quarta-feira, 6 de abril de 2005

< contito >

(O que se segue é um continho escrito para a edição comemorativa do zine KAOS. A recomendação do chefe Giacomo era: máximo de 2500 caracteres e tema central "aniversário". Não sou tão fã desse texto - acho que comparar a morte com o apagamento de uma vela ou de uma chama é algo pra lá de batido e, no fundo, um lugar-comum poético que seria preferível ter evitado -, mas não acho q esteja tão mal assim pra que eu o mantenha escondido ou que o lance às chamas... É mais um daqueles textos meus (ah, são tantos...) com uma alta dose de melancolia, que se explica um pouco por ter escrito na época em que a minha avó tava ali no corredor da morte, quase caindo no buraco... Mas aqui e acolá, dentro do texto, fiz algumas tentativas (não sei se felizes ou não...) de contrabalançar a gravidade do assunto com um tantinho de humor... Sei lá se isso presta ou se é uma grande bobagem, mas, enfim, tá aí... Ah, e qualquer coincidência entre o nome da velhinha protagonista e o célebre apelido desse escriba que vos fala NÃO é mera coincidência. É tipo auto-ironia... sacaram?)

SOBRE VELINHAS E VELHINHAS


“Mas que velha mais chata!”, cuspia com raiva o pai, enojado com a lembrança de sua sogra. Dentro do carro que se afastava da casa da avó, onde a família havia se reunido para a celebração do 80º aniversário de Dona Lúcia, era unânime a aderência de todos à opinião paterna. A velha havia sido mesmo muito desagradável durante todo o dia, recebendo os presentes com indiferença, se recusando a dar amostras de alegria, permanecendo com o semblante carrancudo na hora das fotografias. E na hora de apagar as velinhas, então? Que atitude mais reprovável e pouco simpática havia sido aquela de se negar a seguir um cerimonial consagrado pela tradição há séculos! Como pode haver um verdadeiro aniversário sem o glorioso assopro, a esperançosa fézinha nos desejos secretos? Mas não houve mesmo maneira para convencer a velha a extinguir os mini-fogos. Ela foi logo se esquivando, sob o pretexto de ir ao banheiro, e enterrou-se no sanitário por longos dez minutos, deixando os fogos brilhando sobre o bolo sem presentear a platéia com o espetáculo de sua extinção. Ninguém a compreendeu. O tio, muito bem humorado, tentou tornar o ambiente mais leve ao lembrar a todos, em tom brincalhão, que as moléstias intestinais atacam os humanos nos momentos mais inesperados, e que não se devia reprovar a avó por ser solicitada fora de hora por suas necessidades fisiológicas. A explicação pareceu agradar a todos, que enfim se tranqüilizaram ao descobrir as verdadeiras razões para o comportamento extravagante de Dona Lúcia. Mas os olhos marejados da avó ao sair de seu refúgio, angustiando a vista de todos com sua vermelhidão, tornaram os presentes novamente perplexos. Será possível que alguém ouse chorar em seu aniversário? O tio, que pensou na possibilidade de prosseguir aferrado à sua teoria, explicando o fenômeno lacrimal a partir dos sofrimentos da diarréia, logo notou o quanto isso seria ridículo. Os adultos, resolvidos a deixar a velha em paz com suas esquisitices, trataram de continuar seus papos alegres sobre seus trabalhos, suas famílias, suas incríveis realizações, seus sonhos radiantes; vez ou outra, passando os olhos por Dona Lúcia, sentada sozinha num canto da sala, melancólica, comentavam baixinho: “A véia pirou de vez!”. Alheia a tudo, a avó se recolhia em si mesma, protegida em um casulo, e olhava com horror tudo que se desenrolava no palco do mundo instantes antes de ser convidada a se retirar. Pesavam sobre ela os olhares de incompreensão e ela preferia nada explicar, temendo que suas palavras seriam como estiletes rasgando a carne de um dia feliz. Como explicar a todas aquelas pessoas, grávidas de futuro, que ela não via muita coisa à sua frente a não ser uma escuridão? Sentia que cada ano completado, de agora em diante, era como um empurrão brutal que a obrigava a dar um passo irrevogável em direção ao buraco. O que pedir às velas quando não se tem mais tempo de se esperar pelas benfeitorias cósmicas? Que grandes desejos irrealizados consagrar ao trabalho das forças invisíveis, se o desejo fundamental de não se desintegrar, de não apodrecer, não poderia nunca ser satisfeito? E, somando mais tristeza ao que já era melancolia pesada, a avó notava claramente quão inútil havia sido sua recusa em apagar as chamas. Ao lado do bolo já devorado repousavam as velas apagadas, naturalmente consumidas após seu curto período de incêndio. (Agosto/2004)