quinta-feira, 28 de julho de 2005



C O R A Ç Õ E S e M E N T E S
(Hearts and Minds), de Peter Davis, EUA, 1974.

Michael Moore, com seu tradicional gosto pelas frases bombásticas, disse que considera "Corações e Mentes" o "melhor documentário de todos os tempos" e "um dos melhores filmes já feitos na história do cinema". Não sei se o filme de Peter Davis (que levou o Oscar de Melhor Documentário em 1975) merece toda essa pagação de pau, mas é com certeza uma obra com uma puta importância histórica e um marco para o cinema político.

"Corações e Mentes" é um retrato da Guerra do Vietnã que, bem no estilo que depois iria marcar o jeito mooriano de documentar, está longe de uma suposta "imparcialidade": o filme de Davis se preocupa mesmo é em esmurrar bonito a cara do governo e do exército americano (desde Truman até Nixon), mostrando claramente toda a arrogância imperialista e a grotesca capacidade de cometer os maiores horrores com a consciência tranquila...

A conclusão principal que se tira é que isso que aprendemos a chamar de Guerra de Vietnã foi muito mais uma campanha contra-revolucionária, um ataque imperialista ou um genocídio sistemático do que propriamente uma guerra. Nenhuma das justificações que vem sendo utilizadas pelos EUA nos últimos anos para justificar invasões e carnificinas se aplicavam ao caso Vietnã: o pequenino e lamacento país asiático não tinha armas nucleares que ameaçava utilizar, não tinha mandado terrorista algum pra causar estragos em solo americano, nenhum tipo de ataque militar vietnamita contra a América tinha acontecido... Nem mesmo uma ameaça. Tudo o que o Vietnã fez para merecer a chuva de bombas made in USA foi cometer o "inominável crime" de tentar o comunismo, coisa que, em plena Guerra Fria, os EUA não podiam aceitar de modo algum...

Afinal, a Guerra Fria não foi tão "fria" assim, como bem mostra a retrospectiva histórica que faz "Corações e Mentes": pode ser que as duas superpotências não tenham efetivamente chegado à treta propriamente dita, mas mini-guerras foram sim lutadas em defesa das respectivas ideologias. Por exemplo: a União Soviética invadiu o Afeganistão, ocasião que exigiu que os Estados Unidos, muito ironicamente, tratassem de auxiliar com armamentos o regime Talibã que décadas depois trataria de causar seus estragos em Manhattan e Washington... Os EUA, por sua vez, financiaram grande parte da campanha militar francesa na Indochina, outro capítulo da odisséia para salvar o mundo do "demônio comunista"...

O mais legal é que Peter Davis, para realizar esse seu fundamental documento histórico que revelava toda as atrocidades cometidas pelos EUA no Vietnã, não ficou só olhando de longe, seguro e protegido: sua câmera pousa realmente no Vietnã, filma as casas destroçadas dos camponeses, conversa com os vietnamitas que tiveram parentes mortos ou moradias reduzidas a pó, nos coloca frente a frente com uma enorme quantidade de dor humana concreta... Que dizer da tristeza gigantesca que é ver a confecção dos miúdos caixões de madeira feitos para as crianças mortas "acidentalmente" pelos ataques à bomba americanos? Que dizer da indignação que se sente vendo aquelas duas velhinhas que tiveram suas casas bombardeadas e que choram de desespero frente ao olhar frio e obstinado da câmera de Davis? Ou do pai que, enlouquecido e frenético, aponta para a câmera os locais exatos onde TODOS OS SEUS FILHOS morreram, e que depois atira a blusa de sua filha ao cinegrafista e manda que ele a entrege a Nixon? E como esquecer aquela cena, aliás uma das imagens mais clássicas que entraram na história da Guerra do Vietnã, em que o vietnamita toma um tiro na cabeça, despenca ao chão e seu crânio se transforma num chafariz de sangue jorrante? O horror, o horror...

Fica óbvia a brutalidade dos ataques americanos, evidente que fizeram numerosas vítimas entre civis totalmente indefesos e nada perigosos, não só por causa das bombas, do napalm, das rajadas de metralhadora, mas também por causa daquele horrível veneno que os aviões despejavam sobre as plantações e que matava os vietnamitas como se fossem pulgas... Muito interessantes também são as declarações dos três aviadores da aeronáutica americana que Davis entrevista(um que se transformou em herói e que dá aulas de "american way of life" para criancinhas, um que ficou teraplégico, um que se mostra terrivelmente arrependido de seus atos). Eles esclarecem que esta guerra era sentida por eles como algo de muito "limpo" e higiênico: ninguém via, lá de cima, as pessoas reais, os gritos, as agonias, o sangue, os ferimentos, a dor imensa. Tratava-se somente de pilotar os aviões com competência, despejar as bombas no alvo indicado pelos chefes, vê-lo explodir excitantemente (é grotesca a confissão de certos aviadores, que dizem que sentiam muito tesão e excitação ao matar...) e depois dar o fora, sem que nenhum tipo de má consciência moral se formasse...

Uma cena em particular me pareceu extremamente bem-bolada: é aquela em que um certo membro do governo americano, meio hesitante em sua declaração, como se suspeitasse estar proferindo uma imensa bobagem, tenta mostrar que a "filosofia oriental" considera que "a vida não é importante". Corte rápido para as bombas americanas caindo silenciosamente sobre o Vietnã. É genial: Peter Davis não precisa de nenhuma palavra, de nenhum discurso, de nenhuma argumentação complexa, para demolir o discurso em um segundo, pois as imagens já dizem tudo, pois a contradição entre o discurso precedente e a evidência das imagens que surgem é inegável. Afinal, não é a "filosofia oriental" que acha que a vida não é importante, caro senhor, mas sim esses poderosos senhores americanos que esmagam pessoas como se fossem insetos debaixo do napalm, do veneno e das bombas... Qual foi mesmo o país que fez caírem duas bombas atômicas em solo japonês quando a guerra já estava praticamente ganha? Quem é que seria capaz de um ato de uma monstruosidade dessas sem ser indiferente à vida humana? É para ti, América arrogante, que a vida humana não parece ter mais valor do que a vida das baratas ou das pulgas, que pode ser imolada e destroçada sem grandes remorsos, que pode ser banhada em fogo aos milhares e aos milhões por coisas "muito mais importantes"... como petróleo, dinheiro, poder, ideologia, talvez diversão... (8.8 / 10.0)