E D U K A T O R S
(Alemanha, 2004, de Hans Weingartner)
(Alemanha, 2004, de Hans Weingartner)
Esse é um daqueles mistérios da alma humana que é difícil de entender: por que diabos um ricaço nunca está realmente satisfeito com a fortuna que tem? Por que precisa sempre adicionar mais um zero a seu saldo bancário, um carro à sua garagem (que digo eu!? a seu GALPÃO!), um iate a sua praia particular...? O que faz com que ele nunca consiga se satisfazer com o que já possui e tenha que partir sempre em busca de mais e mais e mais?
É realmente de indignar, de revoltar, de deixar louco de raiva, a atitude da maioria dos bilionários desse planeta: eles insistem em cultivar suas fortunas pessoais, e entesourar seus capitais, e fazê-los render indefinidamente, enquanto que em todos os cantos desse mundo se ouvem os gemidos das multidões que agonizam de fome, de frio, de humilhação... E, afinal, fala sério: que diferença faz ter um bilhão de dólares ou trinta, cinquenta, cem bilhões? Um bilhão de dólares é grana mais do que suficiente para que se compre tudo o que se possa desejar. E ainda assim, para terem o orgulhozinho escroto de um saldo bancário com dezenas de zeros à direita, para gozarem da celebridade de serem incluídos em alguma listinha enojante dos mais ricos do mundo de alguma revista de negócios, eles, os milionários, se agarram a suas fortuninhas... Tristes humanos, tão contaminados por seu egoísmo, tão pouco capazes de se sensibilizar com os destinos de outros homens, tão apegados a suas posses, que se esquecem completamente que existem coisas chamadas caridade, solidariedade, compaixão, generosidade...
Não que sejamos, todos nós, muito diferentes... Mas o que revolta no milionário é que ele poderia muito bem doar uma enorme parcela de sua renda para outros mais necessitados sem que isso fizesse muita falta para ele. Exemplo: um homem que possui 50 bilhões de dólares e que doasse 49 bilhões para alguma entidade de combate à fome no Quarto Mundo sairia realmente prejudicado por isso? Com o bilhão que manteve no bolso, pode ainda viver a vida a viajar pelos lugares mais belos do mundo, se hospedando nos mais belos hotéis, comendo as mais caras das comidas, andando nos mais belos carros... E ainda assim eles permanecem comprando o supérfluo para si ao invés de doar o necessário a outros em situações agoniantes. Quem já não teve vontade de punir os milionários por seu comportamento revoltantemente egoísta? Quem já não teve fantasias sangrentas sobre imolações e torturas contra esses porcos capitalistas?...
Pensamentos como esses foram trazidos à tona pelo filme alemão EDUKATORS, segundo longa-metragem do jovem cineasta Hans Weingartner. É mais um filme nessa leva que vem crescendo ultimamente: a de filmes subversivos que pretendem criticar o atual estado de desenvolvimento do capitalismo e do neoliberalismo (e uma de suas principais consequências: a péssima distribuição de riquezas no planeta). Só ficando nos exemplos do cinemão mainstream, tivemos grandes obras nesse estilo com o Clube da Luta (que, para quem sabe ver bem, é uma espertíssima crítica ao vazio existencial na sociedade de consumo) e os documentários do Michael Moore...
EDUKATORS é o nome de uma organização subversiva de protesto criativo contra o capitalismo. Jan (Daniel Bruhl, que protagonizou também o ótimo Adeus Lênin!) e Peter (Stipe Erceg), dois companheiros de longa data, armam um novo método de "terrorismo poético" ou de "protesto não-violento contra o sistema capitalista": gastam suas madrugadas a invadir mansões de bilhardários (que estão ausentes de suas casas) para realizar uma espécie de "trote". Uma vez lá dentro, não roubam nem destroem nada, como se quisessem provar que não tem intenções baixas de apossamento indevido de bens alheios nem de holocaustos raivosos de riquezas. Somente mudam de lugar os móveis e objetos de decoração, arranjando-os de forma meio caótica, meio brincalhona, e depois deixam um recado para os invadidos que diz "Seus dias de fartura estão contados!" ou "Você tem mais dinheiro do que deveria ter!". E assinam com o codinome EDUKATORS.
A intenção é clara: os Edukators não são uma organização criminosa à la Robin Hood que quer roubar os bens dos ricões e distribui-los para as massas, mas sim um coletivo que se propõe a acordar a consciência dos milionários para a desigualdade social. É questionável se esses métodos funcionam. Primeiro, pode-se objetar que entrar na casa de uma meia dúzia de ricões nada vai resolver num nível nacional, muito menos global, já que, mesmo que esses ricos invadidos procurem realizar mais "atos caridosos e humanitários" para provarem a seus Educadores que "melhoraram", seriam somente atos isolados que não resolveriam muito para o quadro geral. A essa objeção os Edukators já tem resposta pronta: eles são somente os precursores, aqueles que fornecem o modelo, o exemplo; outros seguidores do credo virão na sequência e darão continuidade ao "projeto". É o modo de pensar Luther Blissett: a gente começa a realizar certos atos e os "assina" com um certo nome, convidando outros jovens rebeldes a adotá-lo também, e então Edukators ou Luther Blissett deixa de ser o nome de um certo grupo específico, localizado num espaço geográfico muito bem delimitado, e se torna algo de muito especial: um MITO, desterritorializado e múltiplo, muito mais difícil de ser derrotado pelo poder por não ter nenhuma liderança central. Mas há aqui uma diferença fundamental: Edukators não é o nome de um movimento contra-cultural realmente existente como o Luther Blissett, mas nem precisa sê-lo para servir como modelo. O cinema serve aqui como uma notável ferramenta de propagandear um certo modo de subversão aos seus espectadores mais ousados. Quem duvida que exista uma parcela do público que sai do cinema a fim de imitar a atitude dos Edukators? E como não pensar que o diretor tenha tido essa intenção inspiradora?
Mas também se pode objetar outra coisa: não será muito mais plausível que os ricões, ao invés de passarem a magicamente se dedicar a atos de filantropia, se decidam muito mais a um fechamento ainda mais paranóico em seus mundinhos estanques? O que leva os Edukators a crer que ter sua casa invadida por um grupo rebelde fará com que o milionário passe a agir de modo mais altruísta? É muito mais plausível que instale um sistema de alarme mais eficiente, que contrate seguranças mais fortemente armados para fazer a vigilância de sua propriedade, que mande blindar todos os seus automóveis com a mais impenetrável das carapaças... Se bem que em nenhum momento se explicita realmente que a intenção é que os capitalistas passem a distribuir suas riquezas: se trata muito mais de assustá-los, de fazê-los temer novas invasões, de torturá-los um pouco com o medo... “Queremos que eles se sintam inseguros mesmo com toda a segurança que pensam ter. Queremos que fiquem apavorados.”, diz Jan (cito de cabeça, ou seja, com pouca exatidão...). Mas de que serve instigar a paranóia alheia, se isso só serviria para que eles ficassem ainda mais receosos de perder suas posses e se esforçassem para resguardá-las ainda melhor?
A coisa se complica quando a namorada de Peter, a loirinha Jule (Julia Jentsch), incapaz de pagar o aluguel de seu apartamento, se muda para a casa do companheiro. Dois homens e uma mulher dividindo a mesma moradia... já dá pra suspeitar aonde isso vai dar. Num fim-de-semana em que o “dono oficial” da garota estava em viagem, Jan e Jule se engraçam. A garota conta para o amigo a história de sua desgraça: um tempo atrás, dirigindo seu carrinho velho por uma estrada, havia batido na Mercedes de um grande empresário, causando a destruição completa do veículo. Resultado: adquiriu uma dívida de 100.000 euros, que paga gota a gota trabalhando como garçonete num restaurante para grã-finos. Segundo seus cálculos, vai precisar de OITO ANOS de trabalho só para pagar o carro destruído do desgraçado. Como não podia deixar de ser, a garota adquiriu um certo ódio contra todos os milionários e suas frescuras idiotas (chega até mesmo a riscar os BMWs e Ferraris em estacionamentos), e vai encontrar em Jan um aliado em seu ódio. Ambos acham revoltante que June tenha que trabalhar por anos e anos e anos para sustentar o estilo de vida do milionário, e ainda mais por saberem que um carro, para uma pessoa dessas, é uma mixaria. Paralelamente à atração que nasce entre os dois, nasce também o interesse empolgado de Jule pela ação dos Edukators. Mas logo se vê que é a vingança o que busca a mocinha.
Quando invadem a casa do milionário Hardenberg, aquele que obriga June a trabalhar “escravamente” para pagar sua dívida, são surpreendidoss pelo mesmo e obrigados a levá-lo como refém de um sequestro improvisado. Algumas das melhores cenas do filme vão se passar no cativeiro, quando os três jovens idealistas e revolucionários duelam verbalmente com o empresário bilionário. O que está em questão, claro, é a indiferença dos homens mais ricos do mundo em relação aos destinos humanos no terceiro e quarto mundo. Hardenberg está certo de que tem o direito de usufruir da fortuna que, diz ele, foi conquistada por seu trabalho duro... Ao que respondem: quem trabalha de verdade são as pessoas esfomeadas e esfarrapadas da América do Sul, da Ásia e da África, por um salário de miséria, e o senhor somente se apropria desse trabalho para multiplicar o capital... Hardenberg, por sua vez, diz que não tem culpa por não ter nascido na Ásia miserável, que “não criou as regras do jogo e somente o joga”, ao que respondem: “o culpado não é só quem criou a arma, mas também quem puxa o gatilho”. E assim vamos acompanhando alguns dos diálogos mais espertos e instigantes que o cinema político já apresentou aos seus espectadores em toda sua história.
O filme certamente não é simplista ou excessivamente maniqueísta: de forma alguma reduz os personagens a expressões do bem absoluto aqui, do mal absoluto acolá. Os três revolucionários, por exemplo, são descritos com uma verossimilhança impressionate. Não há por aqui nenhuma insistência em mostrá-los como heróis totalmente imaculados e sem nenhum traço de interesse pessoal, ganância ou mesquinharias egóicas. Exemplos: Peter não resiste à tentação de surrupiar um Rolex da casa de um ricão invadido, mesmo sabendo que os Edukators não são uma organização que aprove o furto. Jule, por sua vez, sabe que o sequestro do milionário não é verdadeiramente um ato “altruísta”: é muito mais motivado por um rancoroso desejo de vingança do que por uma real preocupação com as outras pessoas que são fodidas pela péssima distribuição de riquezas no planeta. E, claro, a fidelidade ao ideal revolucionário acaba por ser atrapalhada pelo ciúme e pela briga interna dentro do triângulo amoroso.
O empresário sequestrado, por sua vez, não é descrito caricatamente, como se esperaria de um filme de esquerda mais fanático, como uma pessoa irremediavelmente gananciosa, egoísta, conservadora, insensível... Não: trata-se de um ex-militante de esquerda da geração 1968, que viveu em repúblicas estudantis, e que depois não pôde resistir às tentações do mercado e do luxo bruguês. Um homem que manifesta seu “respeito” ao idealismo juvenil e que, como se diz, talvez nem seja “má pessoa”. Um sequestrado que acaba até por simpatizar com os seus sequestradores (o que os psicanalistas chamam, se não me engano, de Síndrome de Estocolmo) e que parece estar curtindo suas férias longe de sua vidinha tradicional em sua mansão, fazendo poucos esforços para fugir. Tudo bem que acaba por instigar a guerra entre os jovens e que acaba por tomar uma decisão que nos deixa com raiva no final do filme (calma que eu não vou contar nada).
EDUKATORS, mesmo que esteja claramente do lado dos revolucionários e sempre procure nos fazer simpatizar com eles e sua luta, não sacrifica a verdade do retrato e não cai nunca na caricatura. Trata-se de fazer cinema com as pessoas como são, não com estereótipos ou ideais, e foi isso que Hans Weingartner parece ter entendido muito bem. Saiu-se com um filme gostoso de assistir, que instiga identificação com os personagens e que inspira a imitá-los, que junta dramas humanos pessoais com críticas sociais gerais, enfim, um cinema jovem, inteligente, tocante, excitante. O mundo precisa de mais filmes como este.
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