A temporada de shows vai esquentando! Por ora, uma notícia do caralho: preparem já as camisas de flanela esfarrapadas, reassistam o filmaço Hype! pra entrar no clima grãnje e 'bora pra imperdivilíssimo show do sensacional MUDHONEY - dia 1 de Junho no Clash Club. Sem essa de que os caras são "tiozões enferrujados" e uma "mera sombra do passado"! Quem viu Mark Arm cantando com o MC5 no primeiro Campari Rock (um dos shows de róque mais fuderosamente empolgantes que eu já vi) sabe que o cara continua no maior gás, mais endiabrado que Denis O Pimentinha, mais enlouquecido que Iggy Pop, mais apaixonado pelo rock and roll do que Jack Black no Escola de Rock! O cara se taca no meio do povo, se estrangula com o fio do microfone, se usa de pano de chão e ainda tem tempo pra se esgoelar berrando punk rock como ninguém. Vai ser foda. Uma das bandas mais incríveis do grunge de volta ao país e dessa vez não perco - meu ingresso já tá garantido e meu Superfuzz Bigmuff já foi tirado da prateleira de CDs para perder a poeira. /// Mais dicas: hoje, Domingo, tem show do Medications - banda de Washington DC que grava pela Dischord, gravadora sempre confiável - digrátis no CCJ (e, logo mais, tem reprise no Studio SP); sexta-feira rola MopTop, os Strokes tupiniquins, no Studio SP e provavelmente estarei lá; pra quem curte rock clássico/progressivo, logo mais rola show do jurássico Jethro Tull (mas eu num vou); e, pra num falar só sobre música, tá rolando a imperdível exposição em comemoração aos 30 anos da morte da Clarice Lispector - que parece sensacional, também.
E confirmo presença nos dois funerais dos Los Hermanos - dia 8 e 9. Vou nadar no mar de lágrimas que irão chorar os fãs enlouquecidos, ser ensurdecido pela histeria dos órfãos aos milhares, dizer adeus (ou "até logo"?) a uma de minhas bandas mais queridas e enfim voltar para casa com um dilema irresolvível a resolver: como conviver perpetuamente com a saudade? =)
domingo, 29 de abril de 2007
:: ó quem vem aí... ::
Postado por Unknown às 10:08 |
quinta-feira, 26 de abril de 2007
- A HORA DE SE CALAR -
ensaio sobre a morte das bandas de rock
“it's better to burn out than to fade away”
[ neil young, hey hey my my. ]
A nação hermânica está em polvorosa com o anúncio de que os Los Hermanos entraram em “recesso”. Será o fim daquela que, desde já, pode ser tranquilamente considerada como a melhor banda de rock nacional desta década? Assim, tão de repente, os cultuadíssimos Hermanos vão abandonar os milhares que os idolatram como semi-deuses e simplesmente sair de cena, quando pareciam ter tantos atos ainda a representar? Ora bolas...! Eis uma boa ocasião pra filosofar e viajar sobre a morte das bandas de rock, o que faz com que elas se aniquilem e o que podemos fazer, nós pobres fãs abandonados, para nos consolar de nossa perda e melhor suportar o nosso... o nosso LUTO!
O mais engraçado de tudo é que, nesses casos, o artista que decide parar de criar, pelo menos por um tempo (ou pelo menos parar de tornar público aquilo que cria), é considerado como uma espécie de vilão. Que maldade nos privar de suas obras, senhor artista! Que falta de generosidade parar de nos entregar a arte que tanto nos deleita! Como se fosse por pura crueldade e avareza que ele, artista, meio que sem razão, decide parar as máquinas de sua fábrica e não mais entregar ao público o que nós demandamos, nos deixando assim, a passar vontade...
Mas a gente precisa entender. Todo artista, antes e além de ser artista, é somente uma pessoa, para quem a criação artística pode não ser assim tão fácil e prazeirosa quanyo imaginamos que seja. Muitos têm a noção ingênua de que os artistas são fábricas mágicas de obras-primas, que criam com a mesma naturalidade com que respiram, que para eles é tranquilíssimo, indolor e delicioso multiplicar quadros, filmes e canções... E pior: temos a tendência a achar que estão aí para nos servir e produzir incansavelmente algo que nos deleite, empolgue e eleve. Chegamos quase a exigir que continuem a encher de beleza nossa vidas - elas que transcorrem tão rodeadas pela feiúra e pelo tédio, e que tão pouco seriam sem a ajuda dela, a arte salvadora...
Só quem é artista - ou já tentou ser... - sabe o tamanho da dificuldade, do esforço, do trabalho duro, da ralação corporal e espiritual que é preciso suportar para chegar a produzir a tal da obra-de-arte. A receita para o bom artista, se pudesse haver uma, talvez seria: “Dez por cento de inspiração, noventa por cento de transpiração...” É o que dizia um grande pintor, não me lembro mais quem, que Sponville cita no Tratado do Desespero e da Beatitude. Se há pessoas que parecem ter um talento imensamente superior às pessoas comuns, eu acho que é muito mais porque suaram e suaram, tramparam e tramparam, por anos e anos, muito mais do que por possuírem um “dom divino”. É que normalmente esse longo período de “treinamento” e desenvolvimento se desenrola longe das vistas do público. É no esconderijo de seus quartos, estúdios, ateliês ou bibliotecas que os artistas se fecham para treinar, até que adquiram esse tal “talento” que os ingênuos julgam como sendo inato... “O espectador ocioso esquece esse labor, ou o ignora, e a obra-trabalho se torna obra-milagre”, como comenta o Sponville.
A teoria de que todos os dons artísticos são inatos é só uma superstição, uma lenda, uma mentira. E mais: é só um consolo que se dão os preguiçosos que não tem a energia para tramparem e ralarem até conquistarem os talentos que outros conquistaram. Pois eu sinceramente não creio nada em talentos dados por graça divina no nascimento, nem que há obras-milagre criadas do “nada” por alguém que nunca tenha gasto seu suor tentando aprender, se desenvolver, se superar... Fazer arte é cansativo, exaustivo, fatigante; tornar-se capaz de fazer boa arte, então, é um longo e sofridíssimo martírio.
Ou vocês acham que Jimi Hendrix já nasceu sabendo tocar guitarra e que Shakespeare já recitava versos no berço? Foi tudo aprendido, amigos. E se eles, mais tarde na vida, pareciam “gênios” de nascença, é só porque nós não pudemos vê-los quando eram leigos e iniciantes, é só porque não acompanhamos todo o percurso de vida deles, é só porque não vimos como foram se desenvolvendo esses “dons” (que nada têm de “caídos do céu”)! Quanta porcaria o garotinho Shakespeare deve ter escrito em folhas que depois lançou ao fogo, enojado! Quanto som horrível o pequeno Jimi deve ter tirado de sua guitarra quando era garoto, infernizando os ouvidos dos vizinhos, que certamente o julgavam alguém “sem nenhum futuro”...!
Toda obra-de-arte tem seu tempo de gestação específico. Ao contrário dos bebês humanos, que se formam pontualmente em aproximadamente 9 meses, sempre, a obra-de-arte não tem tempo certo para se transformar de feto em algo finalizado e pronto. Há livros ou quadros que levam décadas e décadas para serem completados – só pensar no caso de Goethe ou Dante, que levaram uma imensidão de tempo para acabarem o Fausto e a Divina Comédia. Por outro lado, há poemas que são escritos num ímpeto, em 5 minutos de inspiração pura, e entram direto na história da literatura e das obras-primas da beleza. Há partos facílimos, partos dificílimos, e todos os partos intermediários entre os dois extremos... Mas é inegável que o artista precisa, mais que tudo, de tempo para que a obra cresça dentro dele, para que suba das profundezas e seja agarrável na superfície; precisa de tranquilidade e sossego para ir dando forma e conteúdo para sua obra, devagar e sem neuras, sem pressões externas, sem deadlines...
* * * * *
Agora imaginem só se essas condições de criação existem no caso do Los Hermanos, a mais cultuada, vigiada e pressionada das bandas de rock desse país... Imaginem o tamanho da pressão exercida sobre esses pobres seres humanos, o tamanho da responsa, o tamanho das exigências com que são bombardeados de todos os lados, o tamanho da aporrinhação que têm que aturar de gravadoras, jornalistas e fãs chatos, o tamanho do temor de decepcionar... São centenas de dezenas de milhares de pessoas que aguardam ansiosamente, e por vezes com expectativas impossivelmente elevadas, pelo novo disco. São milhões de reais que estão em jogo - para quem considera a coisa sob o prisma comercial. São incontáveis revistas, jornais e zines os investigando, espiando, encurralando, loucos para debulhá-los publicamente em suas páginas. É de deixar qualquer um louco.
É só pensar que o Radiohead precisou de 4 anos para conseguir dar à luz o sucessor de OK Computer – e que parto difícil! E que coragem tiveram que ter para ousar decepcionar grande parte dos fãs e da crítica com aquela sonoridade tão estranha, claustrofóbica, industrial e sombria de Kid A...
É sempre bom lembrar que estamos falando de bandas que estão na folha de pagamento de gigantescas empresas multi-nacionais, para quem eles não são vistos de verdade como artistas, mas muito mais como empregados que estão ali para produzir, produzir e produzir – e de preferência algo que venda e venda e venda. Não deve ser nada agradável para Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante, dois poetas/compositores muito mais motivados pelo amor à arte do que pela ganância, terem que prestar contas para uma empresa que aguarda salivando pelo momento de tomar posse do material novo e comercializá-lo – e no interesse único de faturar milhões em cima. Uma gravadora certamente não é uma entidade que trate com o devido respeito o “tempo do artista”, que ofereça liberdade para que eles se demorem na confecção e no aperfeiçoamento da obra... Tudo tem prazos, deadlines, limites de custo; exige-se material novo pra data X, no máximo, como se o artista pudesse criar “à vontade”, como se pudesse ser “comandado” a criar como uma marionete, como se pudesse controlar as marés altas e baixas de sua criatividade. Todo mundo que já quis ser artista sabe que raramente sai algo que presta quando fazemos as coisas COAGIDOS DE FORA e com tempo certo para finalizar a coisa. Não sei de nenhuma redação escolar que tenha virado obra-prima literária – nem as que escreviam Clarice Lispector, Machado de Assis ou Guimarães Rosa...
Só imagino – e imaginem vocês também, por favor... - a dificuldade que deve ser para os Los Hermanos se saírem com um disco novo no meio desse furacão todo. E nós, fãs impiedosos, fazendo coro com a gravadora e com a mídia, ficávamos reclamando interminavelmente com eles porque estão demorando demais, como se fosse a coisa mais simples do mundo compor um disco novo. E agora ficamos ralhando, horrorizados, como se fosse um crime eles pedirem por um período de férias, sem a mínima noção desses martírios todos pelos quais eles podem estar passando...
Quem já se meteu a sentar para compor uma música – uma mísera musiquinha! - sabe bem o tamanho da dificuldade e o quanto é difícil criar qualquer coisa que preste. Imaginem um disco inteiro! E quando nossos artistas prediletos, cansados de tentar criar beleza, cansados talvez de seus próprios esforços e seus fracassos, cansados talvez de se sentirem decepcionados com o que acabam produzindo, pedem por um tempo de descanso, vem uma avalanche de reclamações... Temos é que ter dó dos caras! Ser artista é duro, povo! Duro pra caramba! =D
Os Los Hermanos, aliás, já têm um histórico de atrito e de angústia vinculada a toda essa situação de: 1) estar submisso a uma gravadora que só pensa em cifras e exige sempre algo minimamente comecializável (O Bloco do Eu Sozinho, como sabem os fãs, deu muito problema para ser lançado); 2) ter fãs chatos, histéricos e nada compreensivos, que ficam, por exemplo, exigindo certos hits em todos os shows (tantas vezes, e por tantos anos, eles se recusaram a tocar “Ana Júlia” ao vivo...); 3) a turbulenta relação com a fração da mídia, infelizmente majoritária, que é estúpida, ignorante e faz as perguntas mais clichê ou mais descabidas (ficaram clássicas certas “bolas-fora” da imprensa no trato com os Hermanos, e a correspondente “grosseria” com que os membros da banda começaram a tratar essa raça de desgraçados que são os jornalistas).
Portanto, é bom ter tudo isso em mente pra entender esse triste episódio que é o suposto “fim”, mesmo que provisório, dos Hermanos. Não sei – ninguém sabe, por enquanto... - quais foram as razões que levaram os caras a se declararem cansados de tudo e chamando por férias por tempo indeterminado. Não sei se houve choque com a gravadora, “diferenças artísticas” internas, dificuldades de convivência entre os membros da banda, cansaço em relação à toda a máquina da mídia e a todo o coro (que deve às vezes soar infernal) dos fãs histéricos, mas... Quer saber? Eu entendo perfeitamente os Los Hermanos. Imagino e compreendo o sufoco que devem sentir – eles e quaisquer outras bandas que estejam dentro da engrenagem capitalista da indústria fonográfica. Entendo que eles estejam de saco-cheio e querendo paz. Entendo que eles queiram férias, sem ter que ficar dando muita razão pra isso. Vocês por acaso pensam que trabalho de artista é fácil e tranquilo, pura diversão? É muita ilusão...
Entendo perfeitamente que os Hermanos queiram sair um pouco de baixo dos holofotes, ter amortecida tanta pressão, experimentar de novo um pouco do gostinho do anonimato... No lugar deles, eu provavelmente me sentiria parecido. Amarante e Camelo, sendo artistas genuínos e seres humanos sensíveis, como sei que são, nunca se aliariam ou se submeteriam de bom-grado a um “esquemão” que, no fundo, é tão criminoso contra a arte. Porque foi toda essa máquina esmagadora composta por fãs histéricos aos milhares + gravadora sedenta por lucros + mídia otária e sensacionalista que sufocou Kurt Cobain a ponto dele ir procurar refúgio primeiro na heroína e depois na morte. Foi toda essa engrenagem nojenta que fez explodirem movimentos de revolta dentro do rock – e que deu, por exemplo, naquilo que eu gosto de chamar de a Ideologia Fugazi (e salve o grande Ian MacKaye!).
O anúncio do “recesso” (e do provável “fim”) dos Los Hermanos não foi pra mim uma surpresa, nem um choque, nem um escândalo – e só mesmo quem não acompanhou o percurso da banda e quem não conhece os seres humanos que estão ali dentro pode ficar tão chocado com uma decisão assim tão coerente e tão compreensível. Qualquer artista sensível e brilhante tem necessariamente que se sentir angustiado ao estar numa situação dessas. Pra mim, não tem nada de absurdo nesse “grito de revolta”, nesse “basta!” que eles estão dando a toda essa aporrinhante pressão que “o Sistema” e nós fãs colocamos sobre os ombros deles até que eles mal pudessem respirar... Um pouco de compaixão pelos nossos ídolos não faz mal a ninguém. E todos nós sabemos o quanto é chato exigir demais de alguém, e ficar pressionando, e ficar cutucando, e ficar dizendo vai logo, vai logo... Minha teoria, talvez mirabolante e sem nada a ver com a realidade, é que os os Hermanos estão simplesmente batendo o pau na mesa e gritando: “Porra, gente, todos vocês, seus malditos, fãs, gravadora e mídia: sosseguem a merda do facho aê que assim não dá pra criar!!!”
Não foi surpresa, também, porque o 4 já me soava como um disco de uma banda que já não era a mesma dos golden years, ainda mais quando o comparávamos com seu antecessor, o grande grande Ventura. Que me entendam bem: acho o 4 um belo disco, bastante original e diferente, uma mini-revolução sônica, um obra-de-arte como poucas na história do rock nacional... Mas nele as coisas já soavam bastante heterogêneas e um tanto contraditórias, com as composições do Amarante e do Camelo parecendo mais músicas-solo de cada um deles do que um verdadeiro esforço de grupo. O que há de contribuição de Amarante a músicas como “Fez-se Mar”, “Pois É” e “Sapato Novo”? Dariam muito bem prum disco solo de Marcelo Camelo. E o que há de Camelo em “Os Pássaros” ou “Paquetá”, que parecem criações 95% amarantianas?
Por isso minha tese é de que até o Ventura os Los Hermanos foram de verdade um time unido, uma banda coesa, homogênea e compacta. A partir do 4 já começou a surgir a suspeita de que os 2 compositores principais já estavam meio que tomando rotas diferentes e estavam usando o resto da banda para fazer acompanhamento de músicas-solo. Tipo no White Album dos Beatles – que apesar de ser um discaço, é mais um conjunto de músicas-solo de Lennon, Macca e George com os Beatles servindo de banda de apoio (e que banda de apoio, meu!). Quem viu vários shows dos Hermanos acaba notando que em certas músicas do Amarante, o Camelo não faz quase nada, e vice-versa – dá até dó do cara ali no palco, quando não é dele a “música da vez”, sem saber direito o que fazer.
Sem falar que as sonoridades arrastadas, os climas melancólicos, dentro da discografia de uma banda que sempre primou por uma grande vitalidade, davam a impressão de que os Los Hermanos que fizeram 4 já eram uma banda cansada. Ultra-talentosa, sim, mas cansada. Mais ou menos do modo como parecem cansados o Kurt Cobain ou o Layne Stanley nos Unpluggeds MTV do Nirvana e do Alice In Chains. E, convenhamos, essa vida de rock star contratado por uma grande empresa, tendo que fazer centenas de shows, dar mil entrevistas e ainda ter tempo para ser um gênio é pra lá de cansativa...
Os Hermanos precisam de uma sesta. Por mim tudo bem. I don't blame them.
* * * * *
Sempre fui de opinião que banda é um troço que precisa saber acabar na hora certa – antes de encher o saco, perder a relevância ou se transformar em cover de si mesma. O artista tem que saber escolher a hora certa de se calar – para não dizer o que não precisa e acabar numa tagarelice vã, que não acrescenta nada e que só “suja” a reputação que ele criou no passado.
Acho que o artista precisa ter Semancol pra notar se ainda está em plena forma e vai continuar produzindo algo de relevante, ou se só está seguindo por inércia, cedendo a pressões externas, criando só porque a gravadora quer, a mídia pede e os fãs exigem... Criar só por criar, só pra aumentar a quantidade de álbuns na discografia, não tem sentido. E tem muita banda por aí que se arrasta nesse esquema – quando não é só por causa da grana...
Eu sinceramente não sinto muita tristeza quando minhas bandas queridas anunciam que estão parando suas atividades. Ano passado, quando acabou o Sleater-Kinney, umas das 5 bandas que eu mais amo, achei que elas fizeram muito bem de parar assim no auge e depois de um álbum tão fodido de bom quanto o The Woods. Teria chorado às cataratas se anunciassem que a Corin Tucker tinha morrido, isso sim – mas o fim do Sleater-Kinney foi pra mim mais como um “ufa! Elas acabaram e agora não há nenhuma chance de um disco ruim vir sujar uma discografia PERFEITA!”
Sou daqueles que agradece por certas bandas terem acabado logo – se o Nirvana, por exemplo, tivesse durado uns 20 anos, será que não teria estragado? Fico imaginando se Kurt Cobain, com 50 anos de idade, com os primeiros cabelo brancos já tomando a cuca, tocando “Smells Like Teen Spirit” com uma voz que estaria certamente horrorosamente fudida, não seria um espetáculo completamente constrangedor...
Eu sou daqueles que preferiria que o Clash tivesse acabado depois do London Calling (que me perdoem os fãs do Sandinista! e do Combat Rock, mas eu não eu curto muita coisa do Clash nos 80, apesar de adorar de paixão TUDO do Clash nos 70...). Sou daqueles que acha que o AC/DC devia ter parado antes do meio dos anos 80, que o último álbum dos Stones devia ter sido o Exile On Main Street, que o Black Sabbath podia ter pendurado a chuteira depois de Heaven and Hell e que os Ramones seriam menos zoados por aí se tivessem tirado férias em boa parte da década onde cometeram tantos álbuns medíocres e desnecessários (Animal Boy, Halfway To Sanity e demais bombas oitentistas).
Banda tem que acabar. Quando a relação das pessoas começa a deteriorar e estagnar, quando o prazer de estar junto e de tocar junto sumiu, quando a criatividade não está mais em alta, convêm mesmo parar e admitir: por hora, já deu o que tinha que dar. Bandas que souberam se desfazer no momento certo entraram pra história sem máculas, antes de terem cometido erros e feito merdas demais. Tipo os Pixies, os Sex Pistols, os Replacements, o Nirvana e o Sleater-Kinney. Acho que os Los Hermanos podem ser incluídos nessa lista de bandas sábias o bastante para pararem na hora ideal.
Não custa dizer que o número de anos que uma banda existe não quer dizer muita coisa em termos de relevância histórica ou do impacto gerado sobre o mundo do pop. Os Sex Pistols viveram por menos de 2 anos e marcaram pra sempre a história do rock and roll e, em geral, da “contracultura” nos anos 70. O Nirvana durou só de 89 a 94 e hoje em dia é considerada tranquilamente uma das bandas mais importantes, cruciais e influentes dos últimos 25 anos. E não custa lembrar que os Beatles só precisaram de OITO ANOS, de 62 a 70, para fazer tudo o que fizeram – e não preciso nem dizer que não foi coisa pouca. E não custa também, mais uma vez, enumerar o número de músicos e compositores que, mesmo tendo morrido antes dos 30, construíram obras imortais: Janis, Hendrix, Jim Morrison, Ian Curtis e Kurt Cobain morreram todos antes de entrar na casa dos 30.
Talvez a condição para realizar algo de fuderosamente bom no rock and roll seja justamente saber que o ímpeto criador é efêmero, como tudo, que a química entre as pessoas arrefece, que a juventude só está aí por um tempo, e que é preciso ter pressa e urgência... Todos que criam com intensidade acabam se gastando mais rápido – mas brilhando mais bonito... Neil Young disse a frase lapidar, perfeita e irretocável sobre o assunto, que até Cobain citou em sua carta de suicídio: “It's better to burn out than to fade away.” Concordo plenamente.
Então os Los Hermanos, pelo jeito, acabaram – ou pelo menos vão tirar férias prolongadas. É mesmo toda essa tragédia? Por um lado é: sem Los Hermanos, fica um imenso vácuo criativo no mainstream nacional, com tão poucas bandas merecedoras de atenção por aí, só restando mesmo salvação no underground, onde existem ainda coisa muito boas - como Wado, Eddie, Walverdes, Bidê Ou Balde, Cachorro Grande, Autoramas, Moptop, Bluebell, Luxúria, entre outros. Mas, por outro lado, tem seus pontos positivos. Concordo plenamente que eles encerram carreira, mesmo que provisoriamente, com muita dignidade – muita mesmo.
Os Hermanos são uma banda consciente demais do legado artístico que estão deixando para “sujar” sua discografia com um disco medíocre ou decepcionante. Talvez seja um favor que eles estão no fazendo ao nos poupar de uma possível decepção com o próximo disco – só eles sabem se o que eles vinham compondo prestava ou não e se estava de fato à altura do que já produziram... E eu confesso que estava com um certo medo do sucessor do 4 – disco, aliás, que eu achei, nas primeiras ouvidas, um tanto difícil e decepcionante, e que eu fui aprendendo a entender, curtir e admirar só aos poucos. O problema é ter um clássico lá atrás e sentir-se incapaz de superá-lo... O problema dos Los Hermanos era que tinham deixado no passado o Ventura, do mesmo modo que o Radiohead, coitado, nunca vai – nem eles nem ninguém! - criar algo à altura do Ok Computer.
A lacônica “nota de despedida” que a banda nos entregou não explica quase nada e deixa qualquer fã endoidecendo de curiosidade para saber de todas as “intrigas de bastidores” que estão por trás desse “recesso” com cheiro de morte dos Los Hermanos. Pelo menos ela nos garante que a amizade entre eles não saiu trincada e que eles continuam se juntando para um truquinho todas as semanas – e isso é bom. Nada impede que, daqui uns anos, role um glorioso reunion, cheio de confete, fogos de artifício e fãs deliciados, pra ficar na História – como foi com os Mutantes, que nesse 2007 voltaram, depois duns 30 anos separados, e fizeram um show de marcar época no aniversário de São Paulo, para mais de 50 mil pessoas, empolgando a todos nós que nos amontoamos ali na Praça da Independência para tal ocasião histórica.
Gosto de me imaginar com uns 45 anos de idade indo com meus filhinhos – de foguete, naturalmente, já que será 2030 e o Mundo Jetsons já terá tido tempo de se instalar entre nós... - para ver a Reunião dos Hermanos no Estádio do Morumbi – obviamente com gente saindo pelo ladrão. A filharada certamente não vai entender o que o paizão via naqueles velhos barbudos e vão caçoar do velho ao vê-lo chorar torrencialmente frente a uma banda que eles vão considerar como um troço de outra era...
E, se é pra brincar de Nostradamus, faço minhas profecias sobre o futuro próximo dos Hermanos: Marcelo Camelo vai provavelmente encarnar de vez sua persona Chico Buarque/Dorival Caymmi e vai se sentar no banquinho com um violão no colo pra cantar doce algumas lindas canções que vão deixá-lo marcado definitivamente na história da MPB. Daqui uns anos, provavelmente lança uns livrinhos de poesias (cujas “noites de autográfo” serão luais à beira-mar, com Camelo de chinelo de dedo e camisa havaiana). Depois faz uns filhos, a quem ensina violão, composição, poesia e todos aqueles acordes difíceis que aprendeu esses anos todos – teremos uma dinastia dos Camelo parecida com as do Buarque de Hollanda, podem escrever. Depois ele se aposenta e vive à la Vinícius de Moraes, na gandaia, só observando as garotas cariocas passando de biquini à beira da praia e arranhando um violãozinho de noite, só pros amigos...
Já o que vai ser do Amarante é mais difícil de imaginar e de prever, mas é quase certeza que ele é um cara mais “de banda” - talvez comece um projeto paralelo com músicos do underground, misturando poesia, teatro, malabarismos e contorsões corporais, tudo meio doidão e experimental – a crítica vai adorar e o grande público não vai entender. Vai provavelmente assinar alguns filmes, cuja trilha sonora também vai assumir, e ser um cineasta underground semi-cultuado. Também vai publicar uns livros, que doutores em letras analisarão em teses enormes... De resto, vai viver sussa, porque sussa sempre foi.
Guardemos nossas lágrimas! Os Hermanos só merecem nossa alegria e nossa admiração, só merecem que continuemos no nosso culto – e nosso choro não os fará reclinar... Pois faz tempo que eles avisam que todo carnaval tem seu fim, que a vida é mesmo passageira e que a estrela, cedo ou tarde, ia acabar por cair. Mas também diziam que a estrada vai além do que se vê e que o esquema é deixar o amanhã pra gente sorrir. E sorrir com esse passado lindo que eles criaram e que nos deixaram, com esse passado que condensaram em quatro discos passados que não passaram nem vão passar, com esse passado que vai fazer parte, por tanto tempo, do nosso presente e do nosso futuro...
(Dia 8 e 9 de Junho, pois, não me chamem pra nada que já tenho compromisso: duas festas de despedida dos Los Hermanos, que fã nenhum pode se dar ao luxo de perder - pra mim, seria como ser adolescente nos anos 60 e perder Woodstock. Eu tenho que estar lá. E não é novidade me mandar pro Rio de Janeiro só pra ver show: já fiz isso anos atrás pra ver White Stripes, The Rapture e Super Furry Animals na primeira edição do TIM FESTIVAL – e valeu muito a pena. Estou desde já à procura de mais 4 almas empolgadas que queiram rachar o álcool pr'um road movie trash a ser rodado em super 8 no comecinho de Junho: Jornada ao Funeral Alegre dos Los Hermanos. Bóra? =)
terça-feira, 24 de abril de 2007
:: cute little thing ::
you're chewing aspirins like M&Ms
anything to dull the pain.
the doctor says it's nothing that
a little courage wouldn't fix.
so they put you up on morphine
and they strap you to the bed
saying "darling it's just a bad dream,
it will all be over soon..."
keep movin on'.
[casey dienel. fat old man. ]
forgive me for not writing back sooner to your fervent e-mail, which, by the way, was very kind of you. i'm astonished to have such an ardent fan in far-away brazil, and honored! myself, i couldn't hope to do more with my songs than inspire other people and perhaps provide some kind of comfort or assurance with them. i will do my best to maintain that kind of tradition in the future. thank you for writing! xox.casey"
"dear eduardo,
Postado por Unknown às 16:10 |
:: 3 poemas ::
INSCRIÇÃO PARA UMA LAREIRA
A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida...
* * * *
leite, leitura,
letras, literatura
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo,
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura.
* * * * * *
We never know how high we are
Till we are called to rise;
And then, if we are true to plan,
Our statures touch the skies.
The heroism we recite
Would be a daily thing,
Did not ourselves the cubits warp
For fear to be a king.
- na ordem: mário quintana, paulo leminski e emily dickinson -
Postado por Unknown às 10:10 |
domingo, 22 de abril de 2007
:: eddie ::
Esse Brasilzinho é mesmo um país engraçado. Aqui se coloca em pedestais seres humanos indiscutivelmente escrotos (nem vou começar a enumerar pra não deixar esse parênteses do tamanho de uma Bíblia...), mas se ignora e se condena ao ostracismo pequenos gênios da música popular - que acabam assim, soterrados no underground para sempre... O fato de quase ninguém ter sequer ouvido falar de Eddie (e de Wado tb...) é um crime inafiançável da mídia brasileira, da MTV, das rádios, e de todos nós que não descobrimos essas coisas a tempo e não fizemos a boa-nova passar no boca-a-boca – porque eis uma banda que merecia (e muito) ter estourado tanto quanto estourou Chico Science e, em menor escala, o Mundo Livre S/A.
É um tanto inexplicável o porquê o Eddie acabou sendo, pelo menos para nós aqui no Sudeste, uma banda completamente desconhecida em comparação com seus primos ricos do manguebeat. Mas o grito de “manguebeat é o caralho!” até é justificado – porque pregrar no Eddie de manguebeat é reducionismo demais. Os caras são de tudo: são dub, são funk, são samba, são rock pra dançar, são MPB, são música eletrônica - são até forró, de vez em quando... Banda ultra eclética, como também eram os irmãos mais famosos dentro da cena recifense que revolucionou a música nacional nos anos 90. Mas eu me sinto quase tentado a dizer mais: “Música brasileira é o caralho! Isso é World Music!” (Hehe!)
Porque o Eddie é como Guimarães Rosa: é regional mas é universal. Toca esse bagulho lá pra juventude jamaicana e os caras certamente vão se amarrar. Toca pr'um estudioso do dub, que conhece a fundo o trampo do Lee Scracth Perry e do Augustus Pablo, e ele vai colocar o Eddie na mesma linhagem. Toca pr'um fã de rock alternativo que curte Talking Heads fase-Remain In Light ou Jane's Addiction fase-Ritual de Lo Habitual que o cara vai notar na hora que o experimento sônico do Eddie é tão excêntrico e radical quanto o empreendido por David Byrne no começo por 80 e por Perry Farrell no começo dos 90. Toca pr'um povinho moderninho que curte dançar com as guitas funkeadas do Rapture, do Kasabian, do Radio 4 ou dos Klaxons, e eu não duvido nada que eles caiam na farra ao som de Eddie. E toca pras mulatas sambantes com Carnaval no sangue que elas sambam em cima de todas as músicas...
E é absolutamente incrível a completa ENTREGA do público ao som dos caras e dos caras pro público – não dava pra sentir no ar nem um pingo de “divergência cultural”, nem um pingo de “superioridade” paulistana frente à música nordestina, quase ninguém “analisando” e julgando racionalmente o som, com aquela arrogância de quem pensa que tem bom gosto... Era curtição geral. Era uma festa – uma festa sussa, mas uma baita duma festa. Você olhava ao teu redor e tava todo mundo se mexendo, cada um dançando dum jeito, todo mundo suando em bicas, todo mundo sequestrado pelo groove...
O Eddie, banda já veterana, não tem aquela “ansiedade” de bandas mais novatas, que se sentem na obrigação de impressionar a todo custo e dar um espetáculo arrasa-quarteirão: os caras fazem tudo no maior sossego, na maior paz, como quem sabe muito bem do próprio valor e não tem medo de nada, desnovelando devagarzinho um som que vai te conquistando aos poucos... É contágio certo aquele groovizinho mortal que parece perpassar todas as músicas, aqueles batuques contagiantes, aqueles versos tão simples mas tão agradáveis, sempre sobre o cotidiano, mas sempre o vendo com uma certa poesia do povo...
Show do Eddie não chega nem perto de ser tão intenso, barulhento e pirotécnico quanto um show da Nação Zumbi ou do Cordel do Fogo Encantado – mas o Eddie é o tipo de banda que a gente aguentaria assistir a um show que durasse umas 3 horas. Mais: eles podiam tocar a madrugada inteira, até o amanhecer, que a gente ia continuar dançando e curtindo. Porque essa porra não cansa; você reza pra que aquele groove mágico e invisível fique ali, flutuando no ar, eternamente, só pra você curtir estar no epicentro daquele delicioso e suave terremoto... E ainda rolam aqueles solos de trompete em certas músicas, que descem pelo ouvido e pela alma como açúcar, estabelencendo conexões improváveis entre o mangue-beat e o jazz, entre a música Nordestina e uma abordagem quase Los Hermanos dos metais, entre o dub e o funk...
O Eddie não tem nada de “intelectualismo” e quase nada de “pretensão” - são uma banda de música popular, que nos shows de Olinda deve certamente ser curtida por todas as classes sociais, de mendigos a playboys, de leigos a críticos musicais. Sem limites rígidos entre os estilos, o Eddie passeia à vontade por todo o espectro musical e se dá em tudo que faz, e com uma incrível naturalidade. Provavelmente o show é bem melhor do que as músicas gravadas, mas eu recomendo sem medo: roubem, gravem, baixem, sequestrem, mas não deixem de ouvir os CDs do Eddie!
Eu, aliás, saí todo contente do Studio segurando meu Original Olinda Style comprado por 10 pilas (e quanto tempo fazia que eu não comprava CD original...) - e pressionando os amigos que têm os outros para me gravarem todos o quanto antes. Se, antes do show, em papos tipicamente FFLCHianos, papeamos sobre de tudo em pouco (analisando o Labirinto do Fauno em minúcias, lamentando o genocídio em Ruanda e o pós-colonialismo na África, passando para os cineastas brasileiros nos EUA e como Waltinho Salles e Fernando Meirelles vão botar pra quebrar em Hollywood...), no fim do show o único assunto que sobrou, a única coisa que conseguíamos nos dizer, enquanto enxugávamos o suor nas camisetas já encharcadas, era: mas que show do caralho! De longe, uma das bandas brasileiras mais interessantes que eu já conheci, um dos shows nacionais mais irretocáveis que eu já assisti, pra coroar um fim-de-semana pra lá de trimmassa...
Postado por Unknown às 11:10 |
sábado, 21 de abril de 2007
:: querido diário, versão musical... ::
E o show do Leela é legal. Não é emo porque emo é aquela coisa "ai como a vida é dura e ai quero me matar" e o Leela tá de bem com a vida, obrigado. Lembra Breeders, Elastica, Blondie, ou mesmo um Green Day com vocal feminino. Mas a atração principal mesmo é a Bianca... que mulherão, fellas! Valeu a noite só estar ali na primeira fila, frente àquele espetáculo de mulher, com aquelas mechas de cabelo louro caindo pela cara, os dedos com unhas vermelhas correndo pelo braço da guitarra, com um vestidinho sexy de matar... É de deixar louca a libido de qualquer um... =D
Já o Bluebell, banda indie-rock chefiada pela lindinha Bel Garcia, é uma preciosidade. Musicalmente, bem superior ao Leela, um som mais bem trabalhado, mais interessante, com letras (pelo que deu pra sacar) bem mais sofisticadas. E a Bel tem carisma, presença de palco, simpatia - e uma voz que, apesar de "magrinha", dá conta do recado. Tem tudo pra ser uma das bandas mais legais do Brasil - tô louco atrás do primeiro disco deles, o Slow Motion Ballet, que infelizmente não estava sendo vendido por lá ontem. O nome da banda também achei brilhante, meio que se referindo à leve melancolia por trás do som e da Bel, que é uma menina kind of blue, meio que a Aimee Mann do rock brasileiro independente... Blue Bel Garcia, you're so lovely!...
E, vejam só, a terceira musa da noite estava no público, circulando entre nós, pobres mortais. Adivinhem só quem assistiu o show inteiro do Bluebell quase do meu lado, sentadinha num sofá, meio solitária? A Pitty. Pois é. Aquela mesma do "o importante é ser você, mesmo que seja bizarrô, bizarrô, bizarrô..." Até curto uma ou outra coisa da carreira dela (tipo "Teto de Vidro") e até acho que ela tem uma "atitude" legal, bem mais legal do que o estilo Courtney Love de ser uma mina porra-louca. Até curtiria voltar pra casa me dizendo que conheci a Pitty. Mas fiquei com vergonha de ir lá dizer oi e todo o blá-blá-blá falso e artificial que as pessoas sempre dizem: admiro muito sua música, você é demais, me dá um autógrafo... a gente nunca sabe se as estrelas querem ser reconhecidas e cumprimentadas, ou se querem ser deixadas em paz. Eu até ensaiei coisas pra dizer pra Pitty pra começar uma conversa ("ei, você é a Pitty ou é uma sósia?" - achei muito imbecil da minha parte...). Desencanei. Num tenho coragem de puxar papo nem com as meninas indie normais, imagina com as celebridades!...
Postado por Unknown às 10:27 |
quinta-feira, 19 de abril de 2007
:: divagações sobre o clássico da lit nacional... ::
Me lembro até hoje da primeira vez em que ouvi falar de A Paixão Segundo G.H. Eu estava no terceiro colegial, me preparando para enfrentar o vestibular no final do ano e lendo freneticamente todos os livros exigidos pela Fuvest – e entre eles estava A Hora da Estrela. A aula de literatura no colégio era, de longe, a minha predileta – eu a assistia com grande deleite, enquanto que era puro martírio suportar (e entender...) a química, a física e a trigonometria... O professor de literatura, o Mário, foi um dos mestres da época que eu guardo na memória com maior carinho - e foi ele o grande responsável por me “iniciar” no mundo da Clarice Lispector. Era um carinha engraçado, ainda bem jovem e crianção, provavelmente saído da facul de Letras há meia dúzia de anos, ainda transpirando verdadeira paixão pela literatura... Ele tinha um rosto meio de desenho animado, um jeito de andar pela sala meio gozado, um senso de humor extraordinário e um dom sublime pra dizer as coisas de um jeito que soava sempre delicioso - as palavras saíam da boca dele suculentas, gostosas de ouvir, como se fizessem cócegas por dentro...
Poucos professores marcaram mais minha vida do que o Mário; em poucas aulas da minha vida me senti tão alegre quanto naquelas em que ele narrava as desventuras de Brás Cubas ou o “caso de amor” entre Macabéia e Olímpio. Dava vontade súbita de ir ler todos aqueles livros que ele narrava, pelo menos para aprender a falar tão gostoso como ele falava. Era um professor que tinha realmente o dom de tornar os alunos loucos de curiosidade por ler as obras que ele comentava. Lembro do dia em que ele nos contou, por uns 10 minutinhos, bem às pinceladas, sobre a onda de suicídios que o Werther do Goethe causou na Alemanha, logo depois de publicado, resumindo em palavras penetrantes e sombrias a tragédia do pequeno Werther e seu amor impossível por Carlota. Ele nos deixou tão interessados na historinha – a do romance e a dos jovens que se suicidaram para imitar o protagonista... - que fez com que grande parte da sala ficasse doidinha pra sair correndo da escola e ir retirar o clássico do romantismo alemão na biblioteca. Baita façanha frente a uma turma de adolescentes que, no geral, eram muito mais empolgados por (confessemos!) video-game, televisão e punheta do que por livros...
O Mário era naturalmente brincalhão e jovial – eu sempre estava mais alegre ao fim de uma aula dele do que estava no começo. Tinha aquilo que eu depois aprendi a chamar de um espírito lúdico (algo que talvez só o contato prolongado e prazeiroso com a literatura e a poesia consegue nos fazer adquirir...). E hoje em dia é tão difícil achar qualquer professor que faça o mesmo... Que desfile pela sala com prazer, com alegria, com uma vontade sincera de transmitir às pessoinhas ali sentadas seus conhecimentos e suas paixões...!
Nunca vou me esquecer da minha surpresa no dia em que o Mário entrou na sala todo melancólico, com os olhos de quem havia chorado, com um grande peso invisível nas costas, inexplicavelmente carrancudo, e até expulsou uma pessoa da sala por conversar demais... Fiquei com uma dó danada. Depois nos informaram que o pai dele havia morrido na véspera. Achei escandoloso o mundo. Devia ser proibido o pai do Mário morrer e o Mário ter que ir dar aula no dia seguinte... Ah, sim, devia ser completamente proibido.
Na época eu não falei pessoalmente com o Mário nenhuma vez – era um discípulo que admirava o mestre à distância, um aluno pra lá de tímido, que nunca foi lá nem dizer obrigado pelas dicas de leitura que ele dava – e pelo exemplo humano que ele me era. Talvez por isso eu esteja escrevendo sobre ele aqui – não só porque sempre que penso em Clarice Lispector lembro do meu mestre Mário, numa daquelas associações de idéias inevitáveis, mas que só funcionam para mim, com a minha experiência de vida, mas também pra manifestar uma espécie de gratidão tardia, que eu até comunicaria por e-mail ou carta, se soubesse de seu paradeiro: "valeu, mestre! A você eu devo grande parte da minha paixão pela leitura, fortalecida naquela época, e que felizmente não perdi mais... "
Mas estou falando tanto no Mário só porque o Mário era fãzaço da Clarice Lispector - e se derretia em elogios sinceros e empolgados a ela. Dizia inclusive, meio de sacanagem, que ela era “bem bonitona”, “apesar de meio esquisita”. Eu achava graça. Ele não queria saber de ser um “professor” imparcial nem nada: dizia na cara dura que achava o Eça de Queirós um autor meio mala e que a Clarice, em comparação, é que tinha escrito um livro brilhante, magistral, lindo de chorar... e se perdia em adoração, com o olhar no horizonte, enquanto declarava seu amor ao A Hora Da Estrela: “tão lindo, mas tão lindo...”
E foi o Mário que, em alguma de suas deliciosas aulas sobre Clarice Lispector, comentou que ela havia escrito um romance inteiro sobre uma mulher que ficava olhando para uma barata o tempo todo e só “viajando na maionese”. Fiquei com isso na cabeça desde aquela época: preciso ler o romance viajandão da Clarice sobre a mulher e a barata! Demorei anos e anos, mas finalmente fui, nesse Abril de 2007, conferir A Paixão Segundo G.H. E agora me pergunto: ah, por que demorei tanto!? =)
Agora já sei que reduzir esse livro (certamente um dos mais profundos que um autor brasileiro já escreveu) ao mero embate entre uma mulher e uma barata é muito reducionismo. Mas sei também que “vulgarizar” a idéia principal do livro era uma das táticas do mestre Mário para cativar seu público adolescente, que raras vezes parecia interessado no que ele dizia, meio que nos convidando a penetrar nesses mundos literários...
O que acontece no mundo lá de fora é sempre menos importante na obra da Clarice do que aquilo que acontece no mundo lá de dentro. Perdão pelo rótulo fácil e batido, mas ela é, como todo mundo sabe, uma escritora extremamente subjetiva. O incrível (e isso me deixa boquiaberto de admiração) é que ela tenha conseguido escrever 200 páginas riquíssimas, densas e frequentemente geniais sobre um episódio que qualquer um de nós, mortais comuns, não conseguiria usar como matéria-prima para qualquer esforço literário prestável. Imaginem-se tentando escrever uma “historinha” sobre uma mulher que encontra uma barata no armário! Sairia algo de bom? Eu duvido. Eu, pelo menos, escreveria algo que soaria ridículo e bobo frente ao que conseguiu escrever Clarice Lispector com esse “tema”. E é isso que faz o grande artista ser um grande artista: uma percepção de mundo extremamente original, uma sensibilidade quase sobre-humana, capaz de entrar em “viagens loucas” em cima de um fato do mundo aparentemente banal, fútil e insignificante – como uma mulher com nojo de uma barata...
* * * * *
A pior maneira de abordar esse livro é ir a ele querendo entendê-lo por inteiro, como se entende um teorema matemático, um sistema científico ou silogismo filosófico – e entendê-lo com a cabeça somente, o que é sempre o pior. Minha dica para os marinheiros de primeira viagem que se propõe a navegar por esse oceano turbulento que é A Paixão Segundo G.H. é a seguinte: se importem pouco em ler com a Razão e só com a Razão. Esse livro não é pra ser entendido, pessoas... É pra ser sentido, é pra ser experenciado, é pra ser viajado – digo mais, até: é pra ser ingerido como um entorpecente, uma espécie de mescalina literária que pode nos ajudar a viver todas aquelas loucas experiências que o Aldous Huxley relatou depois de tomar seus alucinógenos. É preciso ser como a própria G.H. e ter “a coragem de um sonâmbulo que simplesmente vai” (pg. 15).
O que a Clarice faz nesse livro é nos levar num passeio vertiginoso dentro da alma de uma mulher que descobre, tateando e com medo, alguma verdade importantíssima sobre a vida e o universo - e que vai nos relatando, aos trancos e barrancos, entrando progressivamente no “poço”, essa sua experiência tão singular. Ela, porém, teme esse próprio segredo que lentamente vai descobrindo, teme se perder no desconhecido em que se joga, e a mão que ela pede em vários trechos do texto talvez seja a própria mão do leitor. “Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão”, diz G.H. logo no início de seu relato, quase suplicando: segura minha mão, amigo leitor, que estou com medo... e vamos juntos entrar nesse quarto escuro... E pede até perdão por nos trazer para um ambiente onde vigora tanta confusão e tanta vertigem:
“Sei, é ruim segurar minha mão. É ruim ficar sem ar nessa mina desabada para onde eu te trouxe sem piedade por ti, mas por piedade por mim. Mas juro que te tirarei ainda vivo daqui – nem que eu minta, nem que eu minta o que meus olhos viram. Eu te salvarei deste terror onde, por enquanto, eu te preciso. Que piedade agora por ti, a quem me agarrei. Deste-me inocentemente a mão, e porque eu a segurava é que tive coragem de me afundar. Mas não procures entender-me, faze-me apenas companhia...” (pg. 98-99)
Eis um livro extremamente difícil de entender, com certeza absoluta – mas toda grande obra-de-arte tem um quê de mistério, um quê de inexplicável, algo que permite voltar a ela, vezes sem fim, tentando decifrar o que está ali escondido... A decifração aqui não é nada fácil; mas é um enigma delicioso de enfrentar. Sei bem que os mais caçoadores podem até desprezar Clarice Lispector por não ter feito nada além de ficar realmente “viajando na maionese” por 200 páginas: esse é o tipo de obra que grande parte das pessoas pode até ler inteirinha, e até com muito gosto, mas no final acabar por dizer: “pô, não entendi porcaria nenhuma...” Mas é bobo xingar o artista e dizer que ele não presta só porque nós não o entendemos, ou não o entendemos por inteiro: quem sabe nós é que não estamos à altura? Quem sabe nossa sensibilidade e nossa inteligência é que precisa se desenvolver, e muito, para que nos alcemos ao nível dele?
De qualquer jeito, esse livro é "exigente". Eu tenho a impressão de que um certo “repertório” filosófico é essencial pra conseguir acompanhar Clarice nessa viagem, que tem vários pit-stops na metafísica, na teologia e no misticismo. A gente precisa ter na bagagem pelo menos um pouco de conhecimento, mesmo que superficial, sobre as “doutrinas místicas” orientais presentes em textos como os Upanishades, os Vedas, o Bhagavad Gita, o Livro Tibetano dos Mortos e coisas semelhantes. Ou pelo menos ter lido algum dos autores mais modernos que tornaram mais acessíveis aos leigos as obscuras doutrinas indianas antigas: tipo o Osho, o Krishnamurti, o Heinrich Zimmer, o François Jullien, entre outros. Ao mesmo tempo, a abordagem da Clarice muitas vezes beira o existencialismo e ela dá impressão de ter lido muito Heidegger, Sartre e Camus. A experiência vivida frente à barata me lembrou bastante a famosa Náusea sentida pelo protagonista do famoso romance sartriano, provável influência mais forte neste A Paixão Segundo G.H.
A barata, afinal, pode ser considerada como um símbolo de como a realidade pode ser feia e grotesca. E o contato com a barata (mesmo que seja meramente visual) é um símbolo de algo na realidade que nos dá vontade de fugir, que causa quase uma “revolta”, que quase “nos força” a cometer um assassinato brutal e irracional de um ser vivo que, afinal de contas, nenhum mal nos fez. A barata é uma daquelas coisas da realidade que faz com que os homens, quase instintivamente, sintam repugnância, nojo e desejo de matar. É uma das “coisas feias da realidade”, uma das coisas que preferiríamos que não existisse na realidade, um fragmento da realidade que recusamos...
Mas o problema é que: quem for avançando na leitura do relato de G.H. vai notar que ela está, no fundo, engajada numa missão de tentar AMAR A CRIAÇÃO POR COMPLETO, sem nada excluir nem incluir, sem “transcender” o real ou fugir para um paraíso ou além qualquer, sem escapar do presente através da esperança ou dos sonhos. E talvez – é isso que Clarice talvez esteja querendo nos dizer... - recusar qualquer fragmento da realidade é um grande erro na vida. A sabedoria estaria, quem sabe, na aceitação completa da “Criação” exatamente como ela é. Se fosse para encontrar uma única frase em A Paixão Segundo G.H. que sirva como uma espécie de “moral da história”, eu escolheria esta: “...o erro básico de viver era ter nojo de uma barata.” (pg. 164)
E o diabos isso quer dizer?! Quer dizer que precisamos APRENDER A AMAR AS BARATAS? Sei que essa idéia fará muitos darem risada... De que adiantaria isso? Que ganharíamos amando uma barata? Amor correspondido certamente que não...! Estaríamos “salvos”, atingiríamos a maior das sabedorias, se conseguíssemos amar uma barata?! Parece o maior dos absurdos, a maior das loucuras, talvez um sintoma de que a pobre Clarice Lispector tinha uns parafusos faltando, fala sério... Mas não desprezemos rápido demais uma idéia só por ser diferente e excêntrica. Talvez haja algo de profundo nisso tudo?...
Quem sabe isso: quem consegue amar uma barata, que outra coisa não poderá amar? Quem ama uma barata, eu suspeito, consegue amar qualquer coisa – amar tudo. E é justamente isso que G.H. está querendo conquistar: o amor de tudo, e o amor de tudo que há agora - e não o amor do que será a vida de amanhã ou o futuro prometido, não o amor de um “outro mundo”, purificado de tudo o que este aqui tem de feio, sujo e desagradável... A conquista que ela procura é o amor da Realidade, e da Realidade inteira – uma realidade, ou uma “Criação”, que inclui baratas, aranhas, cobras, vulcões, maremotos e tudo mais que nós chamamos de “feio” e “injusto”.
É como se ela dissesse: a coisa não precisa ser bela ou boa para que você a ame! Mais que isso: é como se ela dissesse que não existe nada mais importante na vida do que aprender a amar justamente o que não é nem belo nem bom – o que ela traduz numa fórmula poderosa, dizendo que precisamos aprender a amar o neutro.
* * * * *
O DEUS DE G.H.
E por quê é tão importante “amar o neutro”? Porque a realidade em conjunto, no fundo, na perspectiva que a Clarice Lispector expõe nesse livro, é inteiramente neutra. E quando ela fala em “Deus” parece usar a palavra mais ou menos como a usava o Spinoza: num sentido panteísta. Deus é quase um sinônimo de “Universo”, um sinônimo de “Tudo O Que Existe”. E, claro, esse “Tudo Que Existe” é muito maior que o humano – é trans-humano, sobre-humano, indiferente ao humano... “Deus”, no fundo, é neutro – e é um grande erro antropomórfico pensar que Deus age como um homem. Em linguagem mais simples, isso equivale a dizer que Deus não está nem aí pra nós. Deus é o Universo inteiro, e está ocupado demais existindo e sendo tudo que existe para se ocupar dos homens, que são só uma pequena parte “Dele”. Deus não está “lá fora” do Universo, olhando-o de cima: Ele É o Universo... E se Deus é neutro e “indiferente” ao destino dos homens, nada mais necessário do que aprender a amar o neutro. Nos momentos mais teológicos do livro, Clarice descreve os santos, ou seja, os mais perfeitos amadores da divindade, assim: “A grande bondade do santo – é que para ele tudo é igual. O santo se queima até chegar ao amor do neutro”. (pg. 170)
Somos tolos demais ao imaginar Deus como um velhinho barbudo, sentado numa nuvemzinha, coçando seu cavanhaque e mandando raios e tempestades para a Terra ao sabor de seus humores, enquanto observa-nos com um binóculo... “O que é Deus estava mais no barulho neutro das folhas ao vento que na minha antiga prece humana” (pg. 134), diz G.H. Ou seja: o Deus de Clarice é uma entidade “sem sentimentos”, um Deus que se confunde com o próprio Cosmos, um Deus que é a soma de toda a matéria que existe (“eu estava no seio de uma matéria que é a explosão indiferente de si mesma...”), um Deus que está em tudo e que É tudo - e que, por isso, está inclusive nas baratas!
“Aguenta eu te dizer que Deus não é bonito...” (pg. 160), nos diz G.H. E quem de nós aguenta, hein?! Pois isso, no fundo, é dizer que Deus “não quis” fazer um mundo bonito, porque Deus “não quer” nada – querer é coisa que fazem os homens e só eles. E, segundo G.H., não devemos enxergar “finalidades secretas” na Criação. Àquele famoso dilema “o olho foi feito para ver, ou acabou adquirindo essa capacidade de ver por acaso?”, ela responderia provavelmente com a segunda opção.
“Não é para nós que o leite da vaca brota, mas nós o bebemos. A flor não foi feita para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu cheiro, e nós a olhamos e cheiramos. A Via Láctea não existe para que saibamos da existência dela, mas nós sabemos. E nós sabemos Deus. E o que precisamos Dele, extraímos. (Não sei o que chamo de Deus, mas assim pode ser chamado.) Se só sabemos muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos Dele o que fatalmente nos basta, só temos de Deus o que cabe em nós. (...) Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. O leite a gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa. Quanto mais precisarmos, mais Deus existe.” (pg. 151)
Essa concepção de Deus e do Universo vai ter suas consequências um tanto assustadoras – e que me parecem profundamente existencialistas. Camus e Sartre, creio eu, não discordariam nada das “conclusões filosóficas” que a personagem de Clarice tira: que no mundo não existe nenhum plano estético e também nenhum plano ético. Olhando aquela barata horrorosa à sua frente, G.H. tem forçosamente que concluir: o mundo não foi feito para que nós o achássemos bonito! (Apesar de ser possível, é claro, de vez em quando, que nós tenhamos essa experiência estética da beleza do Cosmos...). E vendo um bichinho inocente a sofrer injustamente um martírio indizível, ela tem que concluir também: o mundo não foi feito para que o achássemos justo! Nossa tarefa, então, é tentar amar o mundo mesmo com toda a sua falta de beleza e de justiça – amá-lo justamente como ele é, e em completa identidade... O trecho seguinte é crucial:
“Não quero a beleza, quero a identidade. A beleza seria um acréscimo, e agora vou ter que dispensá-la. O mundo não tem intenção de beleza, e isto antes me teria chocado: no mundo não existe nenhum plano estético, nem mesmo o plano estético da bondade, e isto antes me chocaria. A coisa é muito mais que isto. O Deus é maior que a bondade com a sua beleza. Ah, despedir-se disso tudo significa tal grande desilusão. Mas é na desilusão que se cumpre a promessa, através da desilusão, através da dor é que se cumpre a promessa, e é por isso que antes se precisa passar pelo inferno: até que se vê que há um modo muito mais profundo de amar, e esse modo prescinde do acréscimo da beleza.” (pg. 160-1)
O que Clarice narra é sim uma espécie de experiência mística de uma mulher que consegue “se despersonalizar”, desfazer-se de seu “eu” ilusório, livrar-se das formas convencionais de pensamento e sensibilidade, abandonar toda a esperança, para viver uma espécie de unificação com o Todo, de experiência pura do presente, onde já não existe nem esperança, nem moralidade, nem estética. Ela não exige que o mundo que ela está experenciando seja belo nem que seja demonstravelmente “bom”, moralmente falando: ela tenta aceitá-lo como vêm, inclusive com baratas agonizantes soltando das entranhas uma gosma nauseante. Em uma frase que é puro Camus, Clarice nos convida a “aceitar a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão.” (pg. 177)
O que importa é aprender a amar sem necessitar da beleza como “isca” - amar a realidade, amar a vida, com um amor total, que não exclui aquilo que há de feio ou de doloroso na realidade e na vida. Clarice Lispector poucas vezes foi mais nietzschiana do que em certos trechos de A Paixão Segundo G.H.! Sua “filosofia” tem muito a ver com a de Nieztsche: recusa de qualquer tipo de transcendência, recusa da esperança, recusa de uma Criação com um “sentido” último, recusa da fuga em direção à imaginação (de um paraíso, de uma redenção, de um outro tipo de realidade...). Em certos trechos, Clarice parece juntar no liquidificar um pouco de Nietzsche, de budismo e de cristianismo, acabando por parir trechos magistrais como esses:
“...agora estou aceitando amar a coisa! E não é perigoso, juro que não é perigoso. Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos. Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente.
Escuta. Eu estava habituada somente a transcender. Esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe que adiava a atualidade para uma promessa e para um futuro. Mas descubro que não é sequer necessário ter esperança.” (pg. 147)
* * * * *
NÃO À ESPERANÇA!
A recusa da esperança é importantíssima aqui – e está espalhada por vários lugares do livro. A conclusão que se impõe – e é a mesma conclusão a que chegaram Nietzsche, Spinoza, Sponville... - é a de que a esperança não passa de alienação, de fuga da realidade, de auto-engano, de um crime contra nossa vida presente e todo o Universo que temos frente a nossos sentidos no momento presente. Aliás, quem conhece as religiões orientais sabe que todos os grandes exercícios espirituais de meditação, no fundo, se reduzem a destruir a esperança para se concentrar totalmente no presente – é nele que estaria o “divino”!
“...eu quero a atualidade sem enfeitá-la com um futuro que a redima, nem com uma esperança – até agora o que a esperança queria em mim era apenas escamotear a atualidade.” (pag. 83)
Com o fim da esperança, o que ocorre não é um afogamento em qualquer tipo de desilusão amarga e deprimente, como pensam os ingênuos, mas sim a experiência sublime de contato imediato com a realidade atual, que brilha e explode com toda a força... O fim da esperança é o começo de uma experiência ativa e direta com a vida e com o Universo. É como G.H. percebe: que “...prescindir da esperança – na verdade significa ação, hoje” (148); que “prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a me prometer a vida.” (149)
E como Sponville teria adorado essas páginas de Clarice Lispector! Como estão próximos os dois nessa concepção da morte da esperança como uma experiência de beatitude – com a diferença de que Clarice chama de amor ao neutro o que Sponville preferiu chamar de amor ao silêncio – mas os dois se unem quando dizem que matar a esperança é o único meio de amar o Real – e amar o Real o único jeito para sermos felizes, é claro... É impossível ter esperança e ser feliz ao mesmo tempo.
“E agora estou arriscando toda uma esperança acomodada, em prol de uma realidade tão maior que cubro os olhos com o braço por não poder encarar de frente uma esperança que se cumpre tão já – e mesmo antes de eu morrer! Tão antes de eu morrer. Também eu me queimo nesta descoberta: a de que existe uma moral em que a beleza é de uma grande superficialidade medrosa. Agora aquilo que me apela e me chama, é o neutro.” (pg. 161)
E qual é o “segredo” descoberto, enfim? Qual é o prêmio no final dessa viagem? É descobrir que, de certo modo, já estamos “salvos”, já estamos no “Reino”, já estamos “no Céu” - só não sabemos disso. “...é como se eu estivesse me dando a notícia de que o reino dos céus já é. E eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só aguento a sua promessa!” (pg. 149) Vivemos como tolos que, estando já no Céu, ficam sonhando em ir pro Céu num futuro distante!... É essa esperança de um Céu em outro tempo e em outro lugar – essa esperança... - que nos cega para o fato de que já estamos envolvidos pelo Deus-Universo, rodeados pelo Deus-Universo por todos os lados, sendo tocados pelo Deus-Universo em cada um de nossos poros e em cada um de nossos fios de cabelo. Temos medo de olhar de cara para o Deus-Universo e descobrir esse “paraíso” onde já vivemos, esse “colo” divino no qual já estamos deitados... Contra os dogmas tradicionais da teologia cristã, que dizem que iremos (no futuro...) voltar ao seio de Deus, Clarice e G.H. dizem que já estamos no seio de Deus – mesmo que seja de um Deus inteiramente neutro...
“Ele é, e nunca pára de ser. Somos nós que não aguentamos esta luz sempre atual, e então a prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já. O presente é a face hoje do Deus. O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus.” (149)
O prêmio é descobrir a realidade, que é “a promessa que se cumpre” - e que se cumpre sempre. Andamos e andamos, viajamos e viajamos, e no final não saímos do lugar: se Clarice teve sucesso, a única coisa que mudou são os olhos com que olhamos para aquilo que já tínhamos frente a nossos olhos antes. “...olha pelo que lutei, para ter exatamente o que eu já tinha antes, rastejei até as portas se abrirem para mim, as portas do tesouro que eu procurava: e olha o que era o tesouro!” (137)
No fim do percurso, acaba por se dizer: “O divino para mim é o real” (pg. 169). O que é, no fundo, algo radicalmente contrário à toda a tradição cristã e platônica que infesta a nossa cultura a dois milênios. Aquela cultura, que Nietzsche tão raivosamente criticou, e que localiza o divino não no real, mas numa “outra dimensão”, num paraíso posterior, num outro lugar... É isso que se chama de “transcender”: fugir do mundo como ele é em direção a um construto imaginário tido como “divino” e cheio de valor. Para o cristianismo e para o platonismo, esse mundo aqui não vale nada e não tem nada de divino: tudo o que é divino e tudo que vale está do lado de lá, no além túmulo, no Mundo das Idéias, no Paraíso... Clarice Lispector, se alinhando com Nietzsche e Camus, vai dizer que não: esse mundo aqui é o único que vale! essa realidade aqui, onde nós já estamos, com todas as criaturas que aqui existem, é que é divina!
Isso tudo me faz lembrar da famosa frase do poeta William Blake, no Matrimônio do Céu e do Inferno: “tudo que vive é sagrado”. Claro que a experiência cotidiana de todos nós renega completamente esse verso. Pois alguém sente, de verdade, que está destruindo algo verdadeiramente sagrado ao pisar numa barata ou esmagar com o dedo uma formiga? Dificilmente. Mas isso é algo que merece ser questionado: que direito temos nós de acharmos que está perfeitamente certo matar outras criaturas só pelo fato de que elas nos parecem “feias” e “sujas”? (E quem disse que elas nos acham bonitos e limpos, hein? =) ) Quem disse que nosso nojo, uma mera reação física do nosso organismo, nos habilita a matar? (E quem disse que outros animais não nos acham nojentos também, hein? =) Que direito temos de acabar com existências, sem nem pensar sobre isso, sem o mínimo sinal de “culpa”, só por que nos auto-proclamamos “reis da natureza”, muito especiais e sublimes e superiores? (Sendo que nenhuma outra criatura nesse planeta parece mais destrutiva e mais capaz de causar danos ao meio ambiente do que o homem – que é um verdadeiro “desastre ecológico”, como dizia um professor de biologia que eu tive...)
Então parece que o percurso que faz a personagem da Clarice parte do Nojo e da Náusea frente ao animal grotesco, e no fim da travessia, após todas aquelas digressões filosóficas e teológicas que ela registra tão bem, acaba por resultar numa divinização da realidade, numa transformação espiritual que resulta num jeito mais profundo de amar o mundo... Do nojo suscitado por uma barata ela acaba numa espécie de experiência mística de união com o Mundo – e considerando-se como que afogada no oceano de matéria neutra que, se quisermos, podemos chamar de Deus, de Universo, de Cosmos ou de Tudo Que Existe...
Dizem de Santo Agostinho que ele, após atingir a “santidade” verdadeira, era incapaz de machucar uma mosca. Isso depois virou uma espécie de clichê sobre a “santidade”, que todo mundo diz quando pedem descrever um “santo” (“ah, santo é aquele não machucaria nem uma mosca!”). Acho que manter isso em mente pode ser bastante importante para sacar o essencial do que a Clarice Lispector tentou comunicar em A Paixão Segundo G.H. Santo é aquele que considera o conjunto do Universo como sendo totalmente "obra divina" e que por isso se recusa a recusar qualquer parte da realidade. Pensando bem, todos os que se dizem "cristãos convictos" e matam baratas, formigas e moscas aos milhares por toda sua vida agem de um modo um tanto complicado... Pois se a pessoa acredita que Deus criou o mundo e todas as criaturas nele, e se vai e "declara" que certas criaturas são feias, nojentas e merecem morrer, é como se estivesse reprovando seu Deus por ter criado errado, por ter feito um mau serviço, por ter lançado na Terra bichos que nem mereciam ter nascido... O "santo", pelo contrário, tentaria escapar de sua perspectiva fechada no antropomorfismo e aceitar (quem sabe até amar...) o Conjunto da Criação - se recusando, pois, a matar o que quer que seja.
Da próxima vez que vocês se depararem com um barata, amigos, espero que pensem duas vezes antes de esmagá-la debaixo do sapato: há mais coisas entre a sola e o chão do que sonha vossa vã filosofia... :D
Postado por Unknown às 12:33 |
Marcadores: literatura, livros
:: dilema existencial ::
A vida é mesmo muito complicada...
(E essa piada foi roubada duma camiseta. Eu não tenho tanta originalidade assim.)
Postado por Unknown às 10:29 |
quarta-feira, 18 de abril de 2007
:: aguenta mais vinícius? ::
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
(VINÍCIUS DE MORAES, Livro De Sonetos)
Postado por Unknown às 08:54 |
sexta-feira, 13 de abril de 2007
:: "...ninar o meu sangue revolto..."
A última novidade é que tô subindo como um foguete nas hierarquias da Cicerolândia, a minha mais nova república: já pulei duma edícula semi-tosca no quintal pr'um dos melhores quartos da casa, lá em cima do sobrado amarelo, com banheirinho firmeza do lado. E - pasmem! - agora vivo COMPLETAMENTE RODEADO DE MULHERES (ú-rú!). Sim, me jogaram na Ala Feminina da casa, talvez por acharem que, por ter "alma sensível e meiga" (sai pra lá, ô...) e estudar filosofia, eu "não ofereço perigo"... =) E eu, ao invés de reclamar e me sentir ofendido por estarem me tratando como se eu fosse mariquinha, até agradeci... Eu lá quero morar ao lado de homem e ficar ouvindo peidos e roncos na madrugada? Mulher é melhor que homem em todos os aspectos. Eu sempre fui feminista convicto.
“Um coração juvenil pende inteira e unicamente de uma moça, passa a seu lado todas as horas do dia, oferece-lhe todas as suas forças, tudo o que possui para lhe deixar claro a todo instante que se entregou a ela por inteiro. E eis que vem um filisteu, um homem de boa posição, com cargo público, e lhe diz: ‘Meu bom rapaz! Isso de amar é próprio do homem; porém tendes de amar como homem! Dividi bem o vosso tempo, dedicando parte dele ao trabalho, e as horas de folga à vossa namorada. Calculai vossa fortuna e, com o que sobrar depois de atendidas vossas necessidades, não vos proíbo de dar a ela de vez em quando, mas não com muita frequência – talvez no aniversário e no dia do seu santo -, um presentinho...’ Se o nosso rapaz seguir esses conselhos, se tornará uma pessoa bastante útil, e eu até mesmo o recomendaria a qualquer príncipe, a fim de lhe dar um emprego em sua chancelaria; mas quanto ao amor, adeus... E se for artista, adeus talento. Ó meus amigos! Por que é que a torrente do gênio transborda tão poucas vezes e tão poucas vezes chega a ferver, em encrespadas ondas, sacudindo vossas almas letárgicas? Queridos amigos... É que além, nas duas margens, habitam homens graves e ponderados, cujas casinhas ajardinadas, prateleiras de tulipas e campos de hortaliças seriam levados pela torrente se os mesmo não houvessem sabido defender suas propriedades do perigo iminente a tempo, construindo diques e desvios...”
* * * * *
“Quantas vezes tenho de ninar o meu sangue revolto até acalmá-lo... Tu sabes que não existe no mundo nada tão instável, tão inquieto quanto o meu coração. Se é que tenho necessidade de dizê-lo a quem tantas vezes carregou o fardo de me ver passar da aflição à digressão, da doce melancolia à paixão furiosa, meu caro! É por isso que trato meu coraçãozinho como uma criança doente, satisfazendo-lhe todas as vontades.”
“Ah, o que eu sei, toda a gente o pode saber! Mas o meu coração só a mim pertence...”
Postado por Unknown às 12:43 |