segunda-feira, 27 de dezembro de 2004

< BRAINSTORMING DE NATAL >

ALERTA VERMELHO: NOSTÁLGICO BRAGARAI

NATAL DE AGORA, NATAL DE OUTRORA...

Natal besta esse. Besta eu, que sou a pessoa mais chata que conheço. Agora que o mundo está desencantado, agora que já varri como poeira todos os seres mitológicos pra fora do universo, agora que só resta esse espetáculo levemente ridículo que é a humanidade brincando de comemorar o nascimento de um mito de sua própria criação, agora que vejo esses bichos tolos brincando de esvaziar os shopping centers e os hiper-mercados em prol do desenvolvimento da bela civilização ocidental, tudo ficou muito besta. Claro que fizemos tudo de novo como manda a cartilha, nos demos presentes, fizemos nossas declarações de amor na hora certa (como se fosse possível ter hora certa pra isso), vomitamos pelas ruas os clichês tradicionais sobre todos nossos conhecidos, um muito feliz natal, um muito próspero ano novo, muitas felicidades no ano que virá, que Deus lhe abençoe e lhe dê muita saúde, dissemos o que devemos dizer até mesmo para aqueles que desejaríamos ver mortos ou com lepra, e sempre com as mesmas frases prontas e decoradas, e fizemos nossas orações frente ao peru e às uvas passas, e nos felicitamos por estarmos todos vivos e podendo comer comidas das boas no dia do nascimento de nosso Senhor, o filho de Deus... Dois mil e quatro anos atrás, o bom Jesus fez ao mundo a grande benfeitoria de nascer, e tantos bens esse fato trouxe, tantas melhoras gerou, tão mais felizes nos fez, que continuamos a comemorar de ano a ano o acontecimento. Oh sim.

Vovô até chegou a fazer meditações teológicas frente ao tender e ao bacalhau, dizendo que muito deveríamos nos alegrar por podermos estar comendo banquete tão prodigioso quando tantas pessoas pobres, coitadas, não tinham nada disso... e então nos congratulamos mutuamente pela virtude de sermos (ou pela sorte de algo ter-nos feito nascido) pequeno-burgueses. “Deus nada dá de graça! É preciso merecer! É preciso merecer!” E já que estávamos ali, com comida abundante à nossa frente, certamente era porque merecíamos. Não querendo estragar a festa de ninguém, pensei cá comigo que as criancinhas da Etiópia devem ter cometido algum crime fuderoso contra nosso bom Senhor para que tenham que se contorcer de fome nesse vinte cinco de dezembro. Talvez em vidas passadas, quem sabe? Não entendemos a cabecinha maluca de Deus, mas Ele deve saber o que faz. Certamente algum estigma muito feio têm na alma as criancinhas etiopianas... e as somalianas... e as brasileiras. Mas conosco está tudo bem, graças ao bom Deus que sempre dá o que se merece.

Natal besta esse. Legal mesmo era quando o mundo estava encantado. Faz tempo. É muito chato tornar-se adulto, ficar com vontades de ser um crítico da sociedade capitalista e das mitologias ideológicas que servem pra nos fazer comprar e comprar e comprar, legal era não pensar em nada disso, ser burro e cheio de fé, acreditar cegamente em Papai Noel, mandar cartas pro Pólo Norte, aguardar gostosamente por todo o mês de dezembro, levantar tremendo de êxtase na manhã do 25 pra ir checar o milagre realizado ali, debaixo da árvore pisca-piscante. Papai Noel, me parece, tá meio fora de moda. As crianças de hoje descobrem muito rápido que se trata de embuste dos adultos. Eu é que fui criança crédula demais. Claro que era verdade que existia lá na Sibéria, na Finlândia ou na Islândia, qualquer desses lugares gélidos e ermos lá do fim do mundo, um bom velhinho com sua fábrica de brinquedos, que recebia a correspondência de todas as crianças da Terra, procedia à construção mágica dos pedidos, e depois saía cortando os céus negros com seus veados alados, despejando gostosuras, entrando em chaminés, carregando sacos vermelhos apinhados de delícias. Tinha toda a lógica do mundo.

Certamente que hoje parece estranho que eu pudesse acreditar que um só velhinho fosse capaz de construir tantos brinquedos, sozinho, mas os adultos me tranquilizavam com a explicação do dilema: ele certamente tinha muitos ajudantes, uns simpáticos anões como as da Branca de Neve, e também a Mamãe Noela ajudava o marido a conseguir realizar seus objetivos, tricotando casacos de lã para que o bom Velho não virasse pedra de gelo, fazendo sopas quentes pra esquentar as entranhas, lavando a casa e a fábrica de brinquedos, pois é pra isso que servem as mulheres. Também difícil de explicar era como era possível que, numa única madrugada, Noel pudesse visitar todas as casas do mundo que tinham crianças para deixar a presentaiada. Por mais aerodinâmicos e velozes que fossem os seus veados (suas RENAS, insistiam todos!), não parecia plausível. O mundo, me diziam, era um troço bem grande. Ah, mas Papai Noel não sofria das limitações que pesam sobre os humanos! Tinha, como o bom Deus, o dom da ubiquidade! Tinha uma máquina de xerox ou de auto-clonagem que lhe dava a possibilidade de criar cópias de si! A Razão tudo explica.

E também não era problema explicar como era possível que os brinquedos que nós pedíamos não eram produtos exclusivos da Fábrica de Brinquedos de Papai Noel e estavam expostos em todas as lojas dos shoppings. Que crime esse de quebrar o monopólio de Noel! Mas era muito óbvio que os presentes que a gente ganhava no 25 não haviam sido comprados no shopping center, mas sim fabricados por Noel e seus soldadinhos. Era uma lição de platonismo: nos shoppings haviam somente as cópias decaídas das coisas reais. Os maléfolos donos de lojas de brinquedo queriam copiar as virtudes e os talentos do bom Noel, mas era tudo em vão. A Fábrica do Pólo Norte, como o Céu Platônico, era o lugar onde se deveria buscar a Coisa Real. O resto era falsificação.

Não era coisa fácil, porém, merecer os prêmios do bom Noel. Oh, não, era preciso, antes de mais nada, ter sido um bom menino durante todo o ano. Quando chegava o fim de novembro, um acontecimento muito importante tinha lugar: escrever a carta para o Velho, enviá-la lá para o Pólo Norte com aquele montão de selos caros, e rezar pro carteiro não se perder no meio daquelas geleiras todas. Minha mãe tinha suas sagacidades pra me enganar: ela me mostrava mesmo a carta fechada, selada, carimbada, e prometia que ia postá-la no dia seguinte. Claro que só podia ser verdade.

Noel era um ferrenho moralista, um juiz severo. Eu tinha que garantir a ele, em minha comunicação epistolar, que havia me comportado mui cristãmente no decorrer do ano, havia feito quase todas as minhas lições de casa, não havia conversado ou faltado com o decoro nas aulas, não havia entrado em brigas sangrentas ou em duelos verbais com palavrório chulo, não havia tido desejos carnais sujos pelas garotas, havia respeitado papai e mamãe, havia feito todas as minhas orações noturnas com fé e devoção, e assim por diante. Papai Noel era uma versão primeva do padre confessor: a ele se devia confessar alguns pecadilhos, só pra dar verossimilhança (ele não acreditaria se eu de mim pintasse retrato puro demais), e enumerar as virtudes, provando o nosso mérito e o nosso merecimento da recompensa iminente.

Claro que parecia haver um furo nessa teoria que dizia que os presentes natalinos vinham na direta proporção de nosso mérito. Um precoce psicanalista dentro de mim já ficava achando que tudo era truque de chantagem moral da família. Esse negócio de que só ganharei presente se for bonzinho, ora! Isso tinha cara de coisa inventada por uma esperta mãe do passado e transmitida de geração em geração para controle da prole. E também era estranho - isso quem pensava era o comunista precoce dentro de mim - que o bom Noel distribuísse presentes com tanta injustiça. Havia aqueles que ganhavam os mais caros dos eletrodomésticos importados, enquanto os pobrezinhos dos favelados ganhavam carrinhos de plástico comprados na feira por 2 reais ou, quem sabe, achados no lixão. Como entender?

É uma dilema infantil, mas não deixa por isso de ser muito profundo. Pois uma vez admitida a existência de divindades transcendentais que trabalham moralmente em prol do Bem, surgem indícios no nosso mundo do aparente absurdo dessa crença. Só há então duas opções para conciliar a crença com os indícios objetivos contrários: primeira opção - Deus e Papai Noel, as divindades, são mesmo injustos e canalhas, dão muito a alguns, quase nada a outros, fazem de alguns milionários, deixam outros morrer de fome, e não há nada que as pessoas tenham feito para merecer sua sorte ou seu azar. Ou então, segunda opção, podia-se explicar que Deus e Papai Noel mantinham-se sempre bons, justos e generosos, mas que o problema estava no mérito das pessoas. Pois bem: para salvar Deus e Noel da acusação de serem maus, era preciso escolher essa segunda opção: eram os favelados que não mereciam. E que não me reprovem por filosofar com essas duas divindades tão “diferentes”! Na verdade, acho que Papai Noel e Deus são no fundo muito parecidos, seguidores de um mesmo credo, criaturas da mesma estirpe, da mesma raça, feitas do mesmíssimo material. Ambas divindades seguiam o preceito ético de que deve-se dar a cada um de acordo com o que merecem. Novamente, a Razão tudo explica! Ufa! Vivemos num Cosmos ordenado e harmonioso, no melhor dos mundos possíveis, e tudo está bem! Os pobres são pobres porque merecem. Judeus foram assados em fornos crematórios porque mereceram. Ah, quão doce era crer em Deus e em Papai Noel! Nada devia ser mudado; tudo estava certo. Para salvar as divindades, era preciso condenar os homens. Talvez em virtude de um raciocínio parecido eu chegaria à conclusão, depois de ter virado um ateu, de que crer em Deus é de direita.

Mas pouco importava que os favelados sofressem as injustiças ou as fúrias de Noel - comigo tudo estava bem. Eu estava do lado daqueles que mereciam. Minha vontade de flagrar Noel, criatura tão grandiosa e mágica, na hora em que ele estaria entrando em casa, era sempre tentadora. Mas os adultos sempre tinham resposta pra tudo! Diziam que Papai Noel só entrava na casa da gente quando todo mundo estava dormindo, de maneira que, se eu tentasse ficar acordado por toda a madrugada, acabaria de mãos abanando. Eu não desistia. Achava que podia muito bem fechar os olhos e fingir que dormia, e assim que ouvisse barulhos estranhos pela casa poderia pular da cama e ir ver aquele semi-deus barbudo e avermelhado. Que visão gloriosa! Meus amigos arderiam de inveja quando eu lhes contasse a história! E depois a VEJA baixaria em casa - se não fosse o NEW YORK TIMES! - pra fazer reportagem de capa com o único garoto do mundo que havia visto Papai Noel. Mas dava mó medão. Vai que o cara tinha um radar que reconhecia quem dormia de verdade e quem tava fingindo... Vai que ele, percebendo-se flagrado, decidisse não me dar mais presente nenhum... Não, melhor mesmo dormir, deixar o Velho entrar secretamente. Ele deve ser muito tímido, não gosta de ser observado, não quer as glórias, faz generosidades e quer ficar anônimo, é mesmo do Bem.

“As noites serenas são as noites sem esperança”, dizia um velho poeta, e é por isso que as noites do vinte quatro eram sempre tão tumultuosas. A esperança dava insônia. A gente queria agarrar o Sol pela juba e puxá-lo logo para o mundo, que o maldito dia nascesse depressa, que o milagre se consumasse, que surgissem como que por magia os presentes debaixo da árvore de natal, iluminados pelo pisca-pisca e embrulhados em papel colorido. Era uma guerra pra cair no sono. Saber que sua casa irá ser invadida por uma divindade não ajuda muito a conquistar a tranquilidade necessária para os sonos angelicais. E era aquele virar-se e revirar-se na cama, aquelas contorções todas, aqueles suores, aquelas raivas impacientes, aquele monte de carneirinhos pulando cercas (até que a gente começasse a suspeitar que os adultos haviam contado uma baita duma lorota ao dizer que contar carneiros servia para algo), e seguia-se assim até que o cansaço enfim vencesse e tudo se apagasse, só pra se acender de novo numa manhã especial, cheia de maravilhamento pelo milagre, cheia de prazer pela posse dos objetos dos desejos, cheia de encantamento delirante...

Oh sim.

Hoje as manhãs do 25, e as noites do 24, são bestas. Já não me importo com Jesus Cristo e não estou certo de que seu nascimento, se aconteceu mesmo no mundo objetivo e não somente na mente dos homens, foi semente de tantos bens assim. Esses entusiasmos natalinos só me chateiam. E o chato que sou vê no Natal não um espetáculo lindo e transcendental, mas sim uma prova a mais de que a humanidade finalmente enlouqueceu, se é que alguma vez esteve sã...

Ainda bem que restam essas memórias pra colocar um pouco de doçura no meio de tanta bestice!