segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

COFRES E BOLHAS DE SABÃO

Às vezes acho que a única coisa que eu sei fazer bem na vida é sonhar; para todas as outras costumo ser um completo incompetente. A vida inteira às vezes me parece uma sala de espera chatíssima, uma espécie de limbo misterioso que a gente não sabe se é a ante-sala do inferno ou do céu, onde eu fico sentado, a bunda já quase quadrada, a paciência já quase esgotada, aguardando sem fim por algo que parece que nunca vem, que parece sempre fora de alcance, que talvez (e isso é o mais terrível) nem exista... É como se eu tivesse sempre vivido achando que a vida ainda não começou, esperando que comece e com medo de que nunca vá começar...”A verdadeira vida está ausente”, dizia o poeta. Frase que só um sonhador seria capaz de escrever... Mas quem seria poeta sem ser sonhador?

Mal de sonhador: pôr muita fé no futuro. Ainda sofro desse mal: acreditar que meus amanhãs serão mais doces do que são meus hojes e do que foram meus ontens... A pomada que passo em todas as minhas feridas e vazios se chama “um dia...”, e é assim que eu me faço uma canção de ninar para as noites de tormento e de insônia: “calma, amigo, um dia tudo estará bem, um dia você será feliz, um dia será amado, um dia vai entender a vida e o universo, um dia...” Ainda não me curei da doença que é ter esperanças. E me sinto idiota como quem espera um trem que pode ser que nunca vá chegar...

E eu já devia ter aprendido com a experiência. A maré do futuro nunca traz em ondas os meus sonhos, prontos e feitos, depositando tudo aos meus pés, prontos para consumir, como um presente do Destino... Não, eles ficam sempre no horizonte... E meu olhar fica lá, perdido, à espera de um barco que nunca aporta e que está longe demais para que eu aguente alcançá-lo a nado...

Acho que não há nenhuma força, entidade ou criatura no Universo empenhada em me fazer feliz e me dar de mão beijada o que desejo... Em dias assim eu entendo o que é “a terna indiferença do mundo”, que atormentava o Camus, ou o horrível “silêncio dos espaços infinitos” que deixava Pascal com calafrios... Minha felicidade é uma coisa que eu, sozinho, tenho que conquistar. E às vezes desanimo: é difícil demais vencer uma guerra com um exército de um homem só...

Talvez eu esteja perdido, não sei ao certo... estou tão perdido que nem sei dizer se estou perdido ou não. O que Agostinho dizia sobre o tempo eu digo sobre mim: se não me perguntam quem eu sou, eu sei; mas se me perguntam, já não sei mais... “Quem sou eu?” é uma pergunta que só consigo responder sem formular a pergunta. Respondo simplesmente existindo.

Acho que caí numa grande confusão, numa espécie de “crise de identidade”, ao ser “acusado” de não estar sendo eu mesmo, eu que gostava de pensar, talvez iludido, que sempre tinha sido sincero... e, por mil diabos, quem mais eu poderia estar sendo senão eu mesmo? Mas pensei comigo, sim, talvez ela tivesse razão e fosse mesmo verdade: sou uma farsa, um fingidor, um dissimulado, um ator de mil papéis, alguém sempre submisso, sempre tentando agradar os outros, sem vida própria... E hoje acho que entendo, com uma clareza que eu nunca tive antes, o quanto fui ridículo ao tentar ser “eu mesmo” porque (e o problema está nesse porquê...) me tinham pedido, solicitado, sugerido...

Aceitei o desafio: vou tentar me tornar eu mesmo... mas foi pelas razões erradas. Quis me tornar “eu mesmo” porque assim me pediram, porque era esse o desejo de alguém, porque ainda queria ser o que querem que eu seja... Agora percebo como fui tolo. Mais ou menos como o empregado explorado que recebe do patrão a ordem: “vá lá fora e declare liberdade!”, e que vai, obediente, e diz: “conforme solicitado por meu patrão, me proclamo livre!” Mas que diabo de liberdade é essa, José, que não passa do obecedimento de uma ordem recebida? E como eu fui parecido, querendo ser “eu mesmo” para agradar alguém, sem perceber que nós deixamos de ser nós mesmos justamente quando fingimos ser aquilo que pensamos que vai agradar alguém...

Nesse esforço para tentar ser eu mesmo acabei, é claro, sendo completamente falso; porque para ser si mesmo a coisa que mais estraga é justamente o esforço que se faz para ser algo... Se eu já sou o que sou, por que precisaria fazer qualquer esforço? Bastaria relaxar e me deixar ser... se eu pudesse. Mas não pude. Tentei ser natural, sem perceber que tentar ser natural já é ser artificial; me esforcei para ser espontâneo, só para descobrir que se esforçar já é carecer de espontaneidade; quis ser eu mesmo, só para descobrir que continuava seguindo ordens de fora, que o fazia só para agradar alguém, que tinha sido coagido, ainda escravo do meu desejo de ser o que os outros querem que eu seja, ou do que acho que querem, ou do que suponho que pudesse fazer com que me gostassem, ou... Sim, acho que estou perdido.

Óbvio que fui tolo, como sempre fui, como sempre serei... Posso ter lido um ou outro livro, aprendido um outro truque, decorado umas dúzias de palavras bonitas, mas querem a verdade? Não sei muita coisa. Não sei muita coisa sobre nada. E eu, que estou vivendo pela primeira vez, não consigo não aprontar das minhas trapalhadas e acabo machucando um ou outro companheiro de viagem, sem querer, com o meu desengonço... Sinto vontade de pedir perdão. Por quê? Nem sei ao certo. Perdão por existir.

E agora, não sei porque, estou como que vivendo dentro de um pesadelo, mas acordado e sem poder despertar dele.
E nesse pesadelo real, que acontece dentro de mim, eu estou sendo condenado por um crime qualquer, que nem sei direito qual foi, mas que tenho a vaga impressão de ter mesmo cometido... se é que foi mesmo um crime ou um pecado, algo assim tão grave e sério, e não um mero erro, uma falha, um deslize. Não sei onde errei, mas tenho a impressão de ter errado. E tenho ainda a sensação de que nesse tribunal, onde sou julgado tão sem compreensão, onde a ternura parece ter sido banida na entrada, onde o perdão parece impossível, onde todos os vereditos parecem sumários, onde não há possibilidade de apelação, sinto que todos aqueles que têm certezas sobre mim se enganam, e se enganam feio... Assim que escrevem à caneta minha condenação em seus documentos, e assim que chegam à conclusão final sobre quem eu sou de verdade, já me perderam. Assim que piso meu primeiro passo fora do tribunal, já não sou mais a pessoa que eu era e aquilo que eles condenam, no máximo, é alguma pessoa que já fui, às vezes nem isso...

Se nem eu que sou-me sei ao certo quem eu sou, como é que alguém se atreve a ter certezas - e certezas duradouras! - sobre quem eu seria? Eu, que sou movediço feito correnteza, inconstante como o mar, ator de mil personagens e mil máscaras, sou fácil assim de agarrar, de definir, de esgotar? Não sou agora a mesma pessoa que eu era ao começar esse texto; ao terminá-lo, já não serei a mesma pessoa que o escreveu. A cada momento sou um eu diferente. Gosto de pensar nos meus eus como uma sucessão de bolhas de sabão. Quando acabar minha vida, terei sido milhares... E ainda querem que eu saiba quem sou? E ainda há gente que pretenda saber melhor do que eu? Sinto vontade de mandar pro inferno todos que pensam me conhecer.

Prefiro que a pergunta “quem sou eu?” permaneça sempre, para mim e para todos, uma questão em aberto. As pessoas que pensam que sabem quem eu sou me parecem com tontos que querem trancar uma bolha de sabão dentro de um cofre, pensando que a terão para sempre...

Ou então essa: são como aquelas pessoas que tiram uma foto de um rio imaginando que, só porque agora eles têm uma imagem estática dele, ele parou de correr. E, aliás, uma foto de um rio só exibe a superfície: há quilômetros e quilômetros de profundidade que o olho não vê. E as pessoas ficam olhando fotos do rio que sou e pensando que parei de fluir... Ficam olhando a superfície e se esquecem que há todo um universo ali debaixo...

Sinto minha alma cansada, como se tivesse corrido uma maratona olímpica só para descobrir, na linha de chegada, que a corrida tinha sido cancelada e que não há prêmio algum, recompensa alguma, para todo o meu esforço... Um cansaço tão grande que me desespero de dormir, porque sei que dormir não seria o bastante para me descansar... Tão cansado que sinto saudade de não existir. Estou morrendo de vergonha de alguma coisa que nem sei bem o que é, de algum crime que nem sei se cometi, como um homem que se sente nu mesmo estando completamente vestido; estou me sentindo como um criminoso com amnésia, que sente vontade de pedir um perdão imenso por alguma coisa de muito errado que fez mas não se lembra o que foi; meio que afudando na melancolia e querendo me torturar com as palavras mais cruéis: pois é, talvez não haja mesmo cura para esse estrupício inamável que eu tenho a infelicidade de ser...

E eu, sem documentos que me digam quem sou de verdade, preso nessa sala de espera interminável que se chama mundo, condenado nos tribunais a ser registrado como aquilo que eu sinto não ser, vendo meus eus nascendo e morrendo como bolhas de sabão que surgem só para explodir, fico com os olhos fixos num futuro que não cessa de chegar e não pára de decepcionar... Fingindo que isso é viver. E sem nada que me console a não ser esse punhado de frases pretensiosas e má poesia.

Enquanto isso, o vazio por dentro, velho companheiro, me diz, para o meu desespero, que continuo doente. E pior: doente de uma doença que nenhum médico tem remédio para receitar, já que aquilo que eu preciso não se compra, não se acha numa pílula, não se despeja na boca com conta gotas... Ah não! O que eu preciso, meu velho amigo vazio bem o sabe, não vou achar num consultório médico, num divã de analista ou num hospital psiquiátrico... E eu me pergunto, quase gritando, quase chorando, quase rebelde, ah, senhores cientistas de tantas invenções maravilhosas, me digam:

Quando é que o amor vai começar a ser vendido na farmácia?