terça-feira, 27 de dezembro de 2005

-- MEUS 10 DISCOS DE 2005 --

# 1



FIONA APPLE
Extraordinary Machine (versão Jon Brion)




"Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade: é a natureza da sua origem que a julga. (...) Basta, no meu entender, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo."
RILKE, Cartas a Um Jovem Poeta.

"I'm underwater most of the time, and music is like a tube to the surface I can breathe through."
FIONA APPLE, entrevista à revista SPIN.


Não tem jeito: pra que vocês possam entender porque dei a medalha de ouro para "Extraordinary Machine", minha pepita predileta de 2005, num tem como eu fazer uma resenha "objetiva" demonstrando por A + B que esse é de fato o disco de "maior qualidade" - nem tenho essa pretensão. Uma resenha ego-tríptica se impõe (e cada vez acho mais que pra falar de música direito você tem sempre que partir mais pro subjetivo): vou ter que contar mais um pouco (já fiz isso antes...) sobre como essa garota-gênia, miss Fiona Apple, arrumou um jeito de ir se enfiando mais e mais no mais profundo do meu coraçãozinho (UI!).

Digo mesmo que a minha relação com a Fiona é muito mais do que musical: não é só somente um gosto que tenho pelas harmonias e melodias, pela qualidade e pelo timbre da voz dela, pela virtuosidade do desempenho... Tem algo mais: uma conexão mais próxima, uma identificação mais forte, uma admiração que tem muito mais a ver com a pessoa que ela é do que com a música que faz. Diria até que minha atração pela Fiona, mais do que musical, é existencial. Sinto que ela é pra mim uma espécie de SOUL SISTER. E claro que não consigo evitar, quando meu senso de ridículo está desligado, que se levantem na minha fantasia uns sonhos de amores impossíveis que é melhor nem descrever. Fiona Apple é pra mim algo como o protótipo da Garota Ideal, aquela que, bem sei, não existe - mas que minha mente insiste em fabricar... pra brincar de se decepcionar.

Gosto mais dela Fiona Apple do que de qualquer outra cantora que eu conheço. E não quero ficar erguendo meus gostos particulares ao status de dogmas ou verdades objetivas, dizendo que ela é "melhor" do que a Patti Smith, a PJ Harvey, a Billie Holliday, a Aretha Franklin, a Ella Fitzgerald, ou qualquer outra deusa... Só relato as verdades do meu coração. E lá a Fioninha reina suprema. Mais importante ainda: me identifico com tudo que ela escreve - e acho muito essencial notar que, para a Fiona Apple, o que está sendo dito parece ser muito mais revelante do que a música em si. Quem ouvir a música dela sem prestar atenção nas letras vai estar deixando escapar o fundamental.

Foram longos seis anos de sumiço desde "When The Pawn...", o segundo disco, e o trabalho de parto parece ter sido complicadíssimo. Ao contrário do que alguns poderiam esperar, Fiona Apple, que em 1996/1997 era uma das maiores pop-stars no firmamento da música pop americana, retornou sem grande espetáculo e barulho. Discreta e quietinha, lançou seu "Extraordinary Machine" sem causar grande comoção pública, até porque não há nada por aqui realmente com cara de hit. Estranho? Sim, por um lado: seria de se esperar que uma artista que já tem cerca de 5 milhões de discos vendidos no currículo fosse atacar de novo o topo das paradas, e que o disco novo fosse restituir à Fiona o papel de porta-voz de toda uma geração de adolescentes inteligentes, desajustadas e melancólicas. Não foi exatamente o que ocorreu.

Por outro lado, isso não chega a surpreender quem conhece a trajetória dela e a relação sempre problemática que ela tem com a fama. No passado, ao mesmo tempo em que era estampada na capa de quase todas as revistas de música e entretenimento dos EUA e da Inglaterra, parecia insistir num discurso que dizia que o conteúdo é mais importante do que a embalagem e as letras mais importantes do que o jogo de imagens. Desfilava nos tapetes vermelhos do show-bussiness ao lado de namorados famosos (o mágico David Blaine e o cineasta Paul Thomas Anderson), ao mesmo tempo que se mostrava bastante ofensiva, raivosa e desajeitada em relação ao mundo das celebridades e do sucesso popular.

Se desfazia em lágrimas em uma série de entrevistas, demonstrando uma certa fobia de estar ali, à mostra, sendo continuamente julgada, criticada e notada; ao invés de se fingir de perfeitinha, como fazem tantas pop-stars, demonstrava sem nenhum pudor suas neuroses, seus traumas e suas histerias, inclusive contando abertamente o caso de seu estupro aos 12 anos de idade e histórias sobre suas sessões de psicoterapia. Em 1997, quando foi receber o seu MTV Music Award, fez um discurso que alguns interpretaram até mesmo como totalmente niilista ("This world is bullshit!", cuspiu com raiva para milhões de telespectadores), quando era óbvio que ela estava reclamando não contra a vida em geral, mas contra o Mundo MTV das celebridades de plástico. Em entrevista à SPIN, chegou mesmo a prometer seu suicídio, dizendo que tinha certeza que iria morrer jovem (veja aí embaixo). Não, Fiona Apple não era só mais uma garota como qualquer outra: desde o começo, ficou claro para todos que ela era alguém ESPECIAL.



"Tidal", o disco que ela lançou em 1996 e que a tornou mundialmente famosa aos 19 aninhos de idade, me parece um disco que indica bem a ambivalência de Fiona em relação ao sucesso: por mais excelente que seja, é um álbum um tanto heterogêneo e indeciso quanto aos rumos a tomar. O pop-rock radiofônico de "Sleep To Dream" e "Criminal" parece algo feito pra fazer sucesso e tocar no rádio comercial, enquanto que as lentas e doloridas baladas jazz como "Never is a Promise", "Sullen Girl" e "Pale September", por exemplo, são coisas totalmente inadequadas à rádio FM e que apelam muito mais para fãs de Billie Holliday do que para uma audiência MTV.

Não que eu não goste do álbum - muito pelo contrário. Ouvi "Tidal" com uma obssessão maníaca, até decorar quase todas as músicas e letras, e até hoje acho difícil de acreditar que um disco desses possa ter saído da alma de uma garota tão jovem. Tudo bem, esse já se tornou um clichê sobre Fiona Apple: 90% dos textos escritos sobre ela se mostram pasmos com a qualidade da música e da poesia dessa garota prodígio que, aos 19 anos, lançou um disco que tinha uma profundidade lírica, um carregamento de sentimento, uma performance tão madura e tão complexa, que parecia realmente inacreditável que aquela garotinha magricela pudesse ter sido a criadora daquilo. "Tidal", falando sério, está entre os meus discos prediletos dos anos 90. "When The Pawn...", disco de menor impacto, mas de qualidade igualmente alta, também me ganhou inteiramente. E as palavras de Fiona... eu gostaria de pichá-las na parede do meu quarto:

"You say you'll never let me fall
from hopes so high
But 'never' is a promise
and you can't afford to lie"


Ou

"I lie in an early bed thinking late thoughts
Waiting for the black to replace my blue
I do not struggle in your web
Cause it was my aim to get caught"


Ou

"Honey, I don't feel so good, don't feel justified
Come on put a little love here in my void"


Ou

......




UMA LONGA GESTAÇÃO

Já se tinham passado uns 5 anos depois do lançamento de "When The Pawn..." quando me vi um tanto preocupado com a desaparição de Fiona: terá ela desistido da música? Entrou numa crise de inspiração incontornável? Vai parar de lançar discos? Se desiludiu com o sucesso e resolveu voltar à vida pacata? Fui buscar, como muitos outros, algumas informações sobre um provável terceiro disco que eu aguardava salivando. A internet, principalmente a partir de 2004, começou a se encher de histórias e boatos a respeito de "Extraordinary Machine": muitos garantiam que o álbum estava finalizado desde Maio de 2003, mas que a gravadora Sony havia se recusado a lançá-lo por falta de um single com potencial radiofônico, o que gerou uma onda violenta de protestos dos fãs.

Além de uma campanha internética chamada Free Fiona, que envolveu dezenas de sites e blogs, os fãs chegaram até mesmo a organizar protestos frente à sede da gravadora nos Estados Unidos exigindo que o álbum fosse posto no mercado imediatamente - o que a multinacional se recusou a fazer (pelo menos era o que se contava), aparentemente por um desejo de forçar Fiona a regravar o material ou ao menos tirar da cartola algum hit que repetisse o fenômeno "Criminal"... Todos diziam que havia ocorrido com "Extraordinary Machine" algo bastante semelhante ao que houve com outro famoso álbum recusado pelo mercado fonográfico mainstream por ser anti-comercial, o "Yankee Hotel Foxtrot" do Wilco: o material proibido vazou para a Internet.

Foi somente em 2005, às vésperas do lançamento oficial do álbum, que outra versão da história passou a circular: se dizia que, na verdade, não era só a gravadora que estava insatisfeita com o material gravado, mas a própria Fiona não havia curtido muito as gravações feitas com o produtor Jon Brion (que trabalhou, por exemplo, com Aimee Mann), contratando Mark Eliozondo para regravar "Extraordinary Machine" quase na íntegra. Que fique claro: o "Extraordinary Machine" que é, pra mim, o melhor disco desse 2005, é a "versão Internet", produzido por Jon Brion e que NÃO FOI LANÇADO OFICIALMENTE. Seria muito chato ficar aqui comparando em minúcias os dois álbuns, como fazem os fãs (na comunidade do Orkut, por exemplo); só digo que a versão Internet me pareceu imensamente superior: mais ousada, mais revolucionária, mais genuína, com uma sequência de faixas melhor pensada. Na dúvida, ouçam os dois.

Eu demorei pra me entender com "Extraordinary Machine". Minhas expectativas estavam tão altas que eu temia, antes da primeira orelhada, uma gigantesca decepção. Cheguei até mesmo a cogitar a possibilidade de não ouvir a versão do álbum que estava circulando pela Internet, que poderia ser somente um ajuntado de rascunhos e de músicas ainda não finalizadas, e esperar o lançamento oficial. Claro que a minha imensa curiosidade não me deixou levar adiante esse projeto. As primeiras audições realmente me deixaram um tanto apático e sem grandes entusiasmos: o álbum me pareceu um tanto "sem sentimento", com pouca musicalidade e muito ritmo bruto, muitas vezes pouco musical, beirando às vezes o atonal... A "dramática" Fiona Apple tinha parado de fazer drama e tinha se tornado mais amarga, mais realista, mais pé-no-chão. Cheguei mesmo a suspeitar que a Sony pudesse ter se recusado a lançar o álbum por razões diferentes das imaginadas por todos: não por se tratar de uma obra de arte grandiosa e cheia de méritos que continha o pequeno empecilho de não parecer lucrativa, mas simplesmente por ser um disco que não era bom o suficiente...

É que "Extraordinary Machine" não é desses discos fáceis de gostar "de cara": seus encantos estão velados, escondidos, e exigem um "trabalho de mineração" para serem descobertos. Esse é o Kid A de Fiona Apple. É como conhecer uma garota um tanto excêntrica e esquisita, que inicialmente não nos faz sentir nenhuma ardente atração, e que depois que a vamos conhecendo e com ela nos familiarizamos, começamos a amar. E com um amor muito maior do que aquele que poderíamos oferecer a uma outra garota que, a princípio, nos deixou boquiabertos e sem fôlego, mas que depois desceu no barranco da nossa afeição.

Esse é mesmo o disco mais esquisito e fora do padrão que Fiona já lançou, e leva um certo tempo até que a familiariedade se constitua e a relação engrene. Mas quando engrena... No meu caso, eu me vi voltando e voltando e voltando à "Extraordinary Machine", tentando desvendar seus segredos, decifrar o sentido de seus versos, sacar os porquês das coisas soarem como soam... E depois de audições repetidissímas (certeza absoluta que ouvi esse disco mais que qualquer outro durante esse ano) comecei a admirar profundamente essa pérola que demorou tanto para ter seu brilho reconhecido...

Um disco um tanto amargo, sim, como amarga parece ser a vida para Fiona Apple. O refrão da primeira música já chega proibindo o sentimentalismo: "This is not about love, cause i'm not in love!", nos certifica a pequena Apple, que realmente parece se apaixonar e se desapaixonar umas cinquenta vezes ao ano: "In fact, i can't stop falling out...". A música de Fiona Apple, numa visão simplista, pode mesmo ser entendida como um reincidente protesto contra os homens e uma série de reclamos sobre a impossibilidade de um amor satisfatório. Fiona é o tipo de pessoa que poderia ter escrito frases como "É impossível amar e ser feliz ao mesmo tempo" ou "Il n'y a pas d'amour heureux". A melhor maneira para responder à questão "do que falam as canções de Fiona Apple?" é dizer: falam sobre relacionamentos humanos fracassados e das reclamações e xingamentos que Fiona cospe fora como desabafo por suas decepções...

Desde reprovações contra a imaturidade do amado ("I tought he was a man but he was just a little boy"), contra a incapacidade de resistir a certas tentações ("Oh it's evil, babe, the way you let your grace enrapture me..."), contra as provocações que tentam suscitar a ira ("You wave the red flag, baby, you make it it run... You fondle my trigger than you blame my gun!"), contra a paixão que surge por uma pessoa sem méritos ("It doesn't make sense I should fall for the kingcraft of a meritless crown"), entre muitas outras, tornam a música de Fiona Apple uma galeria de numerosas reclamações contra esses seres abomináveis e sádicos que são os homens. Eles, no fundo, não prestam; mas a desgraça é que ela vive sem eles.

A pobre Fiona não entende nada sobre diamantes e porquê os homens os compram: "o que há de tão impressionante num diamante?", canta ela em "Red Red Red", segunda música de E.M., e a gente pode sentir a evidência do desapontamento que ela sente por ser cumulada de presentes caros quando tudo o que queria, talvez, era um pouco de sentimento sincero e amor ofertado... A única coisa de impressionante que há num diamante é a mineração, "and it's dangerous work trying to get to you too / and i think that if I didn't have to kill, kill, kill, KILL MYSELF doing it / I wouldn't think so much of you"...

Também a confiança perdida no amado e confidente é lastimada: em "Not About Love", ela reclama contra uma certa pessoa que lhe retirou confidências e depois as utilizou para piadinhas, desprezo e munição para a artilharia: "It doesn't seem right to take information given at close range / For the gag, the bind and the ammunition round!".

Na belíssima balada "Oh Well", a que mais faz relembrar os tempos de "Tidal", reclama que recebe como pagamento por sua "calma afeição" um olhar que perscruta as imperfeições e julga com olhar severo: "When I was watching you with calm affection / You were searching out my imperfections...". E depois completa com um refrão ao mesmo tempo doloroso de decepção e banhado em raiva: "What wasted unconditional love / On somebody who doesn't believe in this stuff!".

O bom é que uma certa dose de bom-humor vem salvar a música de Fiona de ser piegas, sentimentalóide ou choramingas. Em "Get Him Back", por exemplo, ela narra suas desventuras com uma série de sujeitos que demole com expressões cáusticas e desdenhosas, até cometer um verso adorável, talvez o mais applesco dos versos de Fiona Apple, o que melhor define sua música e seus sentimentos: "I think he let me down when he didn't disappoint me!"...

"I'm good at being uncomfortable", canta na faixa-título, num verso ao mesmo tempo divertido e melancólico, "so I can't stop changing all the time". Fiona Apple é isso: uma garota que parece sempre insatisfeita e que, exatamente por isso, está sempre se mexendo e se transformando e tentando se auto-superar. Em "Please Please Please", canta com uma certa ironia: "Nós podemos ouvir nosso triste cérebro gritando: 'Nos dê algo familiar, algo similar ao que já conhecemos! Algo que vá nos deixar estagnados! Parados, parados, indo a lugar nenhum...". Com "Extraordinary Machine", ela não atendeu ao desejo desse "triste cérebro coletivo": nos deu um disco aventureiro, ousado, maduro, diferente de tudo o que se pode ouvir hoje em dia, inclassificável e inimitável. Eis um disco que possui uma beleza sem pompa e sem fogos de artifício, mas que acaba tendo a capacidade de durar bem mais do que as belezas de espetáculo.

A arte de Fiona Apple também tem uma característica essencial: é extremamente pessoal. O que está em jogo aqui não é uma tentativa de fazer sucesso, ganhar rios de dinheiro, agradar o público a qualquer preço: tudo o que Fiona quer é expressar tudo o que vai dentro de sua alma, como grande artista que é, inclusive (e sobretudo...) as melancolias, as frustrações, os segredos íntimos, as feridas abertas... Rilke dizia que somente uma obra de arte que nasce por NECESSIDADE VITAL é realmente boa, uma idéia com a qual eu sempre concordei. Fiona Apple me parece ser um bom exemplo: tudo que ela canta parece ser de extrema importância para ela, de modo que ela nunca solta um verso sequer que não tenha um significado pessoal ou um impacto emocional para ela. Essa música, que Fiona faz mais pra si mesma do que para os outros, parece ser mesmo como um tubo de oxigênio que ela, submersa a maior parte do tempo, usa para conseguir continuar respirando, e que nos ajuda, também, a lançar ar puro para nossos pulmões.