terça-feira, 19 de abril de 2005



Simpaticíssimo esse Terra Papagalli, “narração para preguiçosos leitores da luxuriosa, irada, soberba, invejável, cobiçada e gulosa história do Primeiro Rei do Brasil”. Livrinho muito bem escrito, de fluência líquida, divertido e anárquico, cheio de filosofagens irônicas e espertinhas. O livro dos jornalistas José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta narra a história de sete portugas que são enfiados numa das 13 naus de Pedro Álvares Cabral e partem em direção às Índias, acabando por trombar com uma terra estranha lá pro fim de abril de 1.500. A nêgada é largada no que se supunha ser uma pequena ilha no caminho pras Índias e tratam de se entender com os selvagens daquela terra e seus costumes muito estranhos às tradições cristãs lusitanas. Se habituam rapidamente aos costumes dos nativos: andar pelado, comer carne humana, ter dezenas de esposas. Não demora pra começar a rolar as tretas entre os portugas pelo domínio das terras, além das tretas entre diferentes tribos nativas, e logo começa o comércio dos prisioneiros de guerra como escravos para as naus das nações estrangeiras. O resumex é esse, mas tem muito mais coisa boa no recheio. O certo é que se os professores do futuro souberem utilizar Terra Papagalli como um instrumento pedagógico, o martírio dos alunos de História do Brasil será sensivelmente diminuído.

TRECHOS DE T E R R A P A P A G A L L I :

“...pouco pode o homem contra o apetite de sua cobiça, pois, se nada tem, dá graças a Deus por umas migalhas de pão; porém, se tem as migalhas, passa a desejar também uma sardinha frita; então, se ganha a sardinha, isto já não lhe basta e ele quer agora um belo bacalhau cozido e, se Deus é servido de lhe dar o bacalhau, passa a achar isso pouco e sua barriga não se contentará com menos do que uma baleia temperada com o melhor dos azeites.” (9)

“Ia dizer eu alguma coisa, mas assustei-me com um verme esbranquiçado andando no meu biscoito. Antes que o jogasse ao mar, porém, Lopo de Pina de pronto o pegou e comeu. Em seguida, ainda de boca cheia, falou que todo o mistério do homem é que ele precisa comer, pois, se não come, morre, e morrendo, é ele quem vira comida. Então perguntei: ‘Queres dizer que é melhor estar com vermes na barriga do que estar na barriga dos vermes?” E ele respondeu: ‘Isso é o mundo, meu Bacharel: quem não come é comido.” (37)

“Como os gentios e os castelhanos queriam continuar com aquele comércio, o único empecilho era minha consciência, que dizia ser a venda de escravos contrária à religião, mas até as consciências rendem-se aos argumentos bem armados e, naqueles dias, dois deles alistaram-se em minha cabeça, um fazendo as vezes de escudo, o outro, de espada. O primeiro foi que então nem mesmo o Papa sabia dizer se os gentios eram gente como nós ou animais feito os papagaios e, como não há mal em vender papagaios, dei-me por absolvido. O segundo foi que, vendendo os prisioneiros, dava-lhes a chance de conhecer a Europa e a fé cristã, destino melhor que a barriga de seus inimigos.” (103)

“...desde pequeno reparei que as idéias se parecem com os animais. Disso segue que, além das idéias-mosquito, há as idéias-boi, que ficam ruminando em nossa cabeça, apenas engordando lentamente; as idéias-cobra, que nos enlaçam e não nos libertam jamais; as idéias-borboleta, que vêm suavemente sem que percebamos e vão sem que notemos; as idéias-piolho, que são pequenas mas estão sempre em nossa cabeça; as idéias-mula, que empacam e não conseguimos fazer que andem para a frente, e finalmente as idéias-tigre, que nos mordem e nos rasgam até ficarem saciadas de sangue.” (165)

“...o homem é um ser tão cheio de si que seus instantes mais felizes são justamente aqueles em que expele algo, e, além do vomitar, são estes momentos o cagar, o mijar, o ejacular, o peidar e o arrotar, e tanto isto é verdade que não há quem, depois de um destes momentos, não sinta uma grande placidez e uma profunda serenidade.” (172)

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