segunda-feira, 9 de julho de 2007

HISTÓRIA DE UMA FOLHA EM BRANCO


”Tens um inimigo? Deseja-lhe uma paixão.”
(Hilda Hilst)


Por incontáveis minutos ele fica olhando, com desespero crescente, para a folha em branco à sua frente, incapaz de começar a espalhar nela o encanto de suas palavras. É como uma maré alta de cansaço que sobe e inunda sua praia, um cansaço mortal que não mora no corpo – pois que montanhas escalou? que maratonas correu? que olimpíadas disputou?! Um observador externo não saberia dizer – só ele, que acompanhou de perto as odisséias de sua própria alma, saberia explicar o porquê de se sentir como se tivesse andado mais quilômetros do que a distância entre a Terra e o Sol. E então, como um carro que se percebe resfolegando sem gasolina, ele se sente com vontade de parar no acostamento e ficar ali, quieto e imóvel, no meio do caminho, desistindo da dura viagem... Agora que caiu o derradeiro “pois é, não deu...”, o coração só quer descansar...

Como um super-herói que começa a desconfiar de seus super-poderes e que de repente perde a habilidade de decolar e voar, de quebrar paredes ou lançar teias de aranha, ele perde a confiança em seu valor e seu talento, e agora hesita, como se soubesse de antemão que tudo que pudesse escrever seria pouco, sairia feio, condenaria ao fracasso... Em outras ocasiões, usava a escrita como uma espécie de tubo que enfiava na alma para drenar para fora todo o lixo. Feito um aspirador de pó. E quanto pó nesta alma, deus meu! Quanto pó! Nunca entendeu como as pessoas achavam que só era preciso dar banhos no corpo, quando ele sentia que, muito mais importante, era fazer uma corriqueira faxina na alma! E pra isso nada melhor conhecia do que escrever loucamente, com pressa, sem travas, deixando a caneta deslizar sobre o papel livremente, as palavras nascendo num jorro veloz, a sujeira saindo em forma de palavra, negra, viscosa, por todos os poros, chovendo pra fora numa tempestade...

Não precisava nem parar para julgar se estava bom, para censurar e rasurar, para se preocupar com o que pensariam os leitores: somente escrevia. Como quem vomita. Como quem enfia o dedo na garganta do próprio coração. Como quem se exorciza, lançando fora os demônios... Depois, se ficasse ruim, podia muito bem esconder do mundo a porcariada que tinha cometido, lançar a folha no lixo ou no fogo, escondê-la no fundo da gaveta ou da HD, depois que havia servido para o mais importante... Pois o que importava, de verdade, era unicamente ter se livrado do peso daquilo que ficava ali dentro, trancafiado; aquilo que ele precisava contar para alguém, com a necessidade que outros tem por oxigênio para respirar, mesmo que fosse só para uma folha de papel... Se não contasse? Explodiria.

Agora o brancor da folha se ergue à sua frente. É como se tivesse surgido de repente um bloqueio no meio da estrada e ele desse de nariz contra um muro de vidro – invisível, incontornável, inquebrável, impulável muro... Ele olha para a folha e é como se ela fosse uma cidade protegida por imensos portões de aço: nela ele não consegue entrar.

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Por quê? Porque agora era diferente: não escrevia somente para se desafogar de seus excessos, para se desabafar do que pesava, para tornar mais leve o seu fardo... Agora ele escrevia com a mente loooonge, focalizando sem parar a imagem de uma pessoa distante, desesperadamente tentando encontrar o jeito de, finalmente, depois de tantas tentativas fracassadas, de tantas palavras doces, de tantos elogios deslumbrantes, todos tão vãos..., achar o jeito e o segredo para que ela, a única leitora que ele agora tinha como alvo, a única leitora que importava em todo o mundo, o único coração que lhe interessava tocar, enfim pudesse...

Mais uma tentativa? Mas dizer o quê, agora? Já havia dito, com toda a simplicidade, brincando sobre a sinceridade (e não sabias tu que verdade em excesso é um erro, amigo?), tudo o que queria dizer. Tinha tentado de tudo, todas as técnicas, todos os estilos, todas as chaves, todos os modos de sedução, todas as súplicas, todas as chantagens. Tudo. Tinha dito o que sentia, escancarando o coração, mesmo se sentindo uma criatura sem nenhuma originalidade, um clichê ambulante, encarnação do sentimenlóidismo: “te amo”, “preciso de você”, “me dá uma chance...” Nem se importou com o fato de que, fazendo isso, ficava parecendo o personagem de alguma péssima novela melada da TV, daquelas que tanto desprezava, ou com um horroroso compositor de pops românticos, daqueles que tanto odiava... Mas vai ver que ele era mesmo só isso, só mais um zézinho como qualquer outro, dono de um coração igual ao de qualquer um, nota zero no quesito originalidade... Um coração idiota e analfabeto, que só sabia fazer soar sempre a mesma nota, feito piano de uma única tecla: “te amo, preciso de você...” Sim, vai ver que sim...

E debruçado sobre a folha, ele se põe a procurar modos poéticos e grandiosos de dizer a mesma coisa que já disse a ela tantas vezes, e que disse tão em vão... e é aí que trava. Trava como um bebê que ainda não formou um vocabulário muito grande e que cismou em dizer só “tetê”, “mamã” e “pápá”. Tudo o que seu coraçãozinho consegue balbuciar ao seus ouvidos é o velho “eu te amo, preciso de você...” E isso não merece ir para o papel. Até porque já foi dito antes, e muitas vezes, e sempre em vão... Tudo que lhe ocorre é a idéia de suplicar – mas por que suplicar de novo, quando antes já tinha feito o mesmo, sem sucesso, sem resposta, sem ganho? Até mesmo os mendigos se cansam, às vezes, e preferem morrer de fome a continuarem a bater em portas que não se abrem, a falar com ouvidos que não escutam, a pedir sempre para mãos que nunca se estendem...

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A brancura da folha teima em existir e ele fica ali, perdido frente a essa inimiga muda, se torturando, remexendo seus miolos, numa procura interna louca... Vai andando dentro de si mesmo, entrando em todos os becos e tocas de sua alma, em busca do tesouro escondido: aquelas frases mágicas, irresistíveis e magnéticas que ela seria incapaz de ler sem se sentir comovida, tocada, conquistada... Vasculha o Universo dentro do seu crânio em busca de algo que, dito direto pra ela, fosse servir como uma chave-mestra que abriria todas as portas e todos os cadeados, que venceria as barreiras e a distância, que traria abaixo todos os medos, que faria com que ela, ao ler aqueles garranchos no papel, pensasse – finalmente! - com o maior amor desse mundo na pessoa que as tinha escrito... Palavras que, entrando sorrateiras pelos olhos dela, fluiriam rio abaixo, como espiãs mandadas em missão secreta, direto para o coração, e nele acenderiam uma enorme fogueira... Mas, ó dilema!, o quê diabos escrever agora, depois de tanto ter tentado e tanto ter fracassado? Que palavras tirar do imenso oceano do dicionário, e de que jeito ajuntá-las, para que conseguisse pôr em chamas aquele coração tão desejado?...

Foi assim que ele descobriu o que significa ter uma “musa inspiradora”. Por momentos se sente unido por laços invisíveis com uma legião de poetas mortos. Ele os imagina presos em seus quartos, endoidecendo de solidão, com o coração a imaginar sem parar a figura da amada, e pensa que talvez eles todos, poetas de tanto renome, que gostavam de fingir ter intenções muito elevadas e nobres, talvez tivessem criado tanta beleza simplesmente porque gostavam de uma certa garota e queriam conquistá-la... Sim! Era só isso. Achou divertida sua ousadia ao derrubar tão grandes poetas de seus pedestais ao descobrir o segredo: eles só queriam ser amados... E pensou também: como diz uma imensa bobagem aquele que afirma que as mulheres deram pouca contribuição à história da poesia universal! Que poesia existiria sem as mulheres, sem o nosso desejo por elas, sem que, tentando agradá-las, nós homens, quase sempre tão brutos e grosseiros, nos esforçássemos por refinar nossa sensibilidade, demonstrar um pouco de ternura e de doçura, pingar mel em nossas almas cheias de fel?...

Pensou consigo mesmo, sarcástico: “Não é que os poetas do passado fossem supersticiosos a ponto de se crerem inspirados por criaturas de outro mundo e de outra natureza, semi-deusas baixadas à Terra, que chamavam de suas Musas... Não! A verdade era bem menos nobre: as musas não passavam de objetos do desejo. Muitos desses chamados “poetas românticos” escreviam tentando conquistar aquela garota que se imaginavam, que se idealizavam e que, talvez, no fundo, não existia em lugar algum a não ser em suas fantasias. E só isso explica a enormidade da melancolia presente em tantos deles... A musa é uma deusa mental diante da qual nos ajoelhamos para ofertar nossas produções e receber, se der, a aprovação... Talvez se iludam, pobres poetas, pensando que os ídolos existem lá fora, que a amada idolatrada está de fato no mundo, que existe de fato uma pessoa real que corresponda ao sonho (não existe, amigo! não existe...), sem perceber que somos nós que criamos nossos ídolos, e eles permanecem dentro de nós, presos dentro do nosso coração e nossa imaginação, imagens onde focalizamos o nosso desejo, ilhas em direção às quais navegamos, sem nunca alcançá-las...”


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Mas essas digressões ficam todas encerradas dentro de sua cabeça. Nesse exato momento, ele não está nem um pouco interessado em registrar no papel pensamentos interessantes e filosofagens espertinhas: está ocupado demais pensando em sua musa, e acreditando que ela existe, e que é conquistável, talvez... Tudo que lhe importa é ela; achar as palavras para ganhá-la; achar o segredo para entrar naquele coração que havia lhe fechado as portas... A folha? Ainda em branco. E ele se debate em vão tentando encontrar as frases que – quem sabe... - iriam despertar o amor dela, aparentemente tão indespertável quanto um urso na mais profunda das hibernações...

Aflito e desesperançado, larga a caneta sobre a mesa e descansa o rosto sobre a folha vazia, tomado pela sensação horrível de ser o maior dos perdedores: como aquele que, numa corrida de atletismo, fica congelado pelo tiro de largada e, pior que chegar em último lugar, nem começa a correr. Se xinga por dentro e diz a si mesmo que nunca vai conseguir escrever nada tão bonito e comovedor quanto os grandes poetas do passado; que simplesmente não nasceu com o talento necessário; que não manja nada de sonetos, de redondilhas e de rimas; que suas metáforas saem sempre ridículas e forçadas; e que o coração que lhe foi dado, é o que ele sente, não é de tão boa qualidade: e o amor que ele tem a oferecer, ao que parece, é uma merreca que não interessa, algo de imprestável e inútil, uma secreção nojenta, como um catarro do coração ou um vômito da alma: ela não quer, nunca quis, nunca vai querer! Não... ela não quer...

Palavras, palavras... Também elas ele começa a odiar, como se tivessem prometido muito e nada tivesse sido entregue. Se acha ridículo por ter acreditado tanto no poder desses bobos ajuntamentos de letras – tão inúteis! Tão malditamente inúteis! Afinal, quem é que hoje é tolo de tentar seduzir com palavras, ao invés de usar os olhares, os sorrisos, as carícias?... Se tentasse escrever algo muito bonito, sabia que a coisa soaria horrivelmente pretensiosa e ela descobriria de cara, logo nas primeiras linhas, que ele não passava de uma farsa, um tolo fingindo ser grande, um zé-ninguém com a ridícula ambição de ser alguém... E ela saberia que não haveria ali nenhuma beleza verdadeira e que ele estava somente disfarçando, com a máscara de palavras estranhas e metáforas complicadas, a simplicidade do que ele queria dizer: “te amo, preciso de você, quero que você goste de mim...” Algo já dito, e já dito em vão... E agora o quê?!

“Não, não sou ninguém, não adianta...”, resmunga consigo mesmo, enquanto fecha o caderno com a raiva daqueles que sentem que não nasceram com o dom. “Não adianta, ela não gosta de mim e eu não há nada que eu possa fazer!” Com a tristeza daqueles que desejam, impotentes, aquilo que já não tem idéia de como conquistar, ele se entrega ao choro – ao choro ridículo que só faz com que ele se despreze ainda mais.

A folha fica em branco – nela nem sequer um registro do combate de horas que ele acabou de travar consigo mesmo. A folha em branco: testemunha sem palavras de uma derrota, um fracasso, uma desistência. O que era para ser uma especialíssima carta de amor, aquela que enfim ganharia o coração dela, o fósforo acendedor da fogueira, acaba não sendo nada além de um vazio. Um vazio que ecoa o vazio da madrugada lá fora, o vazio no seu peito, o vazio de tudo... Ele vai dormir e começa a se desesperar com a perspectiva de ter que continuar, por ainda mais um tempo, a conviver, não só com o silêncio que habita aquela folha, mas também com aquela angústia roedora por dentro, sua velha inquilina, que a carta não soube dissipar, pela amada que não soube conquistar... E dorme então, mais uma vez (e até quando, por Deus!?), o sono atormentado e cheio de pesadelos daqueles que não sabem o caminho para o amor.