- N I E T Z S C H E -
Nietzsche é todo um universo, é uma fonte de deslumbramento, uma esfinge humana... Nessas milhares de páginas, tão brilhantes e desafiadoras, se mistura um poeta, um profeta e um pensador; se mesclam um sábio, um rebelde e um louco; se juntam a serenidade, o encanto, a angústia e a ira... Nietzsche é complexo, vulcânico, transbordante, cheio de nuances, contraditório às vezes, empolgante sempre - é um dos homens mais interessantes que já conheci (e isso por ser também tão misterioso...).
Ele mesmo dizia que “de tudo que se escreve, só gosta daquilo escrito com o próprio sangue” - e nessas suas páginas está um filósofo que nunca pretendeu ser “frio” e imparcial, mas que escrevia com paixão, molhando a pena no tinta do seu próprio sofrimento, lançando sobre o papel suas angústias, espantos, revoltas, paixões, dilaceramentos, dúvidas e uivos. Nietzsche não filosofava de brincadeira – a impressão que fica é a que filosofava de corpo e alma, se entregando por inteiro a cada livro, a cada aforismo, a cada linha. Isso é filosofia que questiona tudo até o fundo, que vira o mundo de cabeça pra baixo, que não teme nada, nenhuma autoridade, nenhuma tradição, nenhuma imposição, nenhuma “verdade” sagrada. É obra de um gênio endiabrado que vem com seu martelinho para demolir mentiras e ilusões – mas dizer martelinho é pouco! Ele vem é com um caminhão de demolição, vem com dinamite e nitroglicerina... Nieztsche exalta e incendeia.
Difícil de compreender por inteiro um pensamento tão complexo, mais difícil ainda concordar com tudo o que ele diz. Poucos filósofos foram mais polêmicos e tiveram coragem maior para se expor à chuva de injúrias e pedradas... Nieztsche já foi acusado de tudo: de ser anti-semita, de ter inspirado algumas doutrinas nazistas, de ter escrito páginas nojentamente machistas, de ser um enorme inimigo da democracia e convicto defensor da aristocracia, de ter sido arrogante, ególatra e “metido” e, como se não bastasse, de ter acabado sua vida na completa loucura (o que serviria, segundo alguns, para desabonar toda a sua obra – o que eu acho sem sentido: por que uma doença no fim da vida tiraria o valor, o poder e a lucidez de tudo o que veio antes?)... Eis um pensador que tomou pedradas até não poder mais. Mas é também um dos que mais marcou a filosofia dos últimos séculos, um dos mais influentes, um dos que mais fez diferença – o cara que inaugura uma longa linhagem de pensadores ateus brilhantíssimos que vão deixar marcados os séculos 19 e 20: Freud, Marx, Sartre, Camus, Sponville... teria algum deles existido sem que o terreno tivesse sido “limpo” por Nieztsche antes?
Já convivo com Nietzsche desde os meus 16 anos e posso dizer que é um dos escritores que eu conheço melhor: já estamos familiarizados um com o outro como amigos de longa data, que já chegaram a ter suas brigas e seus distanciamentos, mas que sempre voltam a se encontrar... Sei bem de todos os defeitos dele, todas as idéias indigestas ou inaceitáveis, tudo aquilo que me deixa meio com o pé-atrás. Mas no fundo eu sei que nele há muito a admirar e que, sobre o fundamental, ele estava certo sobre quase tudo. Nesses últimos tempos, pressionado pela necessidade de entregar um trabalho final na facul, voltei a mergulhar na obra do cara e acho que chegou o momento de finalmente escrever um pouco sobre o que eu consegui incorporar e compreender de Nieztsche, algumas das coisas que ele fez pensar e questionar, um pouco do “nietzschianismo” filtrado por mim...
Acho que um dos maiores enganos que os leigos têm sobre Nieztsche é imaginar que entrar nessas páginas pode ser “perigoso”, que o resultado pode ser desastroso, que a gente pode ficar “deprê demais” lendo esse cara que se proclamava o Anticristo, que destroçava as religiões, que duvidava do sentido da vida, que escrevia impregnado com tanta angústia... E entrar de cabeça em Nietzsche é de fato perigoso: esses são escritos muito intensos, fortes, devastadores, rebeldes, passionais, dionisíacos... Ninguém sai incólume dessa leitura, se realmente se entregar a ela. Mas o que é importante dizer, a título de convite aos marinheiros de primeira viagem, é que Nietzsche queria, mais do que tudo, nos libertar de tudo aquilo que nos estraga a vida e nos torna incapazes de amar o mundo – Nieztsche, no fundo, queria o nosso bem! Disso eu tenho certeza. E, muito mais do que um mero filosófo que só usa os miolos e silencia o coração (como poderia?!), Nietzsche é, sobretudo, um grande poeta (e não é o Zaratustra um dos grandes livros de poesia da história da humanidade?), um dos escritores mais talentosos que já nasceu e, com certeza absoluta, um dos cérebros mais brilhantes e geniais que um crânio humano já abrigou. Mais que necessário, ler Nietzsche é fundamental e indispensável. Leiam e as vidas de vocês nunca mais serão as mesmas.
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A MORTE DE DEUS: NIILISMO OU NOVOS HORIZONTES?
Talvez seja o melhor ponto de partida: “a morte de Deus” não é somente a “conclusão” mais famosa e “popular” de Nieztsche, aquilo de que todo leigo se lembra de cara ao ouvir falar no bigodudo alemão, mas é também uma espécie de alicerce para todo o nietzschianismo. É do ateísmo que sai tudo: a crítica ao cristianismo, à moral judaico-cristã, ao pessimismo e ao niilismo, ao valor da verdade, às pretensões da ciência... Antes de tudo, me parece, Nieztsche olhou para o Céu e constatou que ele estava vazio: nenhum Deus ali. Nenhum anjo. Nenhum plano. Nenhum paraíso. Foi a partir daí, desse vazio, dessa angústia, que ele construiu. Ou assim me parece.
Quando Nietzsche fala sobre a “morte de Deus”, convêm sempre lermos isso com uma certa cautela: não é uma expressão que deva ser tomada ao pé da letra, como um cristão seria tentado a fazer, como se de fato houvesse ocorrido a morte de uma Divindade Suprema e Onipotente que antes comandava o Universo e que acabou falecendo e abdicando de todas as tarefas que antes desempenhava... Podemos até perguntar: para um filósofo que sempre se declarou ateu, ir e declarar o óbito de uma divindade não parece um contra-senso, já que seria, de certo modo, reconhecer que a tal da divindade existia? Para um ateu tão sóbrio e convicto quanto Nietzsche, não é tão tolo e absurdo dizer que “Deus morreu” quanto anunciar a morte do Papai Noel, da Branca de Neve ou do Saci Pererê?
Que fique claro: na perspectiva de Nieztsche, obviamente Deus nunca passou de uma ilusão, de um produto da imaginação humana, de uma ficção criada pelo espírito dos homens (e todo mundo sabe que o monoteísmo é uma produção bem tardia da história humana...). E já que Deus nunca nasceu nem nunca existiu, não poderia, de modo algum, morrer de verdade!... É como diz o José Saramago, outro célebre ateu: “Os deuses existem somente no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou...”. Portanto é impossível que Deus morra: para morrer Ele precisaria primeiro existir, ou pelo menos ter existido, e Nietzsche, claro, dirá que Ele não existe nem nunca existiu! A “morte de Deus”, portanto, é uma expressão que só funciona se falarmos metaforicamente, é claro, como se a fé em Deus morresse dentro do espírito humano – e não somente em um homem particular, mas sim num movimento coletivo de descrença...
Nietzsche, com esse seu perturbador diagnóstico “Deus está morto”, quis apenas ilustrar, através de uma frase bombástica e marcante, uma espécie de verdade histórica, uma constatação a respeito da religiosidade dos homens europeus de seu tempo: ele notou que “a crença no Deus cristão caiu em descrédito” (A Gaia Ciência, aforismo 343) e fez-se o profeta de um novo tempo, em que o domínio do cristianismo e da moral judaico-cristã declinante seria substituída por algo diferente. “Parece justamente que algum sol se pôs, que alguma velha, profunda confiança virou dúvida...”, comenta ele.
E quais seriam as consequências desse fenômeno, o declínio da fé cristã, para a vida intelectual e moral da Europa? Por um lado, Nieztsche parece anunciar algo de catastrófico, de devastador, de revolucionário, que balança os alicerces não só da religião, mas também da filosofia e da moral - algo que poderia dar ensejo para a eclosão de uma era de sombrio pessimismo ou que poderia representar um empurrão direto para o abismo do niilismo... Pois ele bem sabe que “depois de solapada essa crença”, não é somente a religião que se vê posta em descrédito, mas tudo o que antes estava “apoiado a ela, arraigado nela; por exemplo, toda a nossa moral européia” (A Gaia Ciência, aforismo 343).
Mas, por outro lado, Nieztsche parecia ver com bons olhos e com uma perspectiva que diríamos até otimista a chegada deste “fenômeno”, o declínio do cristianismo. Tendo-se em mente todas as severas e revoltadas críticas que o filósofo fez a esta religião em tantas de suas obras, não surpreende que lhe agradasse vê-la em processo de franca decadência e descrédito. Mesmo reconhecendo o perigo de que certas pessoas fossem passar de modo desenfreado do ateísmo para o mais puro niilismo, Nietzsche, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, de modo algum verá a “morte de Deus” como um fenômeno “negativo” ou de consequências perniciosas.
Essa decadência da fé cristã representava para ele uma “vitória final e duramente conquistada da consciência européia, o ato mais rico de consequências de uma disciplina de dois milênios para a verdade, que por fim se proíbe a mentira de acreditar em Deus...” (A Gaia Ciência, aforismo 357). É como se o filósofo se rejubilasse com a perspectiva de que a humanidade enfim havia se libertado de uma de suas ilusões mais duradouras e teimosas. Enfim, felizmente, a filosofia parecia capaz de libertar-se por completo de uma trava que a manteve presa a uma mentira por dois milênios!...
Nietzche, talvez exagerando um tanto o alcance dessa decadência do cristianismo que ele diagnosticava, diz até mesmo que “o declínio da crença no Deus cristão, a vitória do ateísmo científico, é um acontecimento da Europa inteira, em que todas as raças devem ter sua parte de mérito e honra” (A Gaia Ciência, aforismo 357). Mesmo reconhecendo que o niilismo podia estar entre as consequências da “morte de Deus”, e que muitas pessoas poderiam se perder no sofrimento ao perderem a certeza que depunham no valor da vida e no sentido do Universo, ele reconhece, de modo até bastante otimista, que
“...as consequências mais próximas, suas consequências para nós, não são, ao inverso do que talvez se poderia esperar, nada tristes e ensombrecedoras, mas antes são como uma nova espécie, difícil de descrever, de luz, felicidade, facilidade, serenidade, encorajamento, aurora... De fato, nós filósofos e 'espíritos livres' sentimo-nos, à notícia de que 'o velho Deus está morto', como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, assombro, pressentimento, expectativa – eis que enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, posto mesmo que não esteja claro, enfim podemos lançar outra vez ao largo nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecedor é outra vez permitida, o mar, o nosso mar, está outra vez aberto, talvez nunca dantes houve tanto 'mar aberto'.” (A Gaia Ciência, aforismo 343)
Isso significa, talvez, que Nieztsche via aberta diante de si a possibilidade de uma renovação dos valores, agora que a religião cristã e os valores a ela acoplados estavam entrando em decadência – e certamente imaginou que seria um grande progresso substituir a idolatria cristã da resignação, do idealismo e do ascetismo por outros valores que considerava superiores, mais elevados e menos hostis à vida e à natureza... Mas também não podemos esquecer que foi isso, talvez, a “morte de Deus”, o que fez com que Nietzsche se contorcesse de angústias e começasse a pensar seriamente que, talvez, a verdade sobre esse mundo pudesse ser terrível...
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O VALOR DA VERDADE
“A verdade é boa?” - eis uma pergunta que raras pessoas chegam a se fazer no curso de uma vida inteira... Fomos ensinados, desde o berço, que a verdade está do lado do Bem e que a mentira está do lado do Mal. Sempre vinham nos reprovar, com broncas, chineladas ou um olhar severo, sempre que dizíamos, de propósito, algo mentiroso ou enganador... Então dizemos instintivamente, com a força do nosso longo condicionamento: sim, ora bolas, como não seria boa a Verdade, essa coisa tão sagrada, tão idolatrada e tão nobre!? Claro que a verdade é boa! Claro que ser honesto e de boa-fé é uma qualidade humana louvável, claro que é nobre e belo perseguir o conhecimento da Verdade! Claro que sim!... Nossa mente está tão acostumada a juntar o adjetivo “bom” à tal da verdade que nem pararmos para pensar nisso – e obviamente sem nos colocarmos a questão, difícilima de responder: mas o que é a Verdade?
Nietzsche foi um dos poucos que ousou questionar a fundo esse problema, um dos poucos a colocar um ponto de interrogação justo aí, nessa questão da “bondade” da verdade – em termos mais filosóficos: um dos poucos que quis espalhar um pouco de suspeita sobre o casamento antes inquestionado entre a verdade e o valor... Nieztsche foi um dos poucos a sugerir que a verdade poderia, quem sabe, ser “triste”, ser “feia”, ser desagradável – ou até pior: ser mortífera!... Nieztsche foi um dos poucos a colocar contra a parede essa Dama de quem ninguém antes ousava duvidar e crivá-la de suspeita: você, senhorita Verdade, é mesmo tão bela e tão pura quanto te pintam, ou por trás do véu e do disfarce se esconde um monstro que ser humano algum aguentaria encarar?!...
Como excelente psicólogo que foi, Nieztsche, bem antes de Freud, penetrou na consciência dos homens e notou o quanto eles viviam em auto-engano, acreditando em dúzias de ilusões, deixando o coração escolher no lugar da razão, cegando a si mesmos como milhares de Édipos que atentam contra os próprios olhos... Percebeu que os homens não vêm problema algum em acreditar em mentiras, com a condição de que estas mentiras façam bem, consolem, sejam convenientes, ajudem a vida a se conservar, espantem a angústia e o sofrimento... Para Nieztsche, obviamente não é porque Deus ou o Paraíso são “de verdade” que as pessoas crêem nessas coisas – muito pelo contrário! É justamente por não conseguirem suportar a verdade que se vêem na necessidade de criar essas mentiras como muletas!...
Nieztsche notou muito bem que os homens, em geral, se importam muito pouco com a Verdade e estão muito mais interessados no Prazer e na Felicidade – o princípio de prazer, como dirá Freud décadas depois, é que impera, e não o impulso em direção ao conhecimento objetivo! Somos animais que, em larga medida, são dominados por seus instintos mais básicos – e os instintos não querem nem saber dessa tal de Verdade... Aos instintos só interessa obter satisfação. Estamos muito mais interessados em sermos felizes do que em descobrirmos a verdade sobre a existência: e talvez, quem sabe, a ignorância e a crença cega no que é mais conveniente seja um meio mais seguro para ser feliz do que a lucidez?! Ignorance is bliss? Quem sabe...
Imaginem vocês, por exemplo, um pequeno jogo mental: imaginem que lhes apareça um dia a opção de escolher entre dois formidáveis presentes – um deles é a Felicidade Mais Completa e Plena Imaginável, a mais pura Beatitude, para todo o resto da sua vida; o outro é o Conhecimento Completo da Verdade sobre a vida e o Universo... O que você escolheria?
Claro que quase todos nós gostaríamos de saciar nossa curiosidade sobre os segredos da vida e do universo, sobre o sentido e o porquê de tudo que existe, sobre porquê nascemos e porquê temos de morrer, sobre o de onde viemos e para o onde vamos, mas quantos de nós seria realmente capaz de abdicar da Felicidade para saber da Verdade? Creio que uma minoria. A maioria provavelmente preferiria ser feliz, mesmo que fosse na ignorância, mesmo que fosse na incultura, mesmo que fosse na ilusão...
Pois o que garante que saber da Verdade nos faria felizes? Talvez nos decepcionaria? Talvez nos aterrorizaria? Porque talvez seja verdade que a Terra seja só um planetinha insignificante num Universo vastíssimo; e pode ser que o homem não passe de um animalzinho que evoluiu dos macacos, sem sentido e sem missão, e que um dia desaparecerá para sempre; e pode ser, também, que Deus não exista, que ninguém irá pro Paraíso e que a morte seja verdadeiramente o fim... Tudo isso pode ser verdade. E você realmente gostaria de ouvir essas verdades ou preferiria, para o bem da “felicidade”, tapar os ouvidos e fechar os olhos?...
E quem de nós não conhece algumas verdades tristes? Quem de nós já não sofreu, vez ou outra, ao ouvir uma verdade? O homem, antes orgulhoso de seu papel super-importante como centro do Universo, sofre e se sente rebaixado ao descobrir a verdade de que a Terra é apenas um mísero planetinha girando em torno do Sol e de modo nenhum o “centro” de qualquer coisa que seja. E nossa espécie, que antes gostava de se gabar de ser uma criação divina (e, cúmulo do narcisismo!: “criada à imagem e semelhança de Deus!”), chora e sofre ao descobrir a verdade de que não passamos de parentes dos macacos, que não somos nada além de um estágio no processo de evolução das espécies, que estamos tão presos ao mundo natural quanto os vermes e as baratas... E cada um de nós, que talvez desejaria viver para sempre, se angustia e se debate de sofrimento ao tomar consciência da verdade de sua mortalidade, de dar de frente com a verdade de que nada que fará desviará sua rota de desaguar num túmulo...
E nem é preciso ir tão longe assim – é só pensar em tantos e tantos momentos de nossas vidas cotidianas quando sentimos repugnância à verdade, quando preferimos não ouvi-la, ou quando calamos a verdade sobre sentimentos sabendo que ela machucaria os outros: o apaixonado, que acreditava um dia ser correspondido por sua amada, cai em prantos amarguíssimos ao notar a verdade de que ela não o ama... e a amada, tendo plena consciência da verdade de não amá-lo, sabe o quanto essa verdade pode ser cruel e machucante – e silencia... Sim, amigos, quem de nós não sabe que há verdades que podem ser cruéis, dolorosas e machucantes? E se tantas verdades com v minúsculo são isso, será que a Verdade com V maiúsculo também não poderia ser? Será a verdade tão bela e tão boa quanto pensávamos? Ah, amigos, sim... é possível que “a verdade seja triste”...
(“...é sempre ainda sobre uma crença metafísica que repousa nossa crença na ciência – também nós, conhecedores de hoje, nós os sem-Deus e os antimetafísicos, também NOSSO fogo, nós o tiramos ainda da fogueira que uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina. Mas, e se precisamente isso se tornar cada vez mais desacreditado, se nada mais se demonstrar como divino, que não seja o erro, a cegueira, a mentira – se Deus mesmo se demonstrar como nossa mais longa mentira?” (A Gaia Ciência, #344).)
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CRÍTICA AO CRISTIANISMO E AO PLATONISMO
Entender a razão da fúria de Nieztsche contra o cristianismo (e que fúria!) é essencial – apesar de não ser tarefa das mais fáceis, tamanha a influência cultural que o cristianismo exerceu nos dois últimos milênios, fazendo com que todos nós sejamos um pouco cristãos, por mais que tentemos nos livrar dessa praga. O que acho importante destacar é que Nietzsche não era somente um menininho endiabrado que se divertia a proclamar blasfêmias só para assustar as autoridades e deixar o Papa com fogo no rabo – ele acreditava, com toda a convicção possível, com toda a paixão, que o cristianismo era uma doutrina prejudicial, castradora, decadente, que nos distancia da felicidade, da sabedoria, da serenidade, da luz... Ele tenta nos salvar do cristianismo como se ele fosse a lepra, a peste, a guerra - e pensa estar fazendo um imenso bem à humanidade libertando-a da influência extremamente danosa do cristianismo...
O que Nietzche reprova no cristianismo e no platonismo (e ele certamente não via tantas diferenças assim entre ambos, já que chegou a comentar que o cristianismo não passava de “platonismo para o povo”...), é o fato de ocorrer, em ambos, uma cisão entre este dois mundos: a Terra e o Céu - este mundo fenomenal e efêmero onde vivemos e aquela outra “dimensão”, tida como transcendental e eterna. Ele via nisso uma ilusão perniciosa que fazia com que os valores fossem “retirados” da Terra e colocados no Céu, por assim dizer, de modo que tudo que diz respeito a este mundo “aqui de baixo” acabava sendo, nesta perspectiva cristã de encarar o universo, blasfemado, caluniado e hostilizado: o corpo e suas necessidades, o desejo sexual e outros instintos biológicos, o mundo sensível como um todo, são todos recusados em nome de um suposto “espírito” descarnado, em nome do ascetismo, em nome da castração instintual e da resignação...
Nietzsche foi um dos primeiros grandes pensadores a denunciar a repressão sexual imposta à humanidade por milênios pelo cristianismo (e todo mundo sabe muito bem que sempre que a gente comemora as vitórias da Revolução Sexual, comemoramos uma vitória sobre o moralismo cristão!...). Nieztsche foi um dos maiores espíritos a se rebelar contra a crueldade devastadora com que o cristianismo sempre tratou nossos instintos mais naturais, condenando não somente o prazer sexual, mas o prazer sensível em geral, e mais ainda: condenando a alegria de viver!...
Tentem dar risada dentro de uma igreja! O padre já vai olhar de viés, cheio de fúria, como se fosse pecado... Tente colocar as mãos para dentro da cueca dentro de uma igreja, só pra fazer um carinho rápido no “coiso” (coisa tão inocente e bonitinha!), e o padre, se pegar no flagra, vai te tratar como um assassino, um genocida, alguém que merece ser assado nos fornos do inferno para toda a eternidade!... Tente amar a Terra e o padre provavelmente virará pra você e começará um sermão tentando te convencer que isso aqui não passa de um “vale de lágrimas”, um imenso campo de concentração de infelizes e pecadores, uma estrada dura de provação e martírio, algo que devemos suportar com a resignação com que o Cristo suportou a cruz... Pode ser que isso seja uma mera caricatura e simplificação grosseira do que é o cristianismo – mas é mais ou menos assim que Nietzsche o descreve...
Deste modo, o cristianismo, como ele é descrito e condenado por Nietzsche, acabou por iniciar uma “guerra” contra os instintos naturais do homem, inclusive sexuais, ao mesmo tempo que reprimia a alegria de viver, a procura dos prazeres terrenos, todas as paixões do coração humano, e isso de um modo castrador e cruel:
“A Igreja combate as paixões através do método da extirpação radical; seu sistema, seu tratamento, é a castração. Não se pergunta jamais: como se espiritualiza, embeleza e diviniza um desejo? Em todas as épocas o peso da disciplina foi posto a serviço de extermínio.” (...) “Mas atacar a paixão é atacar a raiz da vida; o processo da Igreja é nocivo à vida.” (A Moral Como Manifestação Contra a Natureza, aforismo 1º – em O Crepúsculo dos Ídolos)
Portanto, na perspectiva de Nietzsche, essa condenação dos instintos e da natureza, perpetrada tanto pelo cristianismo quanto pelo platonismo, e que constituía a base mesma da moral então existente (exatamente aquela da qual ele queria se libertar...), essa condenação do instintual era vista pelo filósofo como errônea, indesejável, horrorosa - tanto que ele chega a definir o bem e o mal em relação à afirmação ou negação dos instintos vitais:
“...toda a moral de aperfeiçoamento, inclusive a moral cristã, foi um erro. Buscar a luz mais viva, a razão a todo preço, a vida clara, fria, prudente, consciente, despojada de instintos e em conflito com eles, foi somente uma enfermidade, uma nova enfermidade, e de maneira alguma um retorno à virtude, à saúde, à felicidade. Ver-se obrigado a combater os instintos é a fórmula da decadência, enquanto que na vida ascendente felicidade e instinto são idênticos.” (O Problema de Sócrates, aforismo 11, O Crespúsculo dos Ídolos)
Nietzsche propõe-se, portanto, a realizar uma completa “inversão de valores”, passando a considerar como “mal” justamente aquilo que a moral judaico-cristã e platônica considerava como um “bem”. A repressão instintual e o amansamento da vontade, antes tidos como definição do Bem, passam a ser, na ética nieztschiana, a própria definição do Mal – são um crime contra a vida! A afirmação do instinto e da vontade é que se tornará, em Nieztsche, o valor realmente positivo:
“Numa ou outra forma toda falta é conseqüência da degeneração do instinto, de uma desagregação da vontade; chega-se por esse caminho quase a definir o MAL. Todo o bem procede do instinto e é por conseguinte leve, necessário, espontâneo. O esforço é uma objeção; o deus se diferencia do herói por seu tipo (em minha linguagem, os pés leves são o primeiro atributo da divindade).” (Os Quatro Erros, aforismo 2, em O Crepúsculo dos Ídolos.)
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APOSTA FURADA!
Claro que isso tudo se baseia na convicção atéia de Nietzsche de que este mundo aqui é o único que existe, e esta vida terrena a única que nos é dada experimentar, sendo que toda esperança de um Paraíso não passa de uma ilusão - e uma das piores e mais perigosas... Por quê? Se eu entendi bem a mensagem do Nietzsche, é basicamente porque crer num Céu que viria depois da morte, e crer que o modo de alcançá-lo é seguindo o catecismo cristão, é uma espécie de aposta furada. Me explico melhor.
Imaginem, por exemplo, um padre cristão ortodoxo, que acredita que tudo que tem a ver com o corpo e os prazeres sensíveis é pecaminoso e que vai passar a vida toda se impedindo todo o tipo de contato corporal mais íntimo com outros seres humanos (nada de beijos, abraços, afagos, amassos e transas...) - quem não vê que isso seria se negar a experiência humanas essenciais? E este mesmo cristão, se ele acredita que Jesus Cristo deve ser imitado, provavelmente vai procurar viver uma vida tão sofrida quanto aquela do Cristo, e vai impor a si mesmo um monte de sofrimentos desnecessários: vai jejuar, vai se auto-flagelar, vai tentar castrar todo tipo de “desejo impuro” que tiver, vai ficar se culpando e se sentindo com a consciência culpada a qualquer pequeno deslize... E, se ele acredita que o sofrimento suportado com resignação é o caminho para ser “aprovado” com Deus, vai viver a vida toda daquele jeito todo sério e apático que já conhecemos em tantos padres... Ele pensa, claro, que todas essas provações, martírios, repressões, jejuns, resignações e tristezas estão comprando para ele um “tíquete de entrada” no Paraíso...
Mas a questão de Nietzshce, devastadora, se ele pudesse colocar esse padre contra a parede, seria: “mas e se não houver Paraíso nem Deus? Então o que foi a sua vida, meu caro, senão um longo desperdício? Que foi a sua vida um desnecessário martírio que não conduziu a nada, um longo sofrimento auto-imposto e sem recompensa? Que foi sua vida toda senão uma imensa tolice?” E claro que, para o Nietzsche, todos aqueles que vivem ortodoxamente de acordo com o moralismo cristão estão cometendo contra si mesmos uma baita crueldade: estão, basicamente, jogando fora suas vidas!... Apostam que existe um Céu, e para conquistá-lo estragam a vida na Terra com o sofrimento que procuram, com as repressões que se impõe, com a tristeza com que se contaminam... e, afinal de contas, é uma aposta tola, como quem aposta tudo o que tem num número da roleta que nunca vai sair. O Céu não vai sair.
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REFUTAÇÃO DE SCHOPENHAUER
O cristianismo (e o sistema moral que lhe vem acoplado) não era o único inimigo que Nietzsche tentava criticar e derrotar – também a doutrina pessimista do Schopenhauer vai ser duramente criticada pelo filósofo. Convêm aqui, portanto, fazer um rápido panorama deste sistema de Schopenhauer e do que Nietzsche tinha a lhe opor e objetar – uma vez que este se via premido pela necessidade de superar o “niilismo” que acabava sendo a consequência natural da doutrina daquele. Schopenhauer, numa atitude que Nieztsche não podia aceitar, acabava por ver uma única saída para a resolução do dilema humano: a negação do desejo e da vontade de viver.
“Todo querer procede de uma necessidade, isto é, de uma privação, isto é, de um sofrimento. A satisfação põe-lhe um fim; mas, para cada desejo que é satisfeito, dez pelo menos são contrariados; além disso, o desejo é demorado, e as suas exigências tendem para o infinito; a satisfação é curta, parcimoniosamente medida. Mas este contentamento supremo é apenas aparente: o desejo satisfeito cede lugar em breve a um novo desejo; o primeiro é uma decepção ainda não reconhecida. A satisfação de nenhum desejo pode conseguir contentamento durável e inalterável. É como a esmola que se lança a um mendigo: ela salva-lhe hoje a vida para prolongar a sua miséria até amanhã. – Enquanto a nossa consciência está preenchida pela nossa vontade, enquanto estamos subjugados pelo impulso do desejo, pelas esperanças e pelos temores contínuos que ele faz nascer, enquanto somos súditos do querer, não existe para nós nem felicidade duradoura, nem repouso.” (SCHOPENHAUER, O Mundo Como Vontade e Representação, pg. 206)
Segundo Schopenhauer, como fica claro pelo trecho acima, não há salvação no reino do desejo. Quanto mais desejo há, mais sofrimento há de advir. Ecoando a mensagem de Buda, Schopenhauer diz que tudo é dor, que toda dor provêm do desejo e que o único meio de libertação é o aniquilamento completo do desejo, o nada da vontade: o que o budismo chama de Nirvana e o que Schopenhauer vai chamar pelo nome apavorante de Negação da Vontade de Viver. Este estado de “iluminação” que seria atingido assim que o homem atingisse o “zero” da vontade, se caracterizaria pela “supressão espontânea e total, a negação do querer, o verdadeiro nada de toda vontade” - e é aí que Schopenhauer via o “bem supremo”, o “alvo” que devemos perseguir como seres humanos:
“esse estado único em que o desejo se detém e se cala, em que se encontra o único contentamento que não se arrisca a passar, esse único estado que liberta de tudo... eis o que chamamos o bem absoluto... eis onde vemos o remédio radical e único para a doença, enquanto que todos os outros bens são puros paliativos, simples calmantes.” (SCHOPENHAUER, O Mundo Como Vontade e Representação, pg. 380)
Já dá pra começar a suspeitar aonde isso vai dar - num ascetismo budista-cristão que, no fundo, é extremamente niilista: aquele que prega a auto-mortificação, a indiferença a todas as coisas mundanas, a recusa de todos os prazeres terrenos... Já que o desejo é a raiz de todos os males, é preciso tomar medidas drásticas para aniquilá-lo, e eis Schopenhauer a nos aconselhar uma vida de pobreza voluntária, de jejum, de castidade, de completa resignação ao sofrimento, como fizeram os grandes “santos” e “místicos orientais” que tanto empenho devemos colocar em imitar... Afinal de contas, diagnostica Nietzsche, Schopenhauer, um dos primeiros filósofos alemães convictamente ateus, acabava por tirar conclusões que não ficavam muito distantes daqueles tiradas pelo cristianismo (e também pelo budismo) e acabava por pregar a revolta contra o instinto e a tentativa de homicídio contra o desejo.
Nietzsche, que em muitos aspectos pode até ser considerado um discípulo direto de Schopenhauer, se revoltou contra essa doutrina de seu mestre, que considerava tão desagradavelmente próxima da cristã, e acusou todos - os budistas, os cristãos, os estóicos, os schopenhauerianos... - de niilistas. Pois, de fato, o que significa ser um niilista? Significa dizer, basicamente, que esta vida não presta, que o mundo é um lugar terrível e que a vontade de viver, esse núcleo de todo ser vivo, merece ser negada. E o que o cristianismo diz senão que esse mundo é um terrível “vale de lágrimas” que é preciso suportar com resignação? E o que diz o budismo senão que “tudo é dor” e é que preciso auto-aniquilar toda a vontade, inclusive a vontade de viver? E que diz Schopenhauer senão exatamente a mesma coisa?
Nietzsche, como se sabe, vai procurar outro caminho, que não é o da resignação, que não é o do esmigalhamento da vontade, que não é o Nirvana, mas sim o oposto: o fortalecimento da vontade de viver e da vontade de potência, uma negação vigorosa e rígida da resignação, um sim! convicto dado ao instinto, uma afirmação dionisíaca da vida borbulhante, sofrida sim, trágica muitas vezes, mas mesmo assim digna de ser vivida, digna de ser afirmada, digna de ser amada – e por inteiro!...
De fato, a crítica de Nietzsche parece proceder. Quando uma pessoa faz tantos esforços no sentido de negar, reprimir e matar seu desejo, não se torna muito parecida com um morto? Não se torna apática, indiferente, organimente débil, parecida com um vegetal? Não acaba por destroçar seu psiquismo à base de tanta repressão do instinto? Não se torna uma mente doentia, dopada, anestesiada, mutilada por tudo que foi reprimido e mantido no cárcere da mente? Nós aqui, no século 21, já fomos muito bem ensinados pela psicanálise a respeito de todos os desastres e doenças causados pela repressão... Nieztsche é um precursor desse diagnóstico.
Enfim, essas pessoas que Schopenhauer, o budismo e o cristianismo nos convidam a imitar - o santo cristão, o anacoreta mendicante, o religioso auto-mortificante... – são realmente dignas de serem imitadas? Não são pessoas totalmente sem vida, niilistas do pior tipo, covardes que negaram a vida por medo do sofrimento? “Não é sadio desejar?”, pergunta a personagem da Julie Delpy no filme “Antes do Pôr-do-Sol”: “A incapacidade de desejar não é sintoma de depressão?”
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IMORALISMO ABSOLUTO OU SUBSTITUIÇÃO DE UMA MORAL POR OUTRA?
Nietzshce demoliu com seu martelinho diabólico tudo: a moral judaico-cristã, a platônica, a de Schopenhauer, a de Kant... todos os moralismos, tudo cai abaixo. E sobra o quê? O caos, a anarquia, o cada-um-por-si, o “tudo é permitido”? De jeito nenhum.
É importante que nos perguntemos: esse “além do bem e do mal” de Nieztsche corresponderia a uma espécie de imoralismo absoluto, uma completa não-hierarquização de valores? Eis uma interpretação a que alguns poderiam se sentir tentados depois de tanto ouvir Nietzsche se auto-proclamar um “imoralista” e tão duramente criticar a moral vigente e todos os tipos de moralismo... Mas é só fazer um estudo minucioso da obra nietzschiana pra percebermos que de modo algum se pode dizer que nele vigora um “niilismo” moral (nem moral nem qualquer outro tipo de niilismo!), que diria que “tudo se equivale”, que “tudo é permitido” ou que tudo “dá no mesmo”... Podemos até mesmo questionar se uma posição niilista neste estilo é passível de ser sustentada por qualquer ser humano, coisa que Jankélévitch, por exemplo, nega expressamente em sua obra O Paradoxo da Moral:
“....se enfrentamos o culto do prazer sensível ou do imoralismo provocante dos cínicos, podemos afirmar sem risco: eles são todos moralistas, e aqueles que o são mais são os que menos o parecem. Impossível encontrar uma doutrina filosófica que possa manter rigorosamente a aposta na indiferença a respeito de qualquer tomada de posição moral: uma diferença, seja ela infinitesimal, entre mal e bem, uma parcialidade imperceptível, uma invisível polaridade, ou uma posição tomada podem sempre ser descobertas; sem o princípio elementar da preferência nascente, sem um mínimo melhor-que, nem a escolha, nem a vida, nem o movimento seriam possíveis. Portanto o imoralismo absoluto tem algo de cadavérico.” (JANKÉLÉVITCH, pg. 40)
Uma leitura cuidadosa da obra nietzschiana nos leva a concluir que, de fato, não estamos frente a uma “doutrina filosófica que possa manter rigorosamente a aposta na indiferença a respeito de qualquer tomada de posição moral”, como diz Jankélévitch. Nietzsche, por mais que se auto-proclame um “imoralista”, no fundo está somente defendendo uma moral diferente da que então era vigente, uma moral contrária àquela dos cristãos, dos kantianos e dos niilistas, mas ainda assim prossegue fazendo-se o defensor de certos valores que considera mais elevados e nobres; prossegue, portanto, sendo o defensor de uma moral – mesmo que seja uma radicalmente oposta àquela que então vigorava. O próprio Nietzsche não nega que
“muitas ações que se chamam não-éticas devam ser evitadas, combatidas; do mesmo modo, que muitas que se chamam éticas devam ser feitas e propiciadas, mas penso: em um como no outro caso, por outros fundamentos do que até agora. Temos de aprender a desaprender -, para afinal, talvez muito tarde, alcançar ainda mais: mudar de sentir.” (Aurora, Livro II, aforismo 103).
A moral que Nieztsche defende volta-se contra o sacrifício de si, a resignação, o ascetismo e a humildade, valores idolatrados pela moral judaico-cristã, e irá, pelo contrário, ver como valores superiores a afirmação de si, um sim empolgado dito à vontade de potência e à vontade de viver – ou seja, o contrário tanto da moral cristã quanto da moral de Schopenhauer (que, na esteira do budismo, pregava a necessidade da aniquilação da vontade de viver). Também contra os valores consagrados da compaixão e do altruísmo ele irá se debater:
“Nossa moral da compaixão, contra a qual fui o primeiro a soar um alarma, esse estado de espírito que se poderia chamar de impressionismo moral, é, acima de tudo, uma manifestação da superexcitabilidade fisiológica própria de todo decadente. (...) As épocas vigorosas, as civilizações nobres viram na compaixão, no amor ao próximo, na falta de egoísmo e de independência, algo que lhes parecia desprezível. (...) a “igualdade”, certa assimilação efetiva que se manifesta na teoria da igualdade de direitos, pertence essencialmente a uma civilização decadente; os abismos entre homem e homem, entre uma classe e outra, a multiplicidade de tipos, a vontade de ser cada um algo, de distinguir-se, o que denomino o patos das distâncias, é o que é próprio das épocas fortes.” (Incursões de um Extemporâneo #37, em O Crepúsculo dos Ídolos)
Diremos, portanto, que Nieztsche se revolta contra certos tipos de moral, e contra certos hábitos de proceder intelectualmente dos moralistas e estudiosos da moral, mas não deixa de se colocar como defensor de valores que considera nobres e elevados – sendo que, no fundo, a vida terrena acaba sendo para ele o maior dos valores, e tudo aquilo que se rebela e se volta contra esta vida será considerado por ele como algo mau e prejudicial.
“Suposto que se tenha compreendido o que há de sacrilégio em uma rebelião contra a vida, tal como na moral cristã se tornou quase sacrossanta, então, com isso, por felicidade, também se compreendeu algo outro: o que há de inútil, aparente, absurdo, mentiroso, em uma tal rebelião. Uma condenação da vida por parte do vivente continua a ser, em última instância, apenas o sintoma de uma determinada espécie de vida: a pergunta, se ela é justa, se ela é injusta, nem sequer é levantada, com isso. Seria preciso ter uma posição fora da vida e, por outro lado, conhecê-la tão bem quanto um, quanto muitos, quanto todos, que a viveram, para poder em geral tocar o problema do valor da vida: razões bastantes para se compreender que este problema é um problema inacessível a nós.” (MORAL COMO CONTRANATUREZA, aforismo 5, em O Crepúsculo dos Ídolos).
Este pensamento acaba levando, de fato, a um ponto “para além de bem e mal”, onde os fatos não serão julgados moralmente, mas serão simplesmente fatos brutos, por assim dizer. O que significa, igualmente, que os juízos de valor sobre a existência – ou mesmo sobre o valor da verdade... - não são possíveis, como explica resumidamente o Albert Camus, que foi um cuidadoso leitor de Nietzsche e compreendeu-o bem como poucos, em seu O Homem Revoltado:
“Sabe-se que Nietzsche invejava publicamente Stendhal pela fórmula: ‘a única desculpa de Deus é que ele não existe’. Privado da vontade divina, o mundo fica igualmente privado de unidade e de finalidade. É por isso que o mundo não pode ser julgado. Todo juízo de valor emitido sobre o mundo leva finalmente à calúnia da vida. Julga-se apenas aquilo que é, em relação ao que deveria ser, reino do céu, idéias eternas ou imperativo moral. Mas o que deveria ser não existe; este mundo não pode ser julgado em nome de nada.” (CAMUS, O Homem Revoltado, pg. 87)
É por isso que Nietzche comenta que seria preciso se pôr numa “posição fora da moral, algum além de bem e mal, ao qual é preciso subir, galgar, voar”. Seria preciso, para entender a moral (e a existência em geral...), adotar uma perspectiva que não estivesse contaminada por moralismo, pelos costumes sociais que nos foram inculcados por educação ou hábito, pelo “clima” moral dos tempos em que vivemos. Seria preciso alcançar uma visão “imparcial” e sem preconceitos, o que implica necessariamente a tentativa de se libertar de uma certa tradição recebida: “uma liberdade diante de toda 'Europa', esta última entendida como uma soma de juízos de valor imperativos, que nos entraram na carne e no sangue” (aforismo 380 de A Gaia Ciência).
“Para uma vez ver com distância nossa moralidade européia, para medi-la com outras moralidades, anteriores ou vindouras, é preciso fazer como faz um andarilho que quer saber a altura das torres de uma cidade: para isso ele deixa a cidade”, diz Nietzche, e isso nos faz pensar em sua própria atitude de filósofo andarilho que se afasta daquilo que vigorava na Europa de então – a moralidade judaico-cristã.... - e procura olhar “de fora” para esse espetáculo. Porém, obviamente não se trata somente de um estudo passivo e desinteressado da moral cristã o que o filósofo irá empreender: Nieztsche escreve como se empunhasse uma arma, escreve como combatente de algo que lhe desagrada, escreve querendo demolir uma moral à qual se opõe. Na perspectiva dele, a moral cristã merece ser derrotada e reduzida a pó, já que seria uma expressão de hostilidade à vida, de fuga à realidade, de calúnia contra o mundo, de crueldade contra o corpo e seus instintos mais naturais. Nietzsche via na revolta contra o instinto e contra os desejos um sintoma de decadência e de niilismo, um terrível auto-mutilamento, uma neurose psíquica, enfim, uma espécie de atentado contra a vida. É como se dissesse: não há nada de errado em desejar! Nada de errado em se deleitar, em querer se expandir, querer se aperfeiçoar, querer sentir-se forte e potente, querer tornar-se mais do quem um homem (um Super Homem!), querer transbordar e se embriagar e voar!...
Nieztsche via também, na cisão operada pelo cristianismo e pelo platonismo em dois “mundos”, o terreno e o divino, algo que somente contribuía para que a Terra fosse vista como algo sem valor. É por isso que no Zaratustra uma das mais rigorosas sugestões do “sábio” é a de que permaneçamos “fiéis à terra”:
“Exorto-vos, ó meus irmãos, a permanecerdes fiéis à terra, e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres. São eles envenenadores, conscientemente ou não. São menosprezadores da vida, moribundos intoxicados de um cansaço da terra; que pereçam, pois!
Blasfemar contra Deus era outrora a maior das blasfêmias; mas Deus morreu, e com ele mortos são os blasfemadores. Agora o crime mais espantoso é blasfemar a terra, e dar mais valor às entranhas do insondável do que ao sentido da terra.” (Assim Falava Zaratustra, parte I, III)
Portanto está plenamente justificada a asserção nieztchiana de que seria necessário se libertar da “Europa” como um todo e da influência judaico-cristã que impregnava o “espírito dos tempos”, por mais declinante que fosse. Nietzsche, diagnosticando a “morte de Deus” e o declínio do cristianismo, vendo o concomitante esfacelamento do esquema moral vinculado à essa religião, mas ao mesmo tempo não querendo se render ao pessimismo schopenhaueriano nem a qualquer tipo de niilismo, pôs-se numa posição “fora da moral”, além do bem e do mal, enxergando com um olhar extremamente crítico os valores que vinham governando a humanidade até então. Não abandonando-se de forma alguma ao “imoralismo completo”, pôs-se a enunciar os valores que considerava mais elevados e dignos, acabando por fazer o elogio empolgado da afirmação da vida e do desejo - convidando-nos a que permanecêssemos sempre fiéis à Terra!...
Afinal de contas, Nieztsche só demoliu para construir algo melhor no lugar, só criticou aquilo que nos danava, só se enfureceu contra as correntes que nos aprisionavam – no fundo, Nieztsche é um daqueles mestres que não querem nada mais do que isso: nos ensinar a amar a vida, e a vida terrena, esta aqui, exatamente como é, sem véus, sem mentira, sem ilusão, do jeito como já a conhecemos e vivemos e sofremos... Ler Nietzsche e entendê-lo é mais do que uma simples aquisição de conhecimento: o que ele nos dá é uma sabedoria que nos ajuda a melhor amar tudo o que há!...
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