão fanáticos, dão uma aprovação integral a tudo o que está relacionado ao ídolo cultuado: todos os discos, todas as fases, todos os integrantes, todas as bandas paralelas, todos os discos solos, todos os roadies, são todos "lindos, divinos, maravilhos, impecáveis"... Se o ídolo lhe entregasse um saquinho plástico com seu vômito, esse fã iria guardá-lo dentro de um santuário; a camiseta fedida a suor que o ídolo concedeu nunca mais será lavada; no dormitório, não há um único fragmento de parede sem um pôster do messias...

Não é esse o caso aqui. Estou muito longe de ser um fã de Chilli Peppers que cultua todos os planetas que orbitam na galáxia da banda. Digo com crueza: eu nunca gostei dos Red Hot Chilli Peppers. Até mesmo tenho um certo desprezo pela banda pelo crime monstruoso e imperdoável de ser "alegrinha demais", coisa que a condena a fazer parte daquele grupo de bandas e artistas que eu chamo, cheio de desdém, de "franguinhas" (tipo aquela bandeca horrendamente jovial, os Bítôus!). Meus anos adolescentes foram demasiado nirvanescos e sombrios para que eu pudesse abraçar uma banda tão ensolarada e alto-astral quanto os Peppers: era muita luz para os meus olhos tão acostumados à escuridão... E ser "alto-astral", pensava eu, é sinônimo de ser idiota!...

Pode acabar por surpreender, pois, que alguém que nunca ligou a mínima para os Chilli Peppers tenha acabado por cair de amores pela música de John Frusciante, e com um nível de devoção considerável. Mas o fato é que essa música me capturou. Hoje aperto os discos de John junto ao peito como jóias de raro valor e fico a me perguntar: como é possível que o mundo ainda não tenha descoberto que o trabalho solo do guitarrista é infinitamente melhor, mais poderoso, mais transcendental, mais profundo, mais libertador, do que aquele que faz a banda em que toca? Mas é bem possível que, pra curtir Frusciante solo, seja preciso mesmo nunca ter gostado muito do Chilli Peppers; do mesmo modo que, para quem se encanta com a arte dilacerante e abismal de Frusciante, é um tanto difícil achar satisfação no funk-rock levinho e fácil que fazem os Pepinos.

Conta a história que o garoto John Frusciante (nascido em Nova York, 1970) se mudou com a família para a Califórnia ainda cedo, onde se tornou fã de skate, punk rock e guitarra como tantos outros adolescentes, começando a tentar "tirar" músicas dos Germs já aos 9 anos de idade. Mais ou menos em 1989, um jovem de 17 anos de idade era conhecido nas redondezas por ser o maior fã dos Red Hot Chilli Peppers do mundo e ia a quase todos os shows com o fanatismo de um verdadeiro devoto, feliz por estar cara a cara com sua banda local predileta. Em tempo: os Peppers eram naqueles tempos apenas um pequeno combo de funk-rock regional de baixa vendagem. Quando Hillel Slovak (o guitarrista original do Red Hot) morreu devido a uma overdose de heroína, o comando da guitarra passou direto para esse jovenzinho de 18 anos que depois ajudaria os Red Hot Chilli Peppers, com o lançamento de Blood Sugar Sex Magik, a se tornar uma das maiores bandas do planeta. Seu nome? John Frusciante.

Alcançando o sucesso mundial em idade ainda imatura, John, por razões até hoje obscuras, abdicou da fama e do posto como guitarrista principal naquela que era na época uma das mais bem sucedidas bandas da Terra. Na turnê de Blood Sugar Sex Magik, manifestou seu desejo de abandonar o grupo e deu o fora. Sabe-se que, apesar da forte amizade que tinha e tem com o baixista Flea (com quem montou uma banda paralela, o 3 Amebas), certas animosidades entre Frusciante e o vocalista Anthony Kiedis tornavam o relacionamento interno um tanto desagradável. Mas o mais provável é que John não estivesse se sentindo bem com a fama, desejando abandonar, desiludido, a celebridade conquistada. Antes tão desejada, a fama agora se mostrava muito pouco satisfatória (situação que merece ser batizada como Dilema Kurt Cobain...).

Abandonando os shows em estádios lotados e a paparicação da mídia, deixou para Dave Navarro o comando das seis cordas dos Chilli Peppers (John, anos depois, voltaria a assumir as guitarras para gravar Californication e By The Way). Tendo chegado àquele status com que todo jovem fã de rock sonha chegar em seus delírios adolescentes - guitarrista de uma banda enorme que fascina as multidões, ganha rios de dinheiro, deixa as garotas enlouquecidas de tesão... -, John Frusciante, muito estranhamente, jogou tudo fora. E foi passar uma temporada no inferno.


STONED AND DETHRONED.

Conta-se que, deprimido e com a sanidade psíquica ameaçada, John se trancou em uma bela mansão californiana que o sucesso com os Chilli Pepers lhe permitiu comprar e entrou numa fase crítica de consumo desenfreado de junk. Entre 1993 e 1996, consumindo quantidades altamente desaconselháveis de heroína, vivendo no ócio completo, injetando gradativamente toda a sua fortuna veias adentro, John flertou perigosamente com a morte. Sua chapação, entremeada com períodos de loucura e depressão, gerou algumas obras de arte sombrias. Imaginem a cena: acompanhado por guitarras e violões, gravadores de 4 canais, pincéis e tinta, seringas e prozacs, camisetas do Velvet Underground e pôsters de Frank Zappa, John Frusciante, artista recluso e esquizofrênico, desiludido com a fama, desencantado com a vida, põe-se a vomitar pinturas basquiatianas e fragmentos de música demencial... O jovem guitarrista parecia cair definitivamente no abismo do vício e da loucura, descendo no barranco da mais completa auto-destruição, enquanto deixava atrás de si uma arte perturbadora e acabrunhante...

Não faltaram resenhas que atentavam raivosamente contra os primeiros álbuns-solo de Frusciante, Niandra Lades (And Usually Just a T-Shirt) [1995] e Smile From The Streets You Hold [1997]. Muitos os acusaram (até com uma certa justiça) de serem insuportáveis amontoados de barulho desconexo, vocais desafinados e gravações tosquérrimas. Mas a maior parte das críticas negativas centravam mesmo seu ataque em outro alvo: no fato de que o disco mostrava um artista que permitia que sua desordem mental se explicitasse com uma falta de pudor extremamente desconcertante. Um crítico duma renomada revista eletrônica, após dar nota ZERO para o álbum Smile From The Streets You Hold, disse que ouvir o álbum constituía uma experiência desagradável pois era como "olhar direto para o interior de uma alma sem óculos de escuro" ("Looking into someone's soul without sunglasses"). A revista Kerrang, por sua vez, disse que Smile From The Streets You Hold "serviu apenas para exibir a mente cheia de angústia de um junkie".

Que seja: esses discos são tão "terríveis" pois neles não há lugar para nenhuma maquiagem, nenhuma auto-idealização. Frusciante se encontra nu, dilacerado, espalhado pelo chão, berrando de agonia, como um perfeito interno de hospício, e não disfarça nada de sua dor, de sua confusão, de seu desespero. E vê-lo assim é uma experiência que amedronta, que faz sentir piedade, que repele por sua excessiva sinceridade. Creio mesmo que poucos discos na história conhecida da música pop fotografam com tanta nudez um artista cujo estado mental está se estilhaçando. Nem Syd Barrett, nem Arnaldo Baptista, nem Skip Spence, nem Peter Hammill chegaram a gravar um álbum tão esquizofrêncio, tão demencial quanto Smile From The Street You Hold.

John, posteriormente, chegou até mesmo a renegar sua obra inicial e proibir a reedição desses dois discos, confessando que na época da gravação, estando ainda em meio ao redemoinho de um imperioso vício à heroína, permitiu tais lançamentos principalmente pra descolar uma graninha pra comprar junk. Mesmo assim, esses obscuros documentos de música lo-fi (mais depressiva que o mais deprê dos funerais) é um acabrunhante retrato de uma alma perdida nos recantos mais sombrios da vida. Mas, por outro lado, também mostra uma alma num processo de purgação, de purificação, de catarse, que faz suspeitar que o que poderia sair dali, do outro lado dessa experiência, poderia ser uma pessoa diferente, completamente purificada...

De qualquer modo, os dois primeiros discos-solo de John Frusciante não venderam quase nada, não receberam muita atenção de imprensa e público, e passaram um tanto desapercebidos. Ganharam fama de serem apenas dois tolos e excêntricos amontoados de loucuras que o guitarrista dos Chilli Peppers, biruta como é, resolveu lançar "para ninguém"... Era muito fácil concluir com precipitação que não havia ali nenhum talento. O que só faz a obra posterior de Frusciante parecer ainda mais estonteante. Pois ninguém em sã consciência julgaria que um cara que conseguiu cometer dois discos tão abomináveis, mal gravados, heterogêneos e incoerentes pudesse ter um dose suficiente de talento para criar algo meramente AUDÍVEL. Muito menos que pudesse criar alguma da música mais profunda e emocionalmente poderosa que já se ouviu.



ESTIVE NO INFERNO E RETORNEI. TRAGO BOAS NOTÍCIAS.

Tudo indica que o abandono das drogas fez um bem imenso à carreira e à arte de John. O esforço para sair do pântano do vício o impeliu para uma outra paisagem espiritual e começou a fazer jorrarem com exuberância suas fontes artísticas. "Foi somente nas últimas semanas de 1996 que John Frusciante pôde finalmente chutar pra longe o seu vício de três anos, que contribuiu para a perda de sua casa em Hollywood e para a gradual deterioração de seu corpo", contava a reportagem da Guitar Player, em Novembro de 1997. Só pra ter uma idéia de quão baixo ele chegou no buraco, note-se esse pormenor grotesco: "No começo daquele ano [1997], os dentes remanescentes de John foram removidos e substituídos por dentaduras com o fim de evitar uma infecção que lhe ameaçava a vida". Eis um que não tomou drogas just for fun, isso é certo...

E foi então que, limpinho das drogas, entrando em sua faze zen, que incluía até sessões de ioga e dieta exclusivamente baseada em healthy food, John entrou no estúdio para gravar somente água por dez dias, e a partir daí sua carreira entrou em outro nível e escalou velozmente um Everest inteiro em direção à excelência artística. To Record Only Water For Ten Days, de 2001, representou um ponto de virada na carreira do jovem guitarrista. Era um disco vigoroso, bem cantado, repleto de poesias sombrias, que revelava um Frusciante capaz de ser um grande compositor e um vocalista de performance apaixonada e primorosa. Em entrevista daquele ano, ele diz: "Eu não preciso tomar drogas. Eu me sinto muito mais 'alto' por todo o tempo, agora, por causa do tipo de 'momentum' que uma pessoa pode conseguir quando simplesmente se dedica a algo que realmente ama. Eu nem mesmo considero tomá-las, elas são completamente idiotas. Entre minha dedicação em tentar ser constantemente um músico melhor e comer minhas comidas saudáveis e fazer ioga, eu me sinto muito mais 'elevado' do que me sentia durante os últimos anos injetando drogas." (entrevista à Rock Sound Magazine, Fevereiro de 2001).

Cansado de ter seus discos xingados por serem mal-gravados, amadorísticos, toscos - e de fato eram... - se pôs a gravar Shadows Collide With People (2004), seu único álbum a protagonizar técnicas avançadas de produção e gravação, um monstruoso épico de 70 minutos de duração que, na minha opinião, é um dos melhores lançamentos da década. E, atingindo uma fase de sua vida de criatividade borbulhante, lançou nada menos que SEIS ÁLBUNS nos SEIS ÚLTIMOS MESES de 2004, numa epopéia de lançamentos das mais prolíficas de que se tem notícia na história da música pop. A façanha seria menos embasbacante se os discos fossem ruins - afinal, que adiantaria lançar meia dúzia de discos porcos por ano, ao invés de lançar um disco fodão a cada três anos? O incrível é a qualidade desses álbuns. Investindo em rock minimalista e guitarroso (em The Will To Death e Inside Of Emptyness), dilacerantes e sombrias canções semi-acústicas (em Curtains) e experimentalismo kraut-punk-velvetiano (em Automatic Writing e A Sphere in The Heart of Silence), Frusciante prova ser um artista plural no ápice de sua vida criativa, emanando boa música como se fosse um odor natural de seu corpo.

"Um voraz ouvinte musical, pintor talentoso e devoto de trágicos anjos caídos como Syd Barrett, Marc Bolan, Kurt Cobain e Sid Vicious, Frusciante é uma mistura de paixão, auto-didatismo na erudição cultural e ingenuidade, particularmente a respeito da mitologia do rock and roll", diz a Guitar Player. De fato, John Frusciante consumiu altas quantidades de música estranha, maníaca e aventureira, o que faz com que suas influências, muito diversas das do Red Hot Chilli Peppers, sejam em sua maioria obscuros artistas progressivos, alternativos ou proto-punk do passado. John ouviu todas as cultuadas e estranhas estrelas do prog e kraut anos 70 (Van Der Graaf Generator, Robert Fripp, Peter Hammill, Neu!, Can, Faust...), estudou profundamente a obra dos dois malucos experimentalistas mais marcantes dos anos 60 e 70 (Frank Zappa e Captain Beefheart), juntou a isso seu amor ao punk antigo de Germs, Velvet Underground, Gang Of Four e Stooges, pegou emprestado um pouco do climão sombrio do Joy Division e um pouco da psicodelia do mal de um Syd Barrett, e se saiu com um som que tem muito pouco a ver com o funk-rock ensolarado que tornou os Chilli Peppers mundialmente conhecidos.

Mas não é somente pela síntese que faz de todas essas influências que a música de Frusciante é notável. A percepção de mundo de John Frusciante não parece ser nada parecida com a percepção das ditas "pessoas normais", o que faz com que o ouvinte de sua música seja conduzido a um universo particularíssimo. Talvez devido ao excessivo e duradouro uso de substâncias tóxicas, Frusciante parece agora habitar numa outra dimensão percepcional, engolindo e processando o mundo mais ou menos à maneira dos esquizofrênicos, dos místicos ou dos iluminados. Suas letras, por vezes mais crípticas que os mais rebuscados textos do misticismo oriental, deixam claro que a viagem espiritual de John atinge estranhos reinos. Poucos artistas utilizam tanto as palavras "life" e "death" em suas letras; a presença abundante dessas duas palavrinhas na poética de Frusciante demonstra que está aí seu principal interesse: a vida, a morte, a dor, a redenção, o céu, o inferno, a condição humana.

Imaginem um artista que fosse buscar inspiração lírica em "Tomorrow Never Knows" dos Beatles (a célebre canção de Lennon inspirada no Livro Tibetano dos Mortos), na poesia demencial dum Syd Barrett ou nos versos góticos e sombrios de um Ian Curtis... Junte-se a isso uma personalidade propensa ao misticismo, que crê ser um veículo para a expressão dos "espíritos das outras dimensões", e se terá uma idéia do que significa ser John Frusciante. Seria fácil zombar dele ao ouvi-lo dizer em entrevistas que "estava tendo comunicação verbal com os espíritos durante as gravações" e que "está mais preocupado com a fama no mundo dos espíritos do que com a fama no nosso mundo" (Guitar Player), se não fosse claro que ele fala isso pra valer. He really means it. E, quanto ao seu talento como instrumentista, fica claro que o principal não está nos dedos: é a MENTE de John Frusciante, a maneira como ela funciona e percebe, que realmente fascina e que faz toda a diferença. E não é justamente essa uma das principais funções da arte: permitir que tenhamos um vislumbre do que é a vida quando percebida por uma mente diversa da nossa?

E talvez o que mais me atraia na música de John Frusciante é essa estranha espécie de beleza que dali emana, uma conjunção improvável entre a tristeza e a elevação, a melancolia e as alturas estéticas. Aquilo que eu já pude sentir com o Radiohead, com o Joy Division, com o Céline: uma arte que eleva a tristeza ao status de lindeza. Eis-nos frente a frente com um homem que olhou de cara para o abismo, que por muito pouco não despencou no nada, que encarou a morte e a auto-destruição de frente, que passou por mil delírios e por mil sofrimentos, e que ainda conseguiu se erguer das cinzas. E mais: ergueu-se não como alguém mutilado, mas como alguém fortalecido, como alguém que vive a vida indo sempre direto ao essencial, como alguém que faz arte nas profundezas com uma sinceridade tão gigantesca que chega a desconcertar. Pois exibe com muita crueza como nossas vidas são falsas e pouco autênticas. Num mundo tão dominado pelo cinismo, pela ironia e pelas máscaras sorridentes, John Frusciante tem a coragem para se mostrar sincero, ingênuo, dilacerado, humano.

É muito fácil acusar sua música de ser "muito depressiva" ou "muito negativa" e virar o rosto, fechar o ouvido, como se faz tão costumeiramente frente às verdades da existência e frente aos existentes mais verdadeiros... Abrir-se a essa arte exige uma certa coragem pois o que nela se concentra é uma dose muito alta de autenticidade, que nossas mentes muito acostumadas ao inautêntico talvez não aguentem; uma beleza demasiado forte para nossas vidas que já se resignaram a suas feiúras miúdas... Frusciante canta e toca como se o mundo estivesse para acabar no próximo instante, como se estivesse numa corda bamba, suplicando: don't push me, i'm too close to the edge... Eis uma arte que vive, respira, se alimenta da presença da morte. Uma arte que é pura purgação da angústia, berro de agonia, calafrio de incompreensão. Uma arte feita por um discípulo do abismo, que injeta em nossos ouvidos e em nossas vidas, tão acostumadas à banalidade, alguns sentimentos de intensidade fortíssima. Uma arte de uma beleza terrível, terrivelmente bela...

sexta-feira, 1 de julho de 2005

ufa.

hoje já tou bem mai sussegadim. carmaram-se as fúrias. devo ter escrito altas bobagens no post anterior, me perdoem mas faz tudo parte da terapia. cito meu psicólogo: "não se deve somar aos sofrimentos a dor de reprimi-los". eu cá penso q quem quer se tornar uma pessoa tranquila e serena precisa muito dumas boas dumas catarses secretas (ou nem tanto) sazonalmente. acho mesmo que todo domicílio familiar deveria ter um dormitório especialmente dedicado para esses fins medicinais. Esse cômodo teria (atenção, utopistas: caneta e papel em punho para anotar tão imprescindível sugestão!): isolamento acústico que permita berrar e berrar e berrar sem prejuízos auditivos à vizinhança; muitas vidraças, pratos, copos, lustres, a serem destruídos com um taco de baseball (ai como deve sê gostoso!); uma daquelas salsichas gê-gê que os boxistas golpeiam nos treinos... acho que é o bastante pra gente se purificar das iras furiosas que acabam sempre por surgir. mas enquanto a civilização não atinge um grau elevado o bastante para incorporar tal QUARTO CATÁRTICO nas moradias dos humanos, a gente pode se arranjar com outras coisas. tipo escrever. pode ser feito. tem horas que parece que a escrita é como uma mangueira que eu enfio no meu crânio e por onde saem, tragados para o mundo exterior, todos os meus maus espíritos. certeza que um banho de água benta não purifica mais do que isso.

e inda bem que esse blog é muito mal frequentado, assim não corro o risco de que as multidões comecem a me achar um perigo para a sociedade e me mandem enjaular na cadeia ou no hospício. graças a deus sou tremendamente impopular. tudo bem: vamos mesmo ficar aqui no nosso circulozinho de iniciados...