terça-feira, 26 de julho de 2005



MATE-ME POR FAVOR .

Não é à toa que se costuma dizer que "Mate-me Por Favor" é a Bíblia do Punk. Com suas quase 500 páginas e inumeráveis declarações coletadas, o livro organizado por Legs McNeil e Gillian McGain narra os primórdios do movimento punk com uma riqueza de detalhes e um vigor narrativo impressionantes. É o que basta para torná-lo um dos documentos literários mais fundamentais para quem deseja entender como nasceu essa que é uma das mais importantes movimentações culturais das últimas décadas.

Obviamente, o livro não pretende ser uma enciclopédia punk que esgote o assunto. O que se trata aqui é principalmente do início de tudo, nos EUA do fim dos anos 60 e começo dos 70, quando a semente do punk começou a germinar. Para quem ainda compartilha da noção simplista de que o punk começa em 1977, com os Sex Pistols levantando um circo de baderna na terra da Rainha, aprende novas verdades aqui. Muitos anos antes de Johnny Rotten, Sid Vicious e companhia começarem a atormentar os ingleses com palavrões ditos na tevê aberta, atentados sônicos e shows dos mais caóticos que já se havia visto, já surgiam nos EUA as primeiras bandas, estilos e comportamentos que depois seriam reconhecidas como proto-punks.

As bandas de que se trata aqui são essencialmente underground: não fizeram sucesso nos grandes meios de comunicação ou nas grandes rádios, não lotavam estádios com seus shows e até hoje permanecem muito mais como artistas cult do que fenômenos populares. Mesmo assim, a influência do Velvet Underground, do MC5, dos Stooges, dos New York Dolls, do Television e dos Ramones em quem os viu e na geração que se seguiria é enorme. É aquele velho papo: só umas cem pessoas iam aos shows do Velvet durante a existência da banda, mas umas 90 delas saiam do show e montavam uma banda.

A irreverência dos New York Dolls, que tocavam vestidos de mulher e banhados em abundante maquiagem cafona, prenuncia todo o glam rock que viria a seguir (T Rex, Roxy Music, Placebo, Suede, um certo David Bowie, entre muitos outros, continuam devedores). A rebeldia trash dos Stooges, com as atitudes altamente nojentas de Iggy Pop (que costumava tomar a simpática atitude de vomitar sobre o público ou cortar-se com cacos de vidro no meio dos shows), será depois imitada pelos Sex Pistols e tantas outras bandas de hardcore. O peso mastodôntico da música do quinteto de Detroit MC5 é como o heavy metal dando seus primeiros passos, pouco antes do começo da popularização do Black Sabbath e do Led Zeppelin. A poesia maníaca e rimbaudiana de Patti Smith e a experimentação iconoclasta do Velvet Underground representavam as ambições artísticas e intelectuais mais elevadas dentro daquela abençoada turma de amigos na Nova York do começo dos 70. Os complexos e virtuosos duelos de guitarra do Television, em músicas que chegavam a ultrapassar os 10 minutos de duração, apontam para um lado mais progressvio e virtuosístico do punk. E Richard Hell, Elvis Costello e o Blondie, por sua vez, ao começarem a misturar pop fácil com barulho apunkalado e irreverência, inventaram o que seria a new wave. A música pop nunca mais seria a mesma.

Adotando um estilo original de narração, "Mate-me Por Favor" é uma sucessão de declarações dadas pelos protagonistas e figurantes da história toda, sem nenhuma intervenção de um narrador que organize o aparente caos. Centenas de entrevistas coletadas, editadas, mescladas e entretecidas formam a narração do livro, uma imensa Babel punk onde a saga é contada conjuntamente por uma centena de vozes. Desde escritores da geração beat que se interessavam por música pop (como Allen Ginberg e William S. Burroughs), até figurinhas da cena artística e intelectual de New York (Andy Warhol o mais ativo deles), passando por produtores e donos de lojas de discos, até desconhecidas groupies e roadies, todos ganham voz para darem sua contribuição à essa história coletiva do punk. Mas que não se imagine uma obra teórica, sociológica, antropológica, histórica, escrita em linguajar acadêmico e pretensioso: nada mais distante da verdade. "Mate-me Por favor" é totalmente baseado na oralidade, no informal, nos bate-papos, nas zoações, coisa que o torna, antes de mais nada, uma leitura extremamente divertida. Fundamental.




DISCOGRAFIA FUNDAMENTAL DO "PROTO-PUNK" AMERICANO

VELVET UNDERGROUND - "Velvet Underground & Nico" e "White Light/White Heat"
MC5 - "Kick Out The Jams"
STOOGES - "Stooges", "Funhouse" e "Raw Power"
NEW YORK DOLLS - "New York Dolls"
TELEVISION - "Marquee Moon"
PATTI SMITH - "Horses"
RAMONES - "Ramones", "Leave Home", "Rocket To Russia"
BLONDIE - "Parallel Lines"
ELVIS COSTELLO - "My Aim Is True"
RICHARD HELL - "Blank Generation"
JOHNNY THUNDERS & THE HEARTBREAKERS - "Born To Lose"