UM MENINO QUE EU CONHEÇO.
Eu conheço esse menino que tem um coração trancado numa jaula, dentro dum zoológico de segurança máxima, e ele tá sempre vigiando de perto pra que não haja fuga. Não sei porquê. Ele talvez tenha achado que era uma besta selvagem demais, o coração, e que convinha se precaver. Sei que ele não o solta nunca quando há pessoas ao redor e não deixa o pobre bicho passear ao ar livre durante o dia todo. Só quando não há visitantes, quando cai a solidão da noite e a segurança das trevas, é que ele destrava os cadeados e deixa seu bicho de estimação perambular livre. Livre e só.
Esse menino é como se fosse um dono de cachorro ciumento que não quer que pessoa alguma nem ponha os olhos sobre seu animal: não deixa o seu coração falar com ninguém. E o coração, coitado, de tanto ficar trancafiado, desaprendeu como falar sobre si – e na sua jaulinha, onde só tem canetas hidrocores e cartolinas, ele só se confessa ao papel.
Ele, o coração trancafiado, tenta manchar as cartolinas com garranchos em letras garrafais onde descreve todos os seus sentimentos, e fica lá, de dentro da jaula, segurando essas grandes folhas como se fossem placas. As pessoas passam e nem ligam. Não estão nem aí. Talvez se gritasse...
Ele, esse menino dono do coração, já tem barbas peludas na cara e é mais alto que o próprio pai, mas sei que dentro dele ainda se esconde uma criancinha boboca que quer chupeta, colo e cafuné. Ele, é claro, não admite. Gosta de se chamar a si mesmo de homem, e claro que homem que é homem não tem dessas frescuras, dessas infantilidades, desses desejos de mariquinha. Esse menino gosta de se fingir de durão e sempre anda pelo mundo com os olhos secos. As pessoas compram. “Eis a própria imagem da maturidade!”, dizem todos admirados quando o vêem passar.
E esse menino, tadinho, é daquele tipo que fez a bobagem de olhar para os céus e imaginar qual é o seu próprio tamanho e lugar no Esquema das Coisas. E ainda, na escola, fizeram a crueldade de lhe ensinar rudimentos de astronomia. E ele começou a se sentir pequeno, como se seu planeta fosse um formigueiro, como se seu país fosse um grão de poeira, como se ele mesmo fosse menor que um átomo em meio à imensidão do universo. E esse menino muitos anos ficou achando que ele não servia pra nada. E talvez não servisse mesmo. Talvez até hoje não sirva.
Ele não é muito de sorrir. Mas pelo menos sempre responde com um “tudo bem” a todos os “como vai?”. É sempre mentira.
Eu conheço esse menino, e é de deixar louco de raiva: ele tem uma alma tão grande e tão colorida, mas faltam a ele os devidos buracos para deixá-la escorrer pra fora. As aberturas dele são muito fechadinhas... nem sei se posso chamar de aberturas. Ele às vezes me lembra daquela piada do pintinho que explodiu porque não tinha... mas deixa isso pra lá que é muito obsceno e hoje é dia de poesia.
As pessoas tentam espiar pra dentro dele, mas nele não tem janela, nele não tem porta de vidro; tudo o que tem é só um buraco de fechadura minúsculo, e na maior parte do tempo a chave tapa a visão – pois o menino sempre se tranca por dentro.
Quando ele tem frio, e costuma ter bastante, se agasalha com um cobertor velho feito todo com sonhos, uns remendados nos outros, um costurado no rabo do outro, uma zona só. Faz aí seu ninho. E esse menino gostaria de nunca deixar esse refúgio, mas de algum modo sempre algo vem e lhe arranca com força o cobertor de cima do corpo, faz dele trapos, reduz a pó a matéria-prima. Ele recomeça, como uma aranha, a tecer mais um cobertor de sonhos onde se deitar e aquecer, mas é como se tentasse se sustentar em cima de nuvens – ele sabe que há de cair.
Eu conheço esse menino, e a alma dele, grande e pesada, ao invés de sair dele como sai a lava de um vulcão, sai como saem as gotinhas de remédio de um conta-gotas. E esse menino anda pelo mundo com as costas meio curvadas, como se carregasse sobre as costas um imenso peso, como se por dentro fosse todo feito de chumbo, e como se não soubesse que disso ele se poderia desfazer, fácil fácil.
E esse menino não sabe se sabe amar. Até hoje não soube se fazer a si mesmo feliz, e tem suas dúvidas sobre se saberia dar felicidade pra qualquer outra pessoa ou se só acabaria ferrando com as coisas, como é seu costume fazer. Talvez ele simplesmente não tenha o talento. Alguns nascem pra perder.
Eu conheço esse menino, e ele muitas vezes vem e me diz lamentos, cheio de auto-piedade (e eu confesso: odeio a auto-piedade mais que tudo). Ele me diz que perdeu o seu caminho, mas a verdade é que ele nunca o encontrou.
Conheço esse menino e simplesmente, de verdade, não sei o que fazer com ele.
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