terça-feira, 23 de maio de 2006



Escrevi sobre o LESTER BANGS pra RABISCO. Logo logo no ar.
Posto aqui somente o trecho do texto que eu acho mais legal. Se 6 quiserem ler a matéria inteira (que é enooooorme), entrem lá. Como escrevi isso logo depois de ter lido o Reações Psicóticas numa sentada só, eu estava com a cabeça em Bangs-mode e acho que o meu texto, em muitas horas, acaba soando como uma tentativa de imitar ou pagar-pau pro estilo impetuoso e nada-de-vírgulas da prosa-beat do cara... Tem umas coisas que, relendo agora, eu tô achando horrivelmente pretensiosas, mas agora é tarde demais e o texto tá indo pra net. Vejam aí o que acham e não deixem de ler o Reações..., um dos Livros de Rock indispensáveis em qualquer biblioteca.


- DEMOLINDO ÍDOLOS -

Lester Bangs era o tipo de jornalista musical imune a qualquer tipo de subserviência ao star-system: esse cara nunca seria corrompido por um jabá a escrever um texto louvando o Emerson, Lake & Palmer ou uma matéria toda-elogios para alguma nova sensação hypada. O exemplo que ele dá a todos aqueles que desejam fazer crítica de rock e jornalismo musical é seminal, demonstrando que a fidelidade a si mesmo e à sua própria paixão não se pode deixar corromper por interesses do órgão de imprensa ou pelas pressões feitas pelas gravadoras para que se fale bem daquilo que elas querem que venda bem. Lester marcou época porque ousou falar mal de muita gente que ele considerava indevidamente sacralizada e recusou o fanatismo bobalhão e descerebrado que constantemente é marca dos fãs de bandas de rock, acabando por “virar o açougueiro do maior número possível de vacas sagradas”, como diz Brian James.

Nietzsche dizia filosofar com o martelo, mais para demolir do que para construir, e Lester Bangs parece se apropriar da mesma técnica e utilizá-la na crítica de rock. Sua importância está mais no que ele recusa do que naquilo que afirma. E o que ele recusa, e com um não estrondoso, é a idealização dos pop-stars, a pagação-de-pau otária aos “deuses do rock”, a pomposidade e a pretensão dos progressivos, todo tipo de música que deixa de ser expressão de paixão para virar exibicionismo e punheta...

Talvez por isso Bangs gaste tanta munição, através de muitas das páginas de Reações Psicóticas, somente demolindo ídolos: ao que parece, ele não quer que continuemos eternos adolescentes babando de admiração idiota frente a estrelas que no fundo, como ele vai procurar mostrar, são todas humanas, demasiado humanas. “Heróis são uma puta coisa estúpida de se ter” (pg. 81), diz em seu tom cru, no clássico trecho de seu artigo sobre Lou Reed no qual ainda diz que todos os heróis “estão aí pra tomar porrada”, que são todos “uns miseráveis cães sarnentos, os párias da terra” e que “a única razão para se construir um ídolo é jogá-lo por terra novamente” (pg. 81).

Então dá-lhe porrada pra cima de mitos “sagrados” como John Lennon, Elvis Presley, Iggy Pop e Lou Reed: todos eles são sistematicamente dessacralizados. Elvis, por exemplo, na ótica de Bangs, “obviamente nada mais era do que um pobre garoto sulista burro com um empresário paizão” (pg. 115), “um porra dum motorista de caminhão que idolatrava a mãe e jamais diria merda na frente dela” (pg. 121) - e “nós todos faríamos melhor em dar-lhe adeus com o dedo médio levantado” (pg. 117). E John Lennon, cuja morte não parece ter causado muita comoção em Bangs, era “só um cara”. Essas opiniões, que parecem cuidadosamente arquitetadas para levantar polêmica e arrancar protestos inflamados dos fãs, fazem parte dessa técnica de demolição de ídolos e da idolatria em si. E será que essas palavras tem alguma outra intenção senão exatamente essa: provocar os fãs e, de certo modo, tentar minar um pouco o “excesso de fanatismo”? É bem provável.

É claro que, no fundo, Lester Bangs está longe de odiar esses artistas com desprezo total, como pode parecer à primeira vista - as coisas são mais complicadas. Uma das características mais peculiares em Bangs é mesmo sua relação de amor e ódio com seus “heróis”: ele é o tipo de cara capaz de soltar os insultos mais nojentos e os elogios mais ternos para um mesmo artista no decorrer do mesmo texto, demonstrando uma ambivalência emocional gritante. É porque “todo crítico de rock é um músico frustrado”? Talvez. Talvez Lester Bangs nunca tenha podido perdoar seus heróis por serem heróis enquanto ele, Lester, nunca pôde se tornar um rock-star...

Lou Reed, a quem é dedicado o mais extenso, o mais clássico e o mais hilário dos artigos presentes em Reações Psicóticas, é o símbolo perfeito dessa ambivalência emocional. O mesmo Bangs que se derretia em elogios ao White Light / White Heat do Velvet Underground e que considerava Reed um baita dum herói (“Lou Reed é meu herói principalmente porque ele representa as coisas mais fodidas que eu jamais conseguiria sequer conceber” – pg. 78), se põe a xingá-lo de um jeito exagerado e raivoso. Só pra ter uma idéia, Lester diz que Lou Reed é uma “nulidade para consumo das massas”, “um pervertido depravado completo”, “um duende patético da morte”, “um talento desperdiçado”, “um mascate vendendo quilos de sua própria carne”, “um gigolô vivendo do niilismo bronco de uma geração anos 70 que carece da energia para cometer suicídio”, “uma monumental piada sem graça de si mesmo” (pg. 76) e alguém que no palco “conseguiria adicionar um capítulo inteiro aos anais do mau gosto” (75). Estranho modo de se referir a um “herói”! E, vejam a ironia, Bangs certamente foi menos brutal quando se tratava de falar mal do Emerson, Lake & Palmer, que ele dizia odiar mais que tudo...

Bangs compreende a fascinação que os mitos do rock geram em muitos de nós com seus comportamentos auto-destrutivos e suas vidas intensas e insanas. Olhando para a história do rock, não é difícil notar que acabamos por sacralizar toda uma série de garotos perdidos que seguiram à risca o evangelho do live fast, die young e do sex, drugs and rock and roll e que acabaram passando pela Terra como estrelas cadentes, de brilho efêmero mas marcante. A mitologia do rock and roll está repleta de apologias à morte na juventude e a uma vida que se consome e se destrói rapidamente devido à intensidade maníaca com que é vivida. “Espero morrer antes de ficar velho!”, cantava o The Who num dos maiores clássicos da história do rock and roll, “My Generation”. E Kurt Cobain, como se sabe, disse algo parecido ao estampar o verso de Neil Young em sua carta de suicídio: “It's better to burn out than to fade away...”

Qualquer um que tenha se aventurado a ler Mate-me Por Favor!, livro de Legs McNeil que conta a história sem censura do punk americano, sabe o tamanho do fascínio que havia por tudo o que era trash, nojento e esquisito naquela Nova York que viu surgir o Velvet, os Stooges, os New York Dolls, a Patti Smith, os Ramones, o Richard Hell e toda a cena que margeava o CBGBs – e Lester Bangs estava lá pra ver tudo de camarote. Iggy Pop, por exemplo, se tornou um deus do rock rolando sobre cacos de vidro, vomitando sobre as primeiras fileiras do público e arrumando brigas sérias com motoqueiros encrenqueiros, e todos o adoravam justamente por isso: porque ele era completamente insano e porque era um performer que parecia possuído pelo demo e porque parecia estar cagando e andando para o fato de viver ou morrer. “O mito heróico central dos anos 60 era o detonado. Viva rapidamente, seja mau, encrenque-se, morra jovem”, resume Bangs (pg. 78). Isso não ficou restrito aos anos 60, claro, uma década que também ficou marcada pelo hippismo e suas mensagem de paz-e-amor e flower power - e talvez tenha se exacerbado muito mais nos anos 70, com o levante punk e a divinização de tudo o que é trash, tosco e imundo, e nos anos 90, com a idealização das sombras e do niilismo via Seattle.

Lester Bangs conheceu essa fascinação, e certamente tentou imitar todos esses “anjos caídos” que se transformaram em “heróis culturais”. “Eu mesmo sempre quis imitar o filho-da-puta mais autodestrutivo que eu visse, caso ele se comportasse com algum senso de estilo”, confessa (79). Houve um tempo em que ser fodido, decadente, junkie e niilista era a coisa mais cool do mundo, e havia jovens que dariam tudo pra viver uma vida igualzinha à de Sid Vicious, mesmo que isso significasse deixar esse mundo aos 21 anos de idade.

Pois bem: algumas páginas de Reações Psicóticas mostram que Lester Bangs começou a questionar seriamente essa relação de idolatria que tantos nutrem frente a esses garotos perdidos, drogados e sofredores que se vão desse mundo aos 20 e poucos anos escolhendo a forca ou a overdose. “Uma das coisas que estamos adorando é o ódio a si mesmo, e uma outra pode muito bem ser um indivíduo cometendo suicídio”, provoca Bangs (pg. 109), demonstrando estar simplesmente cansado desse papo e querendo nos fazer questionar as razões que temos para idolatrar quem idolatramos. Um dos poucos momentos em que pára de descer porrada em Lou Reed é quando diz admirá-lo porque ele conseguiu “se ligar que todo o conceito de ruína, decadência, degeneração era uma piada”. Ou seja, “Lou se ligou do absurdo implícito da pose de fodão ovelha-negra típica do rock and roll e a parodiou, desglamorizou” (pg. 79). Chega uma hora em que Lester (e é isso o que justifica que alguns tenham podido chamá-lo de moralista...) quase chega ao ponto de nos perguntar: por que estamos adorando esses tristes exemplares humanos de decadência e auto-destruição? Por que achamos tão legal a vitória do instinto de morte sobre os instintos vitais? Enfim: por que é mesmo que pagamos tanto pau pra esses palhaços?

É interessante notar que a resenha que dedica ao Astral Weeks de Van Morrison, publicada em 1979, apesar de aparecer como o primeiro texto em Reações Psicóticas, é posterior aos escritos que dedicou ao Iggy Pop e ao Lou Reed, o que demonstra bem o quanto Bangs, ao fim dos anos 70, estava mudando seus ídolos e valores e cada vez condenando mais o niilismo, a auto-destruição e a estilização da decadência. É um baita dum sinal de mudança que Lester Bangs, o mega-defensor do punk, possa ter conseguido admirar tanto o clássico debut de Van Morrison, uma obra-de-arte que de punk não tinha absolutamente nada: era muito mais um documento místico de uma busca espiritual. Astral Weeks, comenta Lester, “assumiu na época a importância de um farol, uma luz nas praias longínquas das trevas; e mais, era uma prova de que havia ainda algo a ser expressado artisticamente além de niilismo e destruição” (pg. 22). Prova de que Bangs não era uma pessoa tão simplista, nem seus gostos musicais tão “fechados”, nem suas idéias sobre as funções da arte tão bobocas quanto às vezes seus caricaturistas fazem parecer.