sábado, 28 de julho de 2007

:: especial JORGE FURTADO ::


O que mais me impressiona no cinema do Jorge Furtado é o modo como ele consegue fazer filmes ultra pop, capazes de agradar às multidões (que, digamos a verdade, costumam ter um mau-gosto terrível...), mas que têm sempre muita consistência e interesse para quem procura algo mais que mera diversão. É incrível como os filmes funcionam muito bem num nível superficial, como mero entretenimento curtível e divertido (qualquer pré-adolescente, adulto analfabeto ou tias-avós assistidoras de novelinhas do SBT conseguem acompanhar o enredo, “entender” tudo o que vêem e se divertir à beça), mas o fato de serem super acessíveis e populares não impede que as obras tenham muita “substância” por trás, podendo ser aprovadas com louvor num julgamento crítico mais severo. Jorge Furtado é um dos raros casos de artista (os Beatles sendo o exemplo supremo) que consegue atingir a aclamação popular e a aprovação crítica ao mesmo tempo - sem precisar soar vulgar, boçal ou de mau-gosto para agradar às multidões, nem tentando soar “cabeça”, "vanguardista" ou pretensioso para agradar aos críticos e à intelectualidade... Baita realização!

O Homem Que Copiava, o primeiro longa-metragem clássico do gaúcho e um dos melhores e mais adoráveis filmes nacionais da década, prova isso muito bem. O filme de Furtado dialoga um pouco com o clássicão do Hitchcock, o Janela Indiscreta, mostrando (se bem que com mais humor do que suspense...) o voyeurismo obsessivo que é o efeito do amor platônico de André. Mas ele é também o mais próximo filmito brazuca a merecer o título de nosso Amélie Poulain - a odisséia de André na conquista de sua guria Sílvia não lembra todos os bonitinhos esforços que a francesinha encarnada por Andrey Tatou fez no empenho para conquistar o seu mocinho (o Mathieu Kassovitz) no filme do Jeunet?

A princípio parece que O Homem Que Copiava é apenas uma comédia romântica, levinha e deliciosa, injetada de citações pop e “links”.
Poucos filmes são mais bacanas na descrição duma platonice urbana. Sempre achei super bonitinho o jeito como ele vai lentamente descobrindo detalhes sobre o quarto dela, de acordo com o jeito que o espelho do armário parava aberto – vendo um ursinho de pelúcia em um dia, um abajur sobre o criado-mudo em outro, uma joaninha vermelha mais pra frente... É engraçado (e tão real!) o jeito como ele inventa qualquer pretexto para se aproximar dela (mesmo que seja mentir sobre o aniversário da mãe e prometer comprar um chambre com um dinheiro que não tem); o jeito como ele guarda como uma pérola as coisinhas mais minúsculas que acontecem entre eles (um “Magina, brigada você!” virando quase um fetiche...), a maneira como ele parece super inocente ao dar um presente pra lá de interesseiro para ela (uma cortina semi-transparente que vai permitir uma espionagem muito mais completa!) - mais ou menos como fazia o Homer dando para a Marge bolas de boliche como presente de aniversário... Os momentos mais doces do filme se dão nos diálogos dos dois semi-desconhecidos que, constrangidos e sem graça, acabam soando como duas criancinhas tímidas que ficam de paquera no pátio do colégio, no primário, sem saber ao certo como consumar o beijo que ambos tanto querem. As atuações de Lázaro Ramos e Leandra Leal trazem uma vivacidade sensacional para os personagens. Mas o filme é bem mais do quem uma comédia romântia - parece mais com uma vasta (e divertida...) crônica de comentário social.

André, o anti-herói tímido e simples que protagoniza O Homem Que Copiava, é um garoto como milhões de outros nesse Brasil: menino humilde condenado a trampar numa lida mecânica, que não exige dele muita inteligência e criatividade (“quantos neurônios o cara precisa ter para fazer uma merda dessas?”), que acaba todo mês com pouquíssima grana pra gastar (“pra comprar meu binóculo tive que economizar um ano”), sempre entrando em apuros ao chegar ao caixa do supermercado (“não, deixa a carne, é que eu preciso levar os fósforos...”). Claro que, vivendo assim na fossa, sempre alimentou certos sonhos de subir na vida – de preferência de foguete e não de escada...

Estão espalhados em vários personagens mil e um planos de veloz ascensão social. A Maria Inês de Luana Piovani, que é uma romântica bobalhona misturada com uma interesseira, espera casar-se com um ricão (“Pai pobre é destino... marido pobre é burrice!”); o Cardoso procura enriquecer mentindo sobre o valor de suas “antiguidades” (que muitas vezes não passam de sucata velha); o Feitosa faz pequenas fortunas vendendo maconha com orégano para os otários... Sempre o velho “jeitinho brasileiro” na tentativa de se virar no circo dos leões econômico...

André não é diferente. Como tantos milhões de garotos, ele sonhava em se tornar um craque do futebol enquanto empacotava no mercado, delirando com a imaginação das platéias em comemoração enquanto ele corria para comemorar os gols de placa (“mas sem o soquinho no ar do Pelé... só funcionava com ele, quando outro tenta fazer fica parecendo uma bichice!”). Tem também seus talentos artísticos (suas charges e histórias em quadrinho), mas batalha em vão para conseguir fazer disso algo realmente profissional. E aí, empacado num trampo meia-boca, não consegue evitar a tentação de imaginar pegar um atalho fácil para a riqueza através do crime. Afinal, do jeito que ia, depois de 10 anos só ia conseguir comprar uma caranga usada tosca – e aí o Diabinho interior vai e sussura: “melhor comprar uma arma!” e roubar um banco. Ou então, claro, pôr em prática uma idéia que muito menino de máquina de xerox já deve ter planejado: fazer cópias de dinheiro e subir na vida nas asas das cédulas falsas trocadas por grana verdadeira em alguma lotérica ingênua – considerando que “dinheiro é só um pedaço de papel que todo mundo acredita que vale alguma coisa (se ninguém acreditar, não vale nada!)”.

Não há nem sinal dum discursinho moralista que vá tentar nos convencer que o crime não compensa – não estamos em Hollywood e Furtado sabe muito bem que, no Brasil, muitas vezes, as maiores sacanagens acabam impunes e os corruptos, ao invés de pararem na cadeira, vão morar em mansões e palácios comprados com o dinheiro lavado em alguma conta da Suíça. Não deve ser por acaso que Jorge Furtado põe um outdoor com o Crime e Castigo de Dostoievski como pano de fundo para uma cena em que André espera um ônibus – O Homem Que Copiava não deixa de ser a saga de uma Ralkolnikóv tupiniquim.

Como fez Woody Allen em Crimes e Pecados, Jorge Furtado parece dizer que nem todo crime acaba tendo sua punição - caso dos crimes dos personagens de O Homem Que Copiava, que acabam, a certo momento do filme, devido a uma ironia do destino, detentores de uma imensa fortuna - da loteria e do assalto ao carro-forte. O problema é que a principal das objeções que se pode fazer ao happy end de Jorge Furtado é que ele quase nos leva a perguntar: ora bolas, quer dizer então que o dinheiro traz a felicidade e que o bem-estar material é algo pelo quê vale a pena roubar e matar? Ao vermos os personagens se deliciando com uma Mercedes ou uma noite na suíte de luxo do hotel cinco estrelas, pode ser essa a impressão que fica em muitos espectadores – e parece estranho ver espalhado pelo filme cenas que mostram uma orgia de alegria consumista... algo que não se esperava do cineasta que fez Ilha das Flores! A minha sensação, no entanto, é que André só complicou a sua própria vida ao faturar toda aquela dinheirama, e que talvez era feliz e não sabia nos tempos em que era um humilde operador de fotocopiadora, apaixonado pela guria do prédio da frente, paquerando pelas ruas de Porto Alegre, numa vidinha pacata e despretensiosa que, no fundo, não tinha nada de má.

Logo que fica milionário, torna-se alvo da inveja, da chantagem, dos aproveitadores profissionais que querem arrebatar dele um tequinho, ao menos, de sua fortuna. Ele se torna milionário mas aí seu ex-amigo vai lá e enfia um trabuco em sua cabeça pedindo uma parte da grana. Ele se torna milionário e aí o pai de Sílvia apela para a chantagem e exige alguns milhões para manter-se em silêncio. Ele se torna milionário e se vê na necessidade de matar a testemunha ocular do assalto, fugir de Porto Alegre, com a perspectiva de ter que viver meio que às escondidas por um bom tempo, sempre paranóico e preocupado... Sem falar que, com muita sutileza, o filme acaba mostrando o quanto o delírio consumista deles acaba não trazendo nenhuma satisfação verdadeira, mas só alguns prazeres efêmeros e frustrantes. Quando a Maria Inês de Luana Piovani vê pela primeira vez a Mercedes 0km, não é um “Uau, que demais, esse carro é o máximo!” o que ela solta – é um rabugento “Mas por que essa porra é prata e não preta?!” Típico ataque neurótico de grã-fino que cai em crises de depressão se não puder ter o carro do ano. E dizem que o dinheiro traz a felicidade! Certo estava o Bukowski, que dizia que “dinheiro, como sexo, parece mais importante quando a gente não tem”.

Mas também não há nada parecido com um discurso trieriano que quisesse demonstrar o quanto as pessoas acabam moralmente corrompidas pela ambição e pela ganância. Não é tão simples assim. Jorge Furtado consegue fazer com que nós sintamos total simpatia e alegre afeição por um grupo de personagens envolvidos com falsificação de cédulas, assalto à banco, baleamento de policiais, construção de bombas e homicidío por explosão... Afinal de contas, nenhum dos personagens, muito menos André, é “condenado” - nem pela justiça, nem pelo cineasta, nem pelos espectadores. Não conheço ninguém que, depois de ter visto o filme, dissesse que André e Sílvia mereciam se ferrar, ir pra cadeia e lá apodrecer... Eles são parecidos demais com a gente para que não role empatia e simpatia. E as ambições materiais deles, os sonhos de subir na vida, de se deleitar na lama do consumismo, são algo que compartilham com centenas de milhões de pessoas na Civilização Ocidental inteira. Condená-los seria condenar a nós mesmos.

Os sonhos de consumo e de glória que eles têm são sonhos comuns a milhões – e os personagens dos filmes, como 90% das pessoas desse mundo, acreditam de verdade que ser rico seria a solução para todos os problemas - ao contrário do dito, eles acreditam que o dinheiro compra sim a felicidade. Mesmo criminosos, eles não são descritos como “maus”, muito pelo contrário: André continua sendo um bom rapaz, simples, humilde, afável e simpático, mesmo depois do assalto e da explosão – e Jorge Furtado mostra que, no fundo, para André, o que mais importava, desde o começo, nem era tanto se tornar um ricão para poder ostentar por aí, para a inveja do mundo, seu novo “status” social. Desde o início, tudo o que ele queria era ter meios para impressionar a guria por quem estava apaixonado para que não ficasse parecendo um pé-rapado qualquer – o amor dela era o que ele mais queria conquistar; a ascensão social era um mero meio para um fim. Eis porque o verdadeiro happy end não está na fortuna que os personagens fazem, mas no amor correspondido que se consuma.

Eis porque me parece que, se há algum culpado por aí, só pode ser mesmo a velha Vovó Doutrina (sobrenome: Capitalismo), que à custa de tanto tagarelar nas orelhas dos Zés Caolhos (que somos todos nós...), acabou por nos convencer que a perseguição aos bens materiais é a nossa finalidade na Terra. É essa Vó Doutrina que transforma André, garoto simples e singelo, num criminoso – e é essa Vó Doutrina, posta em prática, que acaba parindo inferninhos terrenos como a Ilha das Flores (onde os seres humanos comem aquilo rejeitado pelos porcos...) e transformar “garotos do Bem” como ele em criminosos. Guilhotina, pois, para essa Vó Doutrina! Ou então, para quem não curte tais extremismos, óculos melhores para os Zés Caolhos que somos!