terça-feira, 5 de julho de 2005


F R U S C I A N T E.
a beleza terrível.


Há aqueles fãs de banda que, de tão fanáticos, dão uma aprovação integral a tudo o que está relacionado ao ídolo cultuado: todos os discos, todas as fases, todos os integrantes, todas as bandas paralelas, todos os discos solos, todos os roadies, são todos "lindos, divinos, maravilhos, impecáveis"... Se o ídolo lhe entregasse um saquinho plástico com seu vômito, esse fã iria guardá-lo dentro de um santuário; a camiseta fedida a suor que o ídolo concedeu nunca mais será lavada; no dormitório, não há um único fragmento de parede sem um pôster do messias...

Não é esse o caso aqui. Estou muito longe de ser um fã de Chilli Peppers que cultua todos os planetas que orbitam na galáxia da banda. Digo com crueza: eu nunca gostei dos Red Hot Chilli Peppers. Até mesmo tenho um certo desprezo pela banda pelo crime monstruoso e imperdoável de ser "alegrinha demais", coisa que a condena a fazer parte daquele grupo de bandas e artistas que eu chamo, cheio de desdém, de "franguinhas" (tipo aquela bandeca horrendamente jovial, os Bítôus!). Meus anos adolescentes foram demasiado nirvanescos e sombrios para que eu pudesse abraçar uma banda tão ensolarada e alto-astral quanto os Peppers: era muita luz para os meus olhos tão acostumados à escuridão... E ser "alto-astral", pensava eu, é sinônimo de ser idiota!...

Pode acabar por surpreender, pois, que alguém que nunca ligou a mínima para os Chilli Peppers tenha acabado por cair de amores pela música de John Frusciante, e com um nível de devoção considerável. Mas o fato é que essa música me capturou. Hoje aperto os discos de John junto ao peito como jóias de raro valor e fico a me perguntar: como é possível que o mundo ainda não tenha descoberto que o trabalho solo do guitarrista é infinitamente melhor, mais poderoso, mais transcendental, mais profundo, mais libertador, do que aquele que faz a banda em que toca? Mas é bem possível que, pra curtir Frusciante solo, seja preciso mesmo nunca ter gostado muito do Chilli Peppers; do mesmo modo que, para quem se encanta com a arte dilacerante e abismal de Frusciante, é um tanto difícil achar satisfação no funk-rock levinho e fácil que fazem os Pepinos.

Conta a história que o garoto John Frusciante (nascido em Nova York, 1970) se mudou com a família para a Califórnia ainda cedo, onde se tornou fã de skate, punk rock e guitarra como tantos outros adolescentes, começando a tentar "tirar" músicas dos Germs já aos 9 anos de idade. Mais ou menos em 1989, um jovem de 17 anos de idade era conhecido nas redondezas por ser o maior fã dos Red Hot Chilli Peppers do mundo e ia a quase todos os shows com o fanatismo de um verdadeiro devoto, feliz por estar cara a cara com sua banda local predileta. Em tempo: os Peppers eram naqueles tempos apenas um pequeno combo de funk-rock regional de baixa vendagem. Quando Hillel Slovak (o guitarrista original do Red Hot) morreu devido a uma overdose de heroína, o comando da guitarra passou direto para esse jovenzinho de 18 anos que depois ajudaria os Red Hot Chilli Peppers, com o lançamento de Blood Sugar Sex Magik, a se tornar uma das maiores bandas do planeta. Seu nome? John Frusciante.

Alcançando o sucesso mundial em idade ainda imatura, John, por razões até hoje obscuras, abdicou da fama e do posto como guitarrista principal naquela que era na época uma das mais bem sucedidas bandas da Terra. Na turnê de Blood Sugar Sex Magik, manifestou seu desejo de abandonar o grupo e deu o fora. Sabe-se que, apesar da forte amizade que tinha e tem com o baixista Flea (com quem montou uma banda paralela, o 3 Amebas), certas animosidades entre Frusciante e o vocalista Anthony Kiedis tornavam o relacionamento interno um tanto desagradável. Mas o mais provável é que John não estivesse se sentindo bem com a fama, desejando abandonar, desiludido, a celebridade conquistada. Antes tão desejada, a fama agora se mostrava muito pouco satisfatória (situação que merece ser batizada como Dilema Kurt Cobain...).

Abandonando os shows em estádios lotados e a paparicação da mídia, deixou para Dave Navarro o comando das seis cordas dos Chilli Peppers (John, anos depois, voltaria a assumir as guitarras para gravar Californication e By The Way). Tendo chegado àquele status com que todo jovem fã de rock sonha chegar em seus delírios adolescentes - guitarrista de uma banda enorme que fascina as multidões, ganha rios de dinheiro, deixa as garotas enlouquecidas de tesão... -, John Frusciante, muito estranhamente, jogou tudo fora. E foi passar uma temporada no inferno.


STONED AND DETHRONED.

Conta-se que, deprimido e com a sanidade psíquica ameaçada, John se trancou em uma bela mansão californiana que o sucesso com os Chilli Pepers lhe permitiu comprar e entrou numa fase crítica de consumo desenfreado de junk. Entre 1993 e 1996, consumindo quantidades altamente desaconselháveis de heroína, vivendo no ócio completo, injetando gradativamente toda a sua fortuna veias adentro, John flertou perigosamente com a morte. Sua chapação, entremeada com períodos de loucura e depressão, gerou algumas obras de arte sombrias. Imaginem a cena: acompanhado por guitarras e violões, gravadores de 4 canais, pincéis e tinta, seringas e prozacs, camisetas do Velvet Underground e pôsters de Frank Zappa, John Frusciante, artista recluso e esquizofrênico, desiludido com a fama, desencantado com a vida, põe-se a vomitar pinturas basquiatianas e fragmentos de música demencial... O jovem guitarrista parecia cair definitivamente no abismo do vício e da loucura, descendo no barranco da mais completa auto-destruição, enquanto deixava atrás de si uma arte perturbadora e acabrunhante...

Não faltaram resenhas que atentavam raivosamente contra os primeiros álbuns-solo de Frusciante, Niandra Lades (And Usually Just a T-Shirt) [1995] e Smile From The Streets You Hold [1997]. Muitos os acusaram (até com uma certa justiça) de serem insuportáveis amontoados de barulho desconexo, vocais desafinados e gravações tosquérrimas. Mas a maior parte das críticas negativas centravam mesmo seu ataque em outro alvo: no fato de que o disco mostrava um artista que permitia que sua desordem mental se explicitasse com uma falta de pudor extremamente desconcertante. Um crítico duma renomada revista eletrônica, após dar nota ZERO para o álbum Smile From The Streets You Hold, disse que ouvir o álbum constituía uma experiência desagradável pois era como "olhar direto para o interior de uma alma sem óculos de escuro" ("Looking into someone's soul without sunglasses"). A revista Kerrang, por sua vez, disse que Smile From The Streets You Hold "serviu apenas para exibir a mente cheia de angústia de um junkie".

Que seja: esses discos são tão "terríveis" pois neles não há lugar para nenhuma maquiagem, nenhuma auto-idealização. Frusciante se encontra nu, dilacerado, espalhado pelo chão, berrando de agonia, como um perfeito interno de hospício, e não disfarça nada de sua dor, de sua confusão, de seu desespero. E vê-lo assim é uma experiência que amedronta, que faz sentir piedade, que repele por sua excessiva sinceridade. Creio mesmo que poucos discos na história conhecida da música pop fotografam com tanta nudez um artista cujo estado mental está se estilhaçando. Nem Syd Barrett, nem Arnaldo Baptista, nem Skip Spence, nem Peter Hammill chegaram a gravar um álbum tão esquizofrêncio, tão demencial quanto Smile From The Street You Hold.

John, posteriormente, chegou até mesmo a renegar sua obra inicial e proibir a reedição desses dois discos, confessando que na época da gravação, estando ainda em meio ao redemoinho de um imperioso vício à heroína, permitiu tais lançamentos principalmente pra descolar uma graninha pra comprar junk. Mesmo assim, esses obscuros documentos de música lo-fi (mais depressiva que o mais deprê dos funerais) é um acabrunhante retrato de uma alma perdida nos recantos mais sombrios da vida. Mas, por outro lado, também mostra uma alma num processo de purgação, de purificação, de catarse, que faz suspeitar que o que poderia sair dali, do outro lado dessa experiência, poderia ser uma pessoa diferente, completamente purificada...

De qualquer modo, os dois primeiros discos-solo de John Frusciante não venderam quase nada, não receberam muita atenção de imprensa e público, e passaram um tanto desapercebidos. Ganharam fama de serem apenas dois tolos e excêntricos amontoados de loucuras que o guitarrista dos Chilli Peppers, biruta como é, resolveu lançar "para ninguém"... Era muito fácil concluir com precipitação que não havia ali nenhum talento. O que só faz a obra posterior de Frusciante parecer ainda mais estonteante. Pois ninguém em sã consciência julgaria que um cara que conseguiu cometer dois discos tão abomináveis, mal gravados, heterogêneos e incoerentes pudesse ter um dose suficiente de talento para criar algo meramente AUDÍVEL. Muito menos que pudesse criar alguma da música mais profunda e emocionalmente poderosa que já se ouviu.



ESTIVE NO INFERNO E RETORNEI. TRAGO BOAS NOTÍCIAS.

Tudo indica que o abandono das drogas fez um bem imenso à carreira e à arte de John. O esforço para sair do pântano do vício o impeliu para uma outra paisagem espiritual e começou a fazer jorrarem com exuberância suas fontes artísticas. "Foi somente nas últimas semanas de 1996 que John Frusciante pôde finalmente chutar pra longe o seu vício de três anos, que contribuiu para a perda de sua casa em Hollywood e para a gradual deterioração de seu corpo", contava a reportagem da Guitar Player, em Novembro de 1997. Só pra ter uma idéia de quão baixo ele chegou no buraco, note-se esse pormenor grotesco: "No começo daquele ano [1997], os dentes remanescentes de John foram removidos e substituídos por dentaduras com o fim de evitar uma infecção que lhe ameaçava a vida". Eis um que não tomou drogas just for fun, isso é certo...

E foi então que, limpinho das drogas, entrando em sua faze zen, que incluía até sessões de ioga e dieta exclusivamente baseada em healthy food, John entrou no estúdio para gravar somente água por dez dias, e a partir daí sua carreira entrou em outro nível e escalou velozmente um Everest inteiro em direção à excelência artística. To Record Only Water For Ten Days, de 2001, representou um ponto de virada na carreira do jovem guitarrista. Era um disco vigoroso, bem cantado, repleto de poesias sombrias, que revelava um Frusciante capaz de ser um grande compositor e um vocalista de performance apaixonada e primorosa. Em entrevista daquele ano, ele diz: "Eu não preciso tomar drogas. Eu me sinto muito mais 'alto' por todo o tempo, agora, por causa do tipo de 'momentum' que uma pessoa pode conseguir quando simplesmente se dedica a algo que realmente ama. Eu nem mesmo considero tomá-las, elas são completamente idiotas. Entre minha dedicação em tentar ser constantemente um músico melhor e comer minhas comidas saudáveis e fazer ioga, eu me sinto muito mais 'elevado' do que me sentia durante os últimos anos injetando drogas." (entrevista à Rock Sound Magazine, Fevereiro de 2001).

Cansado de ter seus discos xingados por serem mal-gravados, amadorísticos, toscos - e de fato eram... - se pôs a gravar Shadows Collide With People (2004), seu único álbum a protagonizar técnicas avançadas de produção e gravação, um monstruoso épico de 70 minutos de duração que, na minha opinião, é um dos melhores lançamentos da década. E, atingindo uma fase de sua vida de criatividade borbulhante, lançou nada menos que SEIS ÁLBUNS nos SEIS ÚLTIMOS MESES de 2004, numa epopéia de lançamentos das mais prolíficas de que se tem notícia na história da música pop. A façanha seria menos embasbacante se os discos fossem ruins - afinal, que adiantaria lançar meia dúzia de discos porcos por ano, ao invés de lançar um disco fodão a cada três anos? O incrível é a qualidade desses álbuns. Investindo em rock minimalista e guitarroso (em The Will To Death e Inside Of Emptyness), dilacerantes e sombrias canções semi-acústicas (em Curtains) e experimentalismo kraut-punk-velvetiano (em Automatic Writing e A Sphere in The Heart of Silence), Frusciante prova ser um artista plural no ápice de sua vida criativa, emanando boa música como se fosse um odor natural de seu corpo.

"Um voraz ouvinte musical, pintor talentoso e devoto de trágicos anjos caídos como Syd Barrett, Marc Bolan, Kurt Cobain e Sid Vicious, Frusciante é uma mistura de paixão, auto-didatismo na erudição cultural e ingenuidade, particularmente a respeito da mitologia do rock and roll", diz a Guitar Player. De fato, John Frusciante consumiu altas quantidades de música estranha, maníaca e aventureira, o que faz com que suas influências, muito diversas das do Red Hot Chilli Peppers, sejam em sua maioria obscuros artistas progressivos, alternativos ou proto-punk do passado. John ouviu todas as cultuadas e estranhas estrelas do prog e kraut anos 70 (Van Der Graaf Generator, Robert Fripp, Peter Hammill, Neu!, Can, Faust...), estudou profundamente a obra dos dois malucos experimentalistas mais marcantes dos anos 60 e 70 (Frank Zappa e Captain Beefheart), juntou a isso seu amor ao punk antigo de Germs, Velvet Underground, Gang Of Four e Stooges, pegou emprestado um pouco do climão sombrio do Joy Division e um pouco da psicodelia do mal de um Syd Barrett, e se saiu com um som que tem muito pouco a ver com o funk-rock ensolarado que tornou os Chilli Peppers mundialmente conhecidos.

Mas não é somente pela síntese que faz de todas essas influências que a música de Frusciante é notável. A percepção de mundo de John Frusciante não parece ser nada parecida com a percepção das ditas "pessoas normais", o que faz com que o ouvinte de sua música seja conduzido a um universo particularíssimo. Talvez devido ao excessivo e duradouro uso de substâncias tóxicas, Frusciante parece agora habitar numa outra dimensão percepcional, engolindo e processando o mundo mais ou menos à maneira dos esquizofrênicos, dos místicos ou dos iluminados. Suas letras, por vezes mais crípticas que os mais rebuscados textos do misticismo oriental, deixam claro que a viagem espiritual de John atinge estranhos reinos. Poucos artistas utilizam tanto as palavras "life" e "death" em suas letras; a presença abundante dessas duas palavrinhas na poética de Frusciante demonstra que está aí seu principal interesse: a vida, a morte, a dor, a redenção, o céu, o inferno, a condição humana.

Imaginem um artista que fosse buscar inspiração lírica em "Tomorrow Never Knows" dos Beatles (a célebre canção de Lennon inspirada no Livro Tibetano dos Mortos), na poesia demencial dum Syd Barrett ou nos versos góticos e sombrios de um Ian Curtis... Junte-se a isso uma personalidade propensa ao misticismo, que crê ser um veículo para a expressão dos "espíritos das outras dimensões", e se terá uma idéia do que significa ser John Frusciante. Seria fácil zombar dele ao ouvi-lo dizer em entrevistas que "estava tendo comunicação verbal com os espíritos durante as gravações" e que "está mais preocupado com a fama no mundo dos espíritos do que com a fama no nosso mundo" (Guitar Player), se não fosse claro que ele fala isso pra valer. He really means it. E, quanto ao seu talento como instrumentista, fica claro que o principal não está nos dedos: é a MENTE de John Frusciante, a maneira como ela funciona e percebe, que realmente fascina e que faz toda a diferença. E não é justamente essa uma das principais funções da arte: permitir que tenhamos um vislumbre do que é a vida quando percebida por uma mente diversa da nossa?

E talvez o que mais me atraia na música de John Frusciante é essa estranha espécie de beleza que dali emana, uma conjunção improvável entre a tristeza e a elevação, a melancolia e as alturas estéticas. Aquilo que eu já pude sentir com o Radiohead, com o Joy Division, com o Céline: uma arte que eleva a tristeza ao status de lindeza. Eis-nos frente a frente com um homem que olhou de cara para o abismo, que por muito pouco não despencou no nada, que encarou a morte e a auto-destruição de frente, que passou por mil delírios e por mil sofrimentos, e que ainda conseguiu se erguer das cinzas. E mais: ergueu-se não como alguém mutilado, mas como alguém fortalecido, como alguém que vive a vida indo sempre direto ao essencial, como alguém que faz arte nas profundezas com uma sinceridade tão gigantesca que chega a desconcertar. Pois exibe com muita crueza como nossas vidas são falsas e pouco autênticas. Num mundo tão dominado pelo cinismo, pela ironia e pelas máscaras sorridentes, John Frusciante tem a coragem para se mostrar sincero, ingênuo, dilacerado, humano.

É muito fácil acusar sua música de ser "muito depressiva" ou "muito negativa" e virar o rosto, fechar o ouvido, como se faz tão costumeiramente frente às verdades da existência e frente aos existentes mais verdadeiros... Abrir-se a essa arte exige uma certa coragem pois o que nela se concentra é uma dose muito alta de autenticidade, que nossas mentes muito acostumadas ao inautêntico talvez não aguentem; uma beleza demasiado forte para nossas vidas que já se resignaram a suas feiúras miúdas... Frusciante canta e toca como se o mundo estivesse para acabar no próximo instante, como se estivesse numa corda bamba, suplicando: don't push me, i'm too close to the edge... Eis uma arte que vive, respira, se alimenta da presença da morte. Uma arte que é pura purgação da angústia, berro de agonia, calafrio de incompreensão. Uma arte feita por um discípulo do abismo, que injeta em nossos ouvidos e em nossas vidas, tão acostumadas à banalidade, alguns sentimentos de intensidade fortíssima. Uma arte de uma beleza terrível, terrivelmente bela...