- EM 5 FILMES VISCERAIS E DOLOROSOS -
OS AMANTES DE PONT-NEUF [Les Amants Du Pont-Neuf / Lovers On The Bridge, de Leos Carax, França, 1991] Este é um controverso e originalíssimo clássico do cinema francês nos anos 90 e um dos filmes mais poéticos e visualmente entorpecentes que eu já vi. A espetacular Juliette Binoche, de longe uma das atrizes mais talentosas (e lindas) de sua geração, passeia magistralmente pela tela aqui, divina num de seus papéis mais diabólicos e difíceis: é talvez a sua performance mais marcante, mais até do que as de A Liberdade é Azul ou A Viúva de Saint-Pierre – coisa de deixar boquiaberto... Ela precisou se "enfeiar" bastante para esse filme, mais ou menos como a Charlize Theron no Monster, mas o poder e o charme dessa atuação vem muito mais do talento transbordante da atriz (Juliette... um daqueles exemplares de Mulher Perfeita...), do que das transformações exteriores que ela sofreu para encarnar esse personagem tão incomum...
Juliette é uma misteriosa pintora mendiga que fixa residência na Pont-Neuf, uma das mais famosas de Paris, e passa a viver ali junto com outros esfarrapados miseráveis. Misteriosa e solitária, a personagem de Juliette (que está progressivamente perdendo a visão, como a Bjork de Dançando no Escuro), vai lentamente criando um laço afetivo esquisito e indefinível com seu amigo mendigo, interpretado brilhantemente por Denis Lavand. O que começa como um retrato sórdido de vidas miseráveis e imundas transforma-se numa doidíssima e psicodélica história de amor, enquanto Leos Carax realiza uma síntese impensavelmente brilhante entre a realidade mais crua e sofrida e a fantasia mais mágica. Se David Lynch tivesse tentado fazer um filme de amor e dor, depois de ter usado um pouco de LSD, talvez soaria como algo parecido ao resultado de Os Amantes de Pont-Neuf...
É um filme sobre o amor na beira do abismo, entre duas pessoas que já ultrapassaram faz muito a linha da sanidade mental e que chegaram a uma espécie de eufórico niilismo. É também um doloroso retrato de um personagem que cai num estado de completa dependência em relação a sua amada e que fará de tudo – inclusive causar imensos incêndios e assassinar pobres inocentes – para impedir o maior dos horrores: ser abandonado pela mocinha. As “viagens visuais”, que incluem muitos fogos de artifício, cuspição de fogo, jornadas subterrâneas pelo metrô e outras imagens altamente poéticas, são um espetáculo à parte – eis um filme bom pra ver chapado, e que chapa quem o assistir sóbrio...
Foi um dos filmes de orçamento mais caro da história do cinema francês (28 milhões de francos), de parto mais difícil (levou quase 3 anos pra ser finalizado), de lançamento mais problemático (o filme é tão controverso que demorou 9 anos para ter lançamento no Estados Unidos, e só foi de fato lançado pelos esforços do fã Martin Scorcese). Mas tantas dificuldades valeram a pena ser transpostas, pois o resultado é de encher os olhos... Pra mim, além de ser um originalíssimo experimento de cinema dionisíaco, poético até a embriaguez (o cinema transformado em droga psicodélica!), deve ser um dos 5 melhores filmes franceses que já vi, senão o melhor - o que não é dizer pouca coisa, já que a França é com certeza um dos países mais abençoados pelo Deus do Cinema... Extremamente recomendado.
Reza a lenda que o filme tem altos elementos auto-biográficos e que Vincent fez esse filme movido à raiva, ressentimento e sadismo. O espectador realmente sente que por trás desse filme estão vários sentimentos sórdidos e sujos, mas que não deixam de darem como resultado uma obra cinematográfica excitantíssima. Esse parece ser um filme em que Vincent Gallo, feito um adolescente rebelde e ressentido, que quer se vingar dos maus-tratos sofridos pelos pais, vai e faz uma obra-de-arte que é uma espécie de crucificação pública de seus próprios pais. É um filme cruel e malvado de um menino doentio e endiabrado. Precisa dizer mais como recomendação?
Além de um peculiar filme de amor, Buffalo '66 é também um road movie saturado de humor negro, com uma atuação pungente e visceral de Gallo, que nunca mais repetiria uma performance tão autêntica e tão forte, despertando no espectador, ao mesmo tempo, muita compaixão, identificação, repulsão. Christina Ricci também dá show, numa divertida performance que não tem nada de convencional: ao invés de encarnar a menininha apavorada e acuada à mercê de um perigoso criminoso, ela parece estar achando o máximo a aventura de estar sendo seqüestrada por um maluco, tacando-se de cabeça na vida dele e acabando por se apiedar do destino do pobre Vincent. O amor entre os dois vai nascendo do estado lamentável em que ambos se encontram - como se ele se agarrasse a ela como um náufrago se agarra a uma bóia...
Em seu filme seguinte, o polêmico e difícil The Brown Bunny, que contêm uma famosinha cena de sexo oral explícito de Gallo com a Chloe Sevigny, o diretor-autor-compositor criou algo muito mais deprê, arrastado, experimental, “ambient” - de digestão extremamente difícil. Já Buffalo ’66 é mais fácil de adorar, e de cara: tem uma narrativa linear, um senso de humor apurado (apesar de perverso), uma trilha sonora de primeira, uma montagem espertíssima e um sabor delicioso de coisa clandestina e feita com as tripas pra fora. Além disso, comparado com o ambiente sufocante de labirinto sem saída de The Brown Bunny, Buffalo ’66 é quase um filme feliz, com um desfecho que deixa entrar até bastante luz numa história que todos esperavam que fosse dar em tragédia e muito, muito sangue... Um dos grandes clássicos do cinema indie americano nos anos 90.
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DESPEDIDA EM LAS VEGAS [Leaving Las Vegas, de Mike Figgis, EUA, 1995]. Uma das histórias de amor mais regadas a álcool e niilismo que o cinema já registrou – e também uma das mais melancólicas, desoladoras e belas que eu já tive o prazer de ver numa tela. Lembra um pouco um romance de David Goodis e seus anti-heróis perdidos na vida e tendo como único recurso o esquecimento das mágoas num bancão de bar ou nos braços de alguma parceira sempre fugaz... Pode também ser visto quase como uma revitalização do clássico Farrapo Humano do Billy Wider, um dos filmes mais “fortes” que já ganhou (merecidamente) um Oscar de Melhor Filme. Quem sabe pode até ser visto como o equivalente cinematográfico de um improviso de cool jazz?
O personagem do Nicolas Cage, um alcoólatra maníaco-depressivo, já começa o filme demonstrando sua opção por ir aos extremos: faz fogueira com suas fotos e seu passaporte (adeus ao passado e ao futuro!), enche sacos e sacos de lixo com tudo o que possui (adeus aos bens materiais!), vende seu carro (adeus locomoção!) e se manda pra Las Vegas com um único objetivo: beber até morrer. E isso não é metáfora: esse filme não é sobre hedonismo ou diversão – é sobre pura auto-destruição.
Em Vegas, conhece a Elizabeth Shue, lindíssima como nunca, que interpreta uma prostituta maltratada por um cafetão muito malvado. Poucos imaginariam que poderia dar uma história tão linda o romance entre um alcoólatra suicida e uma prostituta de Las Vegas, enquanto ambos perambulam pelos cassinos e avenidas lotadas de néon da cidade do jogo e do pecado... Mas deu sim uma linda história, que demonstra, às vezes, como pessoas no fundo do poço conseguem encontrar a ternura e a solidariedade em tempos difíceis – como mostra aquela cena em que ele, ao invés de tratar a prostituta como um objeto sexual a ser usado, simplesmente suplica: “fica aqui, me ouve, me abraça, só quero isso...” Que humanidade, que decência e que ternura às vezes emanam desses que estão perdidos na vida!...
Alguns gostam de enxergar no filme um retrato de um caso de amor incondicional, em que cada um dos pombinhos aceita o outro exatamente como ele é, sem pedir que mude um grão de sua personalidade ou de sua vida para agradar o outro (“I accepted him as he was and didn't expect him to change...”). Isso fica muito bem simbolizado pela garrafinha que a moça dá de presente para seu amado, como se dissesse: “Beba o quanto quiser, seja um alcóolatra insano o quanto quiser, que eu te amo mesmo assim, do jeito que você é...”, e no que ele diz a ela: “Não me importa que você seja uma prostituta, te amo mesmo assim...”. Em uma das cenas mais sexies da história do cinema não-pornô, a Elizabeth Shue, de maiozinho preto, despe seus seios à beira da piscina, se encharca de uísque e dá de mamar para o Nicolas Cage, já doidaço de tão chapado, enquanto a câmera de Figgis, com um Sol belíssimo brilhando lá atrás, traz magia e poesia para uma cena que tinha tudo para ser de uma vulgaridade cafona...
Mas não acho que dê realmente pra dizer que essa é uma linda história de "amor incondicional" - porque é claro que as coisas não são assim tão simples e tão fáceis e que essa "aceitação incondicional" de cada um pelo outro é algo que vai se deteriorando enquanto o enredo vai progredindo até que... mas não vou estragar a surpresa! :)
John O’Brien, o autor do romance auto-biográfico que inspirou o filme, suicidou-se antes do filme ser rodado – o que já indica bem que sua bebedeira e sua auto-destruição não eram de brinquedo, nem eram mera “exibição de machice”. O Nicolas Cage entendeu muito bem isso e encarnou seu personagem sem transformar o alcoolismo em algo cool, nem muito menos fazer de sua completa confusão mental e sentimental algo admirável. É um personagem de dar dó e não um personagem que nos deixe com vontade de imitá-lo. E é extremamente admirável que um filme americano de grande porte, que foi indicado a vários Oscars, seja tão corajoso a ponto de não fazer concessões ao final feliz, à saga do herói que vence todos os obstáculos ou a um ilusório amor redentor...
Tem um crítico que definiu muito bem o porquê deste ser um filme importante: ”Por natureza, a maioria das histórias de amor são insistentemente otimistas. Um tom jovial e um final feliz são quase obrigatórios. Então é pouco usual para um romance mergulhar tão profundamente nos reinos sombrios da psique humana quanto em Despedida em Las Vegas. Este filme é um exame tanto do poder quanto da impotência do amor. Essa emoção não é, como a maioria de nós poderia pensar, uma mágica cura que varreria para fora os problemas e tribulações da vida. Tampouco é um portal para a salvação.”
Sem falar que talvez nem o amor mais incondicional seja capaz de salvar um homem disposto a se perder e se aniquilar, um homem que não se acredita merecedor de um amor tão grande, um homem que desistiu de si mesmo, como quem pára de apostar as fichas num certo número da roleta depois de tanto ter perdido, e que se entrega, todo, à decisão de tomar um suicídio no conta-gotas... Ou melhor: um suicídio a garrafadas e garrafadas de álcool.
Raras vezes o cinema americano foi tão melancólico, tão cruamente realista, tão amargamente poético e tão quietamente trágico quanto em Despedida Em Las Vegas. Um filme para ver e admirar com o copo de uísque na mão e com as lágrimas de compaixão chovendo sobre as bochechas...
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CONTRA A PAREDE [Head-On, de Fatih Akin, Alemanha, 2005] Neste filme alemão, vencedor do Urso de Prata em Berlim (o primeiro longa germânico a realizar a proeza depois de 18 anos), vemos surgir um improbabilíssimo caso de amor entre dois completos ferrados na vida. Ele, Cahit, é uma espécie de bêbado-mendigo-suicida, que já começa o filme arranjando briga feia no bar e lançando o carro contra um muro, à toda velocidade (infelizmente, acaba por sobreviver). Ela, Sibel, é uma pós-adolescente revoltada contra o puritanismo de seus pais muçulmanos e que vira uma mistura de libertina, ninfomaníaca e punk – também especialista em tentativas de suicídio fracassadas. Como panorama sócio-cultural, o clash entre duas civilizações e dois sistemas de valor: o da Alemanha e o da Turquia (o diretor Fatih Akin, aliás, tem conhecimento de causa de sobra sobre o assunto: é um alemão nascido de pais turcos).
Contra A Parede é um dos filmes mais fortes e radicais que eu já vi, do tipo que merece muitos daqueles adjetivos bombásticos tão legais de usar: selvagem, incendiário, subversivo, devastador, polêmico, chocante, horrorshow... - e coisas do tipo. Certas cenas “chocantes” de violência repentina só encontram paralelo nas ultra-violências grotescas do Irreversível de Gaspar Noé . Mas Contra a Parede é muito, muito mais filme – enquanto o filme do Noé me parece “ostensivo” e exibido demais, com coisas que são muito “choque pelo choque”, o 5º filme deste Fatih Akin (o primeiro que eu vejo) é muito mais realista, cru e poderoso.
Um casamento de conveniência se tornando um caso de amor pungente; uma paixão inesperada acabando em tragédia, homicídio, prisão e a vaga promessa de um difícil reencontro. De início, a mocinha só pede ao cara que finja ser sua esposa (mais ou menos do jeito em que o Vincent Gallo, no Buffalo '66, "pede" - pondo um trabuco na cabecinha dela... - pra Christina Ricci se fingir de esposinh). A única coisa que a mocinha quer (ela não tem nada de romântica e com certeza não pensa ter achado seu "príncipe encantado"!) é arranjar um pretexto para dar o fora da casa dos pais. Ele aceita se casar (uns 2 dias depois de conhecer a moça numa clínica para suicidas!), mais porque ela ameaça se matar se ele não o fizer, do que realmente por gostar dela. Eles começam o filme se odiando. Casam ainda se odiando. Mas ai...
A princípio, marido e esposa (mas que casal mais incomum!) se tratam como se fossem meros roomates ou amigos punk dividindo uma pocilga imunda – e ela, a mocinha, dorme por aí sem o mínimo pudor, já que a fidelidade não estava no contrato de casamento dos dois. E o moço, por sua vez, está tão preocupado tentando ser uma imitação classuda de um mendigo bêbado bukowskiano que não parece se importar se a “esposa” está ou não com outros homens... Porém, com o tempo, imprevisíveis laços mais fortes vão se criando entre os dois, uma paixão violenta e desesperadora vai tomando conta, e com isso chega também ciúme e a possessividade – e esses sentimentos, num filme que sempre leva ao espectador aos extremos, vão acabar, como era de esperar, gerando banhos de sangue. E depois, uma quase impossível jornada na tentativa de uma reparação ou uma redenção quase impossíveis...
Numa cena ultra-legal, os dois personagens principais estão dançando/pogando/pirando ao som de algum pós-punk imundo e gritando: “o punk não morreu! O punk não morreu!” Depois de ver algumas das cenas deste filmaço – aquele que Sibel estoura uma garrafa e rasga os pulsos com os cacos, aquela em que Cahit acelera o carro e o joga contra um muro, ou aquele em que três mendigos espancam a mocinha quase até a morte... – podemos tranqüilamente criar um grito de guerra parecido: “o cinema punk não morreu! O cinema punk não morreu!” E olha que é um filme de amor... :)
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Já BARFLY [de Barbet Schroeder, EUA, 1987] é uma perfeita adaptação de um roteiro original do velho bêbado-poeta Charles Bukowski, o próprio. Esse lendário escritor, que já tinha se aventurado a escrever algo relacionado ao cinema no ótimo romance Hollywood, criou aqui um roteiro para um filme que não foge nada ao seu velho estilo. Barfly é um filme tão fiel ao espírito do velho Buk que eu freqüentemente me esqueço que o diretor é o tal do Barbet Schroeder e quase saio dizendo por aí uma bobagem grande: “cê já viu o filme que o Bukoswki dirigiu?”
Isso já é dizer bastante: se tivesse se aventurado a ser cineasta, provavelmente Buk acabaria fazendo filmes muito parecidos com Barfly. A interpretação do Mickey Rourke é perfeita, totalmente verossímil – difícil pensar em qualquer outro ator que poderia ter encarnado melhor esse personagem do escritor compulsivo que não vê graça nenhuma na vida fora da máquina de escrever e do balcão de bar. Só que Barfly é também um filme de amor, por assim dizer – e a Faye Dunaway dá show como a companheira do Mickey Rourke. Claro que no filme acontece pouca coisa de extraordinário: não se sai muito do cotidiano cheio de bebedeiras e papos de existencialismo barato, com os personagens gastando quantidades imensas de tempo perdidos no bar, debruçados sobre o balcão, arrumando briga ou reclamando sobre tudo... Buk, aliás, além do poeta dos bêbados, era também o poeta dos extremamente-entediados e dos incrivelmente-ranzinzas-e-rabugentos...
No ótimo documentário Born Into This, em uma entrevista sobre o que achou sobre a interpretação do Mickey Rourke, o Buk declarou tê-la achado um pouco “exagerada” demais, já que ele, segundo ele mesmo, não era assim tão “ostensivo” – era bem mais “low-key”. Imagino que é verdade e que o Buk, que nos seus livros às vezes gosta de vangloriar de ser beberrão e encrenqueiro, era mais o tipo de cara que gostava de ficar meio quietão no boteco, bem na moita, num lugar de bastante sombra, batendo papo baixinho e com a voz grave, só curtindo uma melancolia agradável...
Já o Mickey Rourke fala alto, faz cenas, dá escândalo, ostenta sua persona bêbada com um certo orgulho exagerado. Mas isso não quer dizer que é uma má interpretação – só que Mickey encarnou o Bukowski MITOLÓGICO, como nós gostamos de imaginá-lo, mas sem destoar demais do realismo – porque Barfly é um filme pé-no-chão pra caramba e de um realismo extremo ao narrar o relacionamento desses dois “pombinhos” punk. Pode ser que muita gente não veja muita graça em um filme desses, cheio de bebedeira, papo-furado, relacionamentos explosivos e brigas de bar – mas eu, sinceramente, adoro esse negócio. Ê filminho massa! :)
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Por falar em Buk, aí vai um vídeo tirado do doc Born Into This, que eu citei no texto sobre o Barfly aí em cima, em que o cara declama um poema genial:
And there will be the most beautiful silence never heard / Born out of that... / The sun still hidden there / Awaiting the next chapter.
quinta-feira, 31 de maio de 2007
:: 5 filmes queridos ::
segunda-feira, 28 de maio de 2007
:: que farei com meus pulmões normais? ::
Eu curto muito sebo. Frequentemente espirro um bocado ali dentro, de tanto cheirar mofo e respirar poeira, mas costuma valer a pena - já fiz aquisições fenomenais em sebos por aí. Me orgulho muito, por exemplo, de ter encontrado a preço de banana o Tarântula, único livro de prosa do Bob Dylan (que é uma doidera só...), de ter comprado uma raríssima edição do fodaço Morte a Crédito do Céline (em tradução portuga), de ter em capa dura os Ensaios do Montaigne completos (comprados por 10 realetas, precinho pra lá de camarada para um dos livros mais sábios que um homem já escreveu...), entre muitos outros queridos espécimes adquiridos na Sebolândia e que hoje decoram a estante...
Mas esse post aqui é só pra fazer uma recomendação literária a todos de um escritor que eu ando admirando muito e que foi descoberto, meio que por acaso, numa promoção de sebo, daquelas do tipo "3 livros por 5 reais". Era quase de graça, então eu fui pegando, mesmo que não conhecesse, se a capa, o título ou qualquer outra coisa seduzisse... Porque, como todo mundo sabe, de graça até injeção na testa e ônibus errado.
O nome do cara autor do tal do livro que eu comprei em sebo por preço de chiclete e que tanto me agradou é Gustavo Corção (1896-1978) - e provavelmente 99,9% dos brasileiros jamais ouviram falar esse nome (eu nunca tinha). O que me parece uma grande injustiça, já que ele é provavelmente um dos escritores mais brilhantes (e subestimados) da história da literatura brasileira. (Na verdade digo isso mais pelo gosto que tenho pelas frases bombásticas e por sensacionalismo barato do que pensando que sei do que tô falando - porque não tenho cacife nem conhecimento de causa algum pra fazer um julgamento desses, já que eu conheço um teco bem nanico das escrituras literárias realizadas nesse país... Aliás, de José de Alencar, Jorge Amado, Paulo Coelho, Érico Veríssimo, Raquel de Queiroz, toda essa negada, nunca li uma linha sequer. Tenho preconceitos.)
Li "A Descoberta do Outro" e adorei. Agora estou no "Lições de Abismo" e me deleitando muito, também. Posto aí embaixo um dos trechos mais divertidos, espertinhos e brilhantes que eu li do Corção - é a hora em que o protagonista de "A Descoberta do Outro" está se cagando de medo de estar com uma seríssima doença pulmonar - mas descobre, surpreso, que está totalmente são, ficando sem saber, no entanto, o que diabos fazer com sua saúde. Porque o problema é aquele velho: tudo bem que esteja tudo em riba, pulmões, cérebro, membros e coração perfeitamente saudáveis, por que, afinal de contas, resta sempre a velha questão: pra que serve a vida? Que faço eu desse meu corpo sadio? Que faço de mim mesmo agora que nada vai mal e, mesmo assim, nada vai bem?
Nesse dia, mais convencido do que nunca, e já adaptado à idéia de ser tuberculoso, apareci no local e fui atendido com surpreendente rapidez. Veio o funcionário, consultou suas fichas e disse-me:
Achei-me na rua lépido e novo. (...) De repente, porém, assaltou-me um pensamento absurdo:
- E agora, que vou eu fazer com esse pulmões normais?
Depois de tantos dias passados a pensar em programas de cura, a normalidade me aparecia afetada de profunda indeterminação. Era muito mais fácil decidir o que fazer com a tuberculose.
A vida, em toda sua extensão, surgiu-me como um problema de insuportável extravagância. O que fazer com meus pulmões normais? Essa pergunta podia ser generalizada para todas as vísceras e para toda a vida. O que fazer? Como tinha de atravessar o Campo de Santana, na volta para meu escritório, tive a idéia de aproveitar os pulmões sentando-me na grama para brincar com as cutias. Gostaria também de soltar um papagaio ou jogar bola. A única coisa que não era adequada à normalidade de meus pulmões era o escritório.
A verdade é que todas as coisas que fazemos giram em torno dum buraco, duma falta, de qualquer erro que demanda retificação, e por estranha irrisão a maior parte de nossos entusiasmos vem deste constante remendar. Diante da normalidade ficamos perplexos. O mundo inteiro vive assim. Haja guerra ou peste nas cidades: todos ficam alvoroçados e otimistas. Cada um sabe exatamente o que deve fazer e todos se empenham na tarefa comum de combater o mal. Dentro das casas, também, a vida só atinge uma alta vibração e só parece digna de ser vivida nos dias em que se declara uma tuberculose ou aparece uma goteira.
Cada flagelo traz uma atmosfera de bem-estar: basta ver como todos ficam contentes quando cai uma pancada de chuva ou surge um incêndio. Em cada sanatório são sonhados os melhores programas de vida.
No meio desse disparate eu tinha, evidentemente, consciência nítida do alto valor da normalidade, mas não sabia o que fazer com ela. Lembrei-me de uma conversa dias atrás, ouvida em roda de moços. Falavam em grandes feitos, em viagens maravilhosas e em espírito de aventura. Em menino gostei muito de Julio Verne e até agora simpatizava com os indivíduos que rompem bruscamente com o cotidianismo rotineiro para descobrir um pólo ou sondar as profundezas dum vulcão.
Mas depois desse exame de saúde fiquei pensando que o espírito de aventura existe porque as pessoas não sabem mais o que fazer com os dias normais. O sujeito que embarca para os mares da Polinésia é na verdade tão aventureiro como eu o seria em Campos do Jordão. Estaria apenas curando uma enfermidade diferente da minha.
O problema que se armava diante de mim era o de saber se existiria uma aventura positiva, uma extraordinária aventura em que todos os elementos fossem normais; uma viagem inaudita que fosse terminar num lugar muito conhecido onde eu fosse esperado; um brinquedo que valesse a pena brincar, mais do que a cutia ou o papagaio, e que eu pudesse, sem incongruência, praticar nos dias de meus quarenta anos, com a alegria, a gratuidade, a liberdade, a normalidade que tudo tinha, quando eu era pequenino, no fundo do meu quintal.
Se não existisse essa aventura, então, decididamente, os meus pulmões normais não serviriam para nada e a vida inteira seria um gracejo estúpido."
(A Descoberta do Outro, pgs. 67-69)
Postado por Unknown às 21:30 |
domingo, 27 de maio de 2007
:: guess who's back in town ::
"I want something good to die for
to make it beautiful to live."
Já caiu na rede o novíssimo disco dessa banda tão querida, uma das mais excitantes e originais desta década. O álbum, o quinto de Josh Homme e companhia, se chama "Era Vulgaris" e já entra direto no meu pódio de melhores discos do ano (na primeira ouvida! Vamos ver o que as próximas audições vão fazer dele...), disputando o topo com o Wilco e o Arcade Fire. Aí em cima, um dos clipes mais espetaculares que as minhas retinas já curtiram, acompanhamento visual perfeito para uma das melhores músicas de rock pesado de todos os tempos. Long Live The Queens!
Postado por Unknown às 17:43 |
quinta-feira, 24 de maio de 2007
:: i know, it's only rock'n roll, but i love it... ::
Acho que tô um tanto cansado ficar ouvindo fofurezas indie e bandas hypadas da era moderna. Tô achando muito mais proveitoso investigar o passado, procurando pelos fósseis de antigos dinossauros, do que procurar algo que preste nestas espécies que nasceram mais recentemente... Eu costumava ter toda uma preocupação de estar muito bem antenado, ouvindo grande parte dos lançamentos que as boas gravadoras iam pondo nas lojas, para ser um indie muito bem-informado e digno de estar na primeira divisão da nação indiegena, mas ando cada vez mais sem vontade de ficar baixando cada uma das Novas Salvações do Rock que a mídia musical inventa a cada semana - e só para estampar com letras garrafais nas manchetes sensacionalistas que mais e mais se parecem com anúncios...
Sem falar que, sinceramente, tem me decepcionado um pouco a produção das novas bandas por aí: ouço os novos do Arctic Monkeys, do Bloc Party, do Kaiser Chiefs, mesmo do Black Rebel, e acho tudo "legalzinho", até, mas de uma mediocridade desanimadora - é só botar um velho clássico do Led ou do AC/DC pra que tudo dessas bandinhas novas pareça meio pálido e sem cor perto dos discões fodões dos anos 60 e 70. Acho que eu vou ser um daqueles tiozões saudosistas que só curte bandas jurássicas e que quer ensinar a juventude a descobrir como era tão melhor nos tempos idos... :D "Ah, no tempo de Woodstock é que o lance era bom de verdade! Essa meninada dôjendia num sabe nada de róquenrou!" Tô meio naquelas de ficar me perguntando: por que vou ouvir o Wolfmother quando posso me deliciar com o Led Zeppelin e os Faces? Ou ouvir Darkness tendo em mãos o Highway to Hell e o Back In Black? Pra que ficar com os xerox em preto-e-branco quando posso ter os originais coloridos?
Acho, aliás, que as melhores bandas da atualidade, todas elas, só se tornaram tão boas porque estudaram com afinco a história do rock e se inseriram numa certa tradição: toda grande banda é também o resultado de um processo arqueológico de descoberta de uma linhagem. Senta que lá vem teoria de um pobre wannabe se fingindo de crítico musical... Acho que o White Stripes não seria tão legal se o Jack não tivesse devorado tanto folk e blues antigo, tanto Led Zeppelin, tanto Cream; os Strokes só se tornaram o que são de tanto ouvir Television, Undertones, Velvet e Modern Lovers; o Wilco, por mais original que seja, não deixa de chupinhar um monte de Replacements, de Neil Young, de Bob Dylan, até de Lynyrd Skynyrd, ultimamente... Bandas que têm raízes e cultura musical costumam ser muito melhores do que essas bandinhas que não ouviram muita coisa e já pensam que podem sair por aí fazendo música. Árvores crescem firmes e fortes só quando têm raízes vigorosas se aprofundando no solo... Com o perdão da má metáfora.
Segue aí embaixo uma seleção de um punhado de discos excelentes do rock and roll nos anos 70 - mas que não costumam ser devidamente valorizados. É uma espécie de "pérolas escondidas" ou "álbuns subestimados" de uma década que teve material de primeira pra dar e vender. A gente costuma só ouvir falar que os anos 70 viram nascer as primeiras bandas de rock pesado, que dariam em novos gêneros como o hard rock e o heavy metal (através do triunvirato sagrado: Led Zeppelin, Black Sabbath, Deep Purple), e que viu nascer o levante punk e suas bifurcações (a new wave, o pós-punk, o hardcore um pouco depois..), mas esquecemos de tantas outras bandas geniais (ou simplesmente empolgantes pra caraca) que passearam lindamente pelos gloriosos seventies... Eis aí, pois, 5 classicões do rock nos anos 70 que eu recomendo a todos:
T Rex – The Slider (1972). O rótulo glam rock engana e afasta os leigos: faz pensar em brilhantina, lantejoulas, exibicionismo espalhafatoso e comportamento repleto de viadagens - como se fosse o Ramo Gay dentro do rock and roll... Tenta dizer pra algum metaleiro que os discos do glam eram legais e ele vai te olhar com aquela cara de quem suspeita da tua masculinidade. Mas é bobagem e puro preconceito fazer do hoje mitológico Marc Bolan apenas um dos rock star mais bichosos que já houve, o primeiro de uma longa lista de moços com jeito de menina, a má-influência que serviu de inspiração para a androginia de gente como o Brian Molko do Placebo, o Brett Anderson do Suede, o Jarvis Cocker do Pulp... Em vida e depois de sua morte (em 1977), Marc Bolan foi muito mais: um compositor competente, um performer criativo, um cantor interessante, uma persona provocativa - um grande cara, se me perguntarem. E, reduzido ao essencial, o tal do glam rock era nada mais que o bom e velho rock and roll, puro e simples, não muito diferente do que era nos anos 50 e 60, mas sem a obsessão com a virilidade e com a atitude ai-como-sou-machão!. É o rock and roll excitante como sempre, mas liberto da obsessão com a macheza – e, por isso mesmo, transpirando liberdade. The Slider é talvez o grande clássico do Tyranossaurus Rex e um sucessor que chega a ultrapassar o poder do album anterior, o igualmente clássico Electric Warrior (que contêm o grande hit da banda, a irresistível “Bang A Gong (Get It On)”, que o menininho do filme Billy Elliott tanto adora). Na época de seu lançamento, o The Slider foi um hit certeiro na Inglaterra e conseguiu um sucesso considerável também do outro lado do Atlântico, fazendo de 1972 o ano mais formidável na história do glam rock: foi neste ano abençoado que foram lançados o Ziggy Stardust de David Bowie, o Transformer do Lou Reed e o All The Young Dudes do Mott the Hoople. The Slider, apesar das semelhanças claras que detêm com os discos citados, tem todo um charme próprio. A atitude do Rex e do Bolan, junto com os New York Dolls e com as bichices do Bowie, deve ser algo como o equivalente à Revolução Sexual dentro do rock and roll. Marc Bolan foi um dos primeiros a soltar a mulher que tinha dentro de si e mostrar que isso, ao invés de ser constrangedor, podia ser cool – e mais: libertador. Por isso gosto até de pensar nele (aguenta a viááágem...) como um precursor do riot girrrrl e um dos que abriu caminho para que as mulheres entrassem no rock and roll. Teriam existido Patti Smtih e Debbie Harrie se antes Marc Bolan não tivesse soltado a franga e "feminilizado" o rock, junto com o Bowie e os outros glams? Dali em diante, as bichas, as mulheres, os andróginos e todas as criaturas esquisitas estavam convidadas a pegar em guitarras e fazer bandas. Ainda bem! Tirando todo esse papo, The Slider é simplesmente um discaço de rock and roll, bom do começo ao fim, que tem ainda a vantagem de ter sido importante como algo que ajudou a modificar para sempre uns "paradigmas comportamentais".
GRAHAM PARKER – Howlin Wind (1976). O cara tem a voz do Van Morrison, a empolgação maníaca do Mick Jagger, a auto-confiança inabalável do Bruce Springsteen e o groove fácil de algum negão cantor de soul. Precisa dizer mais como recomnedação? E, como se não bastasse, o Graham Parker começou sua carreira quando o punk estava prestes a nascer e seu rock and roll já nascia impregnado com o espírito dos tempos: ou seja, já tinha um pé fincado no punk e outro na new wave. Howlin' Wind, seu primeiro disco, é um dos grandes debuts da história do rock, como a própria AMG All Music Guide sugere. É como um Elvis Costello mais encorpado, com uma banda de apoio mais vigorosa do que os Attractions e com sangue mais negro correndo nas veias. É como a versão rock and roll e turbinada do Moondance, um dos grandes clássicos do grande Van. É como o New York Dolls soaria se tivesse vivido para compor seu terceiro disco. Como é que pode ninguém conhecer uma maravilha dessas? Refrões memoráveis, músicas grudentas e um dos vocalistas mais potentes dos anos 70 fazem deste um dos mais divertidos, alegres e irresistíveis discos do rock and roll nos anos 70. Eis um disco que sempre sugiro pra tocar de cabo a rabo quando me deixam pôr som em festa.
MC5 – High Time (1971). Na história do rock, o MC5 entrou para o time das bandas chamadas de “proto-punk”, ao lado dos New York Dolls, dos Stooges e do Velvet Underground, como se fosse justo relegar bandas tão cruciais ao papel de serem os meros precursores de algo mais importante que viria depois... Por isso não curto muito do rótulo proto-punk: porque o MC5 era, antes de mais nada, uma baita duma bandaça de hard rock, talvez a mais violenta, brutal e pesada de sua era. Quando Kick Out The Jams! saiu, em 1969, impregnado de revolta política e discursos inflamados, “orquestrada” por John Sinclair para gerar um caos danado, aquilo foi provavelmente o petardo mais estupidamente barulhento e agressivo que o mundo já havia ouvido. E lembrem-se de que muitos anos ainda teriam que passar até que existissem coisas como o metal, o punk e o hardcore. O MC5 já foi a banda mais estupidamente agressiva do mundo. E que colhões lançar um disco daqueles em pleno Verão do Amor! O disco de estréia dos caras pode até ser o grande clássico da carreira deles, e de longe um dos melhores álbuns ao vivo da história do rock and roll, mas os dois discos seguintes não fazem feio – Back In The USA é um belo tributo às raízes do rock and roll e o High Time, terceiro e último álbum da banda, serve para inscrever o Motor City Five na história do rock pesado que nascia dos anos 70 com o surgimento do Led, do Black Sabbath e do Deep Purple. A banda perde alguns miligraminhas de sua energia estando num estúdio, mas a vantagem é que o vocal do Tyner se torna mais nítido e a guitarrinha estupenda do mestre Wayne Kramer se ouve com mais clareza. Um discaço.
STATUS QUO – On The Level (1975). Tudo bem: o Led Zeppelin IV é um puta dum disco formidável, clássico supremo da história do rock and roll, objeto de culto de todos os tiozões roqueiros que conhecemos... Mas quantos de nós, mais moderninhos, não desejamos que aquela avalanche sônica de “Black Dog” e “Rock and Roll”, que inicia o álbum nos deixando com a adrenalina lá no teto, continuasse pelo disco inteiro, sem que entrassem as bonitezas folk de “Going To California” ou a longa viagem de “Stairway To Heaven”? Quem já não quis que o Led Zeppelin tivesse feito um disco com o carro sempre na quinta-marcha, com o pé pisando sempre até o fim no acelerador? Pois o On The Level, do Status Quo, é mais ou menos como seria um disco inteiro repleto de rock and roll como só o Led sabia fazer na época do IV. Fiquei completamente embascado quando descobri esse disco – como pode ser tão subestimado e obscuro, quando tinha tudo para ser um dos álbuns mais adorados da história do hard rock? Antes de baixar essa pérola, minha única informação sobre o Status Quo era uma citação, pra lá de irônica, numa música do Teenage Fanclub, no disco deles (o adorável Bandwagonesque) que mais sacaneia alegremente o mundo do metal (e as meninas metaleiras): “She wears denim wherever she goes, she says she's gonna buy some records by the Status Quo...” (em “The Concept”). Este On The Level tem uma única musiquinha de bonitezas folk, inclusive com ú-ú-ús singelos de backing vocal (“Where I Am”), mas o resto do álbum é estupidamente rockandroller – contendo clássicos como “Down Down” e “Over and Done”. Rockão empolgante, despretensioso e cavalgante, que passa por cima do ouvinte como um rolo compressor e que não decepcionará ninguém que curta AC/DC e Led - mesmo que fique a sensação nítida de que o Status Quo é uma espécie de banda de segundo escalão, que fazia nada além de uma imitação classuda dos grandes mestres. Mas vai imitar bem assim no inferno!
FACES – A Nod Is As Good As a Wink... To a Blind (1973). Este é o mais clássico dos discos da banda outrora conhecida como Small Faces - que encurtou o nome depois da entrada do novo vocalista, Rod Stewart, e do novo guitarrista, o grande Ron Wood (que depois entraria pros Rolling Stones). Um dos álbuns de rock and roll puríssimo e destilado que mais me empolga, dentre todos que eu conheço. É tudo o que o Black Crowes queria ser, e tentou ser por tantos e tantos anos, conseguindo vez ou outra resultados admiráveis, mas nunca chegando a realmente atingir o nível desse momento máximo de inspiração dos Faces. Esse é do tempo em que os discos tinham só 35 minutos de duração mas não havia um segundo que não valesse a pena. Do tempo em que os discos eram feitos para que a juventude ficasse pulando em cima do colchão, segurando a guitarra imaginária e arruinando permanentemente os estrados da cama. O Rod Stewart, na carreira solo posterior, viraria um coiso um tanto brega e constrangedor, principalmente nos clipes e nas fotos, que são de uma cafonice sem igual, mas no Faces ele demonstra ser um vocalista de rock cheio de energia, empolgação e potência vocal. O jeito como Rod já entra com o vocal rasgado no começo de “Miss Judy” já dá a suspeita de que estamos frente a um disco sublime. E a suspeita se confirma com louvor. Os duelos entre um solo de guitarra e uma levadinha deliciosa na gaita harmônica em “You're So Rude” é uma das coisas mais docemente melodiosas que eu já ouvi num disco de rock pesado. Mesmo as baladinhas, que já sugerem o que Rod Stewart iria se tornar depois de ter “estragado”, são lindinhas: “Love Lives Here” e “Debris” não soam nada cafonas, conseguem até emocionar e soam quase com o Bob Dylan soava quando tocava com a The Band (e isso é uma grande elogio aos Faces, claro!). Sem falar que esse disco, junto com os clássicos do Led e do Cream, é prova de que o rock and roll nada mais é do que o bom e velho blues tocado com guitarras distorcidas e com um ritmo acelerado – tanto que uma música tem o nome-tributo perfeito à cidade-mãe do blues: “Memphis, Tenessesse”. Altamente recomendado.
(Xiii, faltou falar de tanta coisa, tanto disco clássico, tanta banda boa... eu não falei do Zuma do Neil Young, nem de nenhum clássico do Creedence, nem do Grand Funk Railroad, nem do Maggot Brain do Funkadelic, nem do Exile On Main Street ou do London Calling, nem de alguns grandes discos do Dylan... Mas fica pra próxima... Hoje a idéia era só ficar nos clássicos "obscuros".)
Postado por Unknown às 12:26 |
terça-feira, 22 de maio de 2007
:: viagens psicológicas ::
Meu interesse por psicologia já tem alguns aninhos de idade e promete só se expandir e intensificar mais e mais, tamanha a minha empolgação por certos livros brilhantes que eu venho lendo e que têm expandido muito meus horizontes... Um pouco desse meu gosto por psicologia tem a ver com a minha empolgada “descoberta” de Freud, muito tempo atrás. Sou fã de carteirinha. O Freud é um “cara” que eu admiro profundamente, apesar de ser sempre uma ferida dolorida no nosso narcisismo ler essas páginas que desiludem tanto... É uma baita duma lição de humildade enfrentar essas idéias. Será que houve algum gênio do pensamento que se compare a ele no século 20 inteiro?
Lembro de ter lido algumas obras rápidas do velho Sigmund quando era adolescente e me senti imensamente influenciado - foi Freud, muito mais do que o Nieztsche, quem me ajudou a me transformar de vez num ateu (graças a deus!) depois de eu ter concordado com tudo que estava dentro do genial “O Futuro de uma Ilusão”. Depois disso comecei minhas explorações dentro dessa imensa obra de milhares e milhares de páginas (material de leitura para toda uma vida...) criada por essa mente absolutamente revolucionária e magistral... Sou daqueles que acredita que para quase todos os sentimentos e angústias humanas ainda vale o velho slogan: "Freud explica!"
Minha fascinação por assuntos psicológicos tem a ver também com a imensa admiração que eu tenho pelo Ernest Becker, que foi um leitor cuidadoso e crítico inteligente de Freud. O Becker eu considero um dos mais brilhantes gênios que já estudou “cientificamente” a mente humana, dentre todos os escritores que eu já conheci - e acho incompreensível que ele ainda seja bastante desconhecido e subestimado por aí (apesar de ter vencido o Prêmio Pulitzer pelo excelentíssimo “A Negação da Morte”, que deve ser um dos 10 livros que mais marcaram minha vida). O que diabos aconteceu para que o Ernest Becker não seja lido, discutido, comentado, recriado, usado para a criação de “escolas” e seitas, seguido por discípulos...? Taí um grande injustiçado!...
Outras iscas que me chamaram para a área da psicologia foram leituras de Erich Fromm, R.D. Laing, Flávio Gikovate, José Ângelo Gaiarsa, um pouquinho de Reich e Melanie Klein, um quase-nada de Lacan (que é dificílimo de entender)... Sem falar que tenho uma mãe psicóloga, com uma mini-biblioteca sobre o assunto em casa, e que comecei a fazer análise um tempo atrás e estou sentindo claramente muito efeitos benéficos trazidos pelos papos e desabafos de consultório...
Acho realmente ultra-fascinante e apaixonante essas longas e complexas viagens para dentro da mente que nós, pelo menos aqui no Ocidente, só começamos a realizar com tanta profundidade e cuidado a partir do século 20, com a psicanálise se organizando de fato como ciência... Tudo bem que a gente consegue achar vários precursores da psicologia na história do pensamento – Schopenhauer, por exemplo, era um baita dum psicólogo penetrante, uma espécie de precursor do “freudismo”, e um cara como o Kierkegaard, apesar do vocabulário meio teológico que utilizava, era também um grande investigador da mente humana... Mas nada se compara à intensidade e à abundância de material com que o século 20 finalmente se pôs a investigar as profundezas do cérebro humano. E como demoramos! Porque é claro que, como diz o Flusser, num trecho em que se mostra empolgadérrimo pela “jornada intra-mental”, no Oriente a investigação das profundezas da mente humana já tem milênios e milênios de história. Apesar de lá não ser considerada como “ciência” e ter muita relação com o que nós chamamos, às vezes de modo depreciativo, de “misticismo”:
“Conhece-te a ti mesmo é um dos imperativos da tradição do Ocidente. Mas a tendência para a vivissecção da mente foi, no curso da história do Ocidente, violentamente 'reprimida'. Não somos muito meditativos. (...) É perfeitamente possível que futuros desenvolvimentos da psicologia ocidental penetrem até aquelas profundidades nas quais a meditação oriental se revolve há milhares de anos. (...) Não devemos menosprezar, como o fez o Ocidente até agora, a importância primordial das pesquisas orientais da mente. Um subconsciente iluminado e submetido à vontade despertada abriria fontes de energia muito mais poderosas que as energias atômicas. Comparadas com viagens para dentro da mente, são as viagens para a lua divertimentos inócuos e primitivos. Mas é verdade que essas viagens são muito mais facilmente realizáveis. Alcançaremos a lua, e mesmo a Sirius, muito antes de termos alcançado o abismo da mente.” (A História do Diabo, pg. 74-75)
Eu tinha vontade de ler Otto Rank (sobre quem é o ensaio que vem logo abaixo) faz tempo, já que o mestre Ernest Becker se dizia muito influenciado pelo trabalho dele. Agora que meu francês já está mais afiado, consegui ir até o fim do “Le Traumatisme de La Naissance”, uma das obras principais desse psicólogo instigante e genial – que chegou a ter “pacientes” famosos (Henry Miller e Anais Nin, por exemplo) e foi discípulo do próprio Freud por mais de 20 anos, apesar de depois ter seguido outros caminhos, como tantos outros “dissidentes” dentro do "movimento" psicanalítico (o mais famoso deles sendo o próprio Jung).
Muitas das idéias que estão no livro Trauma do Nascimento eu já conhecia de “segunda mão”, principalmente por via do Flávio Gikovate, que escreveu um livro altamente rankiano sobre o amor, o brilhante Uma Nova Visão do Amor. O que eu quis fazer neste texto que se segue foi somente algumas digressões e reflexões sobre o livro do Rank, sem fazer citações demoradas, mas tentando passar com as minhas palavras aquilo que eu retive dessa leitura. Claro que esse texto, que qualquer psicólogo profissional certamente acharia uma grosseira vulgarização do pensamento (complexíssimo) do Rank, obviamente não tem a mínima pretensão de esgotar um livro tão rico – até porque esse é o tipo de obra que merece sozinha uma tese de mestrado (esse é o tipo de livro sobre o qual se escrevem vários outros livros...). A única coisa que eu quis foi dar uma idéia geral da teoria do Rank, viajar poeticamente nas asas do livro e tentar transmitir o quanto cada um de nós pode, olhando pra dentro de si, reconhecer o quanto ela pode ser sentida como verdadeira...
Tenho vontade de escrever sobre vários outros livros interessantíssimos que eu já li, mas por enquanto esses ensaios só vivem em mim como projetos, que só vão se realizar se a minha preguiça deixar, se minha energia existir, se eu me empolgar... De qualquer modo, eu diria que há uma meia dúzia de livros sobre psicologia que eu admiro de joelhos e que eu recomendo a todos - e são sobre elas que, talvez um dia, eu ainda vou escrever... Por hora, fica minha recomendação de leituras...
ERNEST BECKER - A Negação da Morte
ERICH FROMM - O Medo à Liberdade
Agora vamos ao que interessa...
Postado por Unknown às 15:00 |
segunda-feira, 21 de maio de 2007
:: viajando com Otto Rank ::
A NOSTALGIA PELO PARAÍSO PERDIDO
(comentários e digressões sobre o livro
"O Trauma do Nascimento", de Otto Rank)
A princípio eu fiquei me perguntando: não seria muito reducionismo apelar para um único “princípio de explicação” que daria conta de esclarecer as “razões últimas” de todas as atividades e ações humanas? É a mesma desconfiança que eu sinto quando os marxistas querem explicar absolutamente todos os fenômenos partindo sempre das bases econômicas e materiais, ou quando os freudianos reduzem tudo a algo condicionado pela libido ou pelo Complexo de Édipo, ou quando os darwinistas consideram todo ser vivo, inclusive os homens, como meras máquinas cegas programadas a transmitir genes para seus descendentes...
Quer dizer então que a obra completa de William Shakespeare seria um mero “efeito acidental” produzido em um certo indivíduo pelas circunstâncias sócio-econômicas e ideológicas da Inglaterra daquela época, como poderia dizer um marxista simplista? E a música de Beethoven não passaria do resultado derivado da “sublimação do instinto sexual”, como um freudiano ortodoxo poderia dizer? E todo ser humano não passa de um máquina sexual perseguindo a perpetuação de seus cromossomos, como dirá, talvez, um darwinista clássico? Sei não, sei não... Desconfio de toda explicação assim tão simplificadora...
O caso de Rank parece semelhante: às vezes a gente fica com a impressão de que ele interpreta a realidade de um modo um tanto distorcido e distorcente, tentando encaixar os fatos mais diversos dentro de sua teoria centrada no trauma do nascimento. Mas com certeza o livro tem uma força argumentativa e persuasiva impressionante: os exemplos e demonstrações que ele vai dando são ultra-convincentes, sem falar que Rank discursa com uma convicção tamanha que se transmite ao leitor por osmose uma estranha espécie de confiança no que ele está dizendo - logo já estamos achando bastante natural todas aquelas teses que, a princípio, pareciam estranhas, bizarras e difíceis de aceitar...
Por todo o livro, o estado pré-natal é descrito como o paraíso mais perfeito, a situação mais voluptuosa e deliciosa que existe: não haveria nada melhor para qualquer ser humano, dentre todos os bens do Universo, do que estar ali dentro do útero da mamãe, aninhado e protegido, flutuando numa piscininha aquecida, sem precisar fazer nada além de estar ali, numa boa, dormindo, comendo e nadando... Mas convêm perguntar: de onde o Rank tirou uma convicção tão firme de que era assim tão gostosa a vida de cada um de nós na barriga da mãe? Porque é claro que cada um de nós, se perguntado se era “feliz” naquele tempo tão distante, vai encontrar um buraco negro na memória e provavelmente vai ser levado a responder: “Não sei... eu não me lembro! Faz taanto tempo...” Mas é provável que diga, também: “Mas eu acho que sim, tenho quase certeza que era feliz...”
Deixemos de lado a questão filosófica de saber se ser feliz sem ter consciência de sua felicidade é ser feliz de verdade... O que importa de verdade é esse “acho que sim”, quase universal, que quase todo ser humano dá a essa pergunta: “você acha que foi feliz dentro do útero?” Não é pra lá de interessante que não haja praticamente ninguém que diga não ter gostado do lugar e da situação em que esteve antes de nascer?
Porque é óbvio que nenhum de nós possui memórias conscientes sobre aquele tempo em que nadávamos calmamente numa piscina quente de líquido amniótico. Aliás, cabe aos neurologistas e biólogos nos confirmar, se é que isso é possível, se o feto seria capaz ou não de reter lembranças tão precoces possuindo um cérebro ainda em formação. A tese de Rank (difícil de provar, é verdade, mas que explica muita coisa da história da humanidade...), é a de que inconscientemente nós “nos lembramos” daquela maravilhosa paz, tranquilidade e prazer duradouro que experimentamos no interior do útero. Mais do que isso: o nosso inconsciente, no fundo, ficou “viciado” naquele estado beatífico e depois, a nossa vida inteira, vai desejar, mais do que tudo no mundo, esse retorno ao paraíso perdido...
E por que “o paraíso” se perdeu? Simples assim: pois nascemos. Não é difícil de entender porque Rank insiste em chamar o ato do nascimento como um acontecimento extremamente traumático para a vida do bebê – tão traumático que deixará sequelas em nossa vida psicológica por toda a vida! Imaginem vocês que o bebêzinho estava lá, na maior boa vida, na maior relax, só curtindo umas férias preguiçosas num resort aquático cinco estrelas, sendo alimentado sem precisar mexer um dedo, livrando-se de seus cocôs e xixis sem nem precisar ir ao banheiro, não tendo nem que trabalhar, nem que estudar, nem que acordar cedo todo dia... Ê maravilha! Uma vida de príncipe num trono de delícias!
E aí, de repente, de supetão, ele toma um pé na bunda súbito e é expulso de sua casa como quem não pagou aluguel e agora é despejado... Sem aviso prévio e sem o menor respeito por seu desejo (que, claro, era de ficar ali!), ele é evacuado – e com que grosseria! Ele vai sendo empurrado para fora, tendo que passar por uma portinha minúscula, apertadíssima, que lhe dá a sensação terrível de asfixia e esmagamento... E eis que ele se vê num lugar estranho e bizarro, separado do corpo de sua mãe, longe do calor protegido do seu antigo ninho, tendo o cordão que os ligava tão intimamente cruelmente rasgado... E ei-lo ali, entregue ao frio, entregue a mãos estranhas, entregue, pela primeira vez, à solidão... É por isso que todos nós choramos quando nascemos. É por isso que todos os bebês humanos nascidos de mães de carne-e-osso, e não de tubos de ensaio ou de robôs, não importa o quanto a tecnologia se desenvolva, vão continuar para sempre a nascer berrando e chorando... Porque nascer não é nada gostoso. Nascer equivale a ser expulso do paraíso.
Essa experiência primordial, segundo Rank, vai deixar no nosso cérebro uma tatuagem perpétua e indelével. Nossa vida inteira ficará marcada por essa temporada no céu e por esse trauma da expulsão. O cristianismo, com o mito do Éden, não fez nada além de inventar uma historinha que serve como metáfora para a perda real do útero sofrida por todos nós – e que é o fardo que carrega todo ser humano. Como bom ateu, discípulo de Freud em matéria de religião, Rank também dirá que as religiões, no fundo, inventam e imaginam um céu onde colocam somente projeções de desejos regressivos. Projetamos no além-túmulo a vida in utero! Queremos que o Céu seja como um segundo útero onde pudéssemos reentrar para voltar a sentir todas as saborosas sensações que já sentimos, no começo da vida, antes do desastre catastrófico do nascimento...
O mito do amor platônico, por sua vez, também não é nada além de uma criação poética realizada em cima do anseio que temos pela reunificação com o objeto amado depois de termos sido “separados” dele num passado distante. Visto sob essa luz, o famoso mito do amor platônico se torna muito mais compreensível e “pé-no-chão”, por assim dizer. No célebre diálogo do Banquete de Platão, como é bem conhecido, em certo ponto é narrado o mito de que nós já fomos, todos nós, “seres duplos”, completos, plenos - e que os deuses nos puniram nos rachando em duas metades. O amor seria essa busca louca empreendida por cada um de nós para reencontrar a sua metade perdida, com quem poderíamos voltar a nos unificar, a nos fundir – voltar a ser Um...
Se no mito platônico são os deuses que, como punição, nos rasgam no meio, em linguagem mais realista podemos dizer que é a desgraça do nascimento que nos “rasga no meio”, que nos desgruda da mãe, que nos arranca de nosso casulo... Segundo Rank, portanto, se dispensarmos as vestimentas religiosas desse mito platônico e abandonarmos a intervenção divina, vamos ficar com uma metáfora poética poderosa sobre a situação humana: do estado inicial de “unificação” (bebê + mãe), passamos pelo trauma de um “rasgo” (o nascimento), para depois sairmos em busca de um modo de recuperar a delícia perdida (e a essa busca e a esse anseio chamamos “amor ").
E não é difícil de perceber que o nascimento é uma experiência vivida pelo bebê como sendo quase uma CASTRAÇÃO. Não se trata de ser meramente evacuado de uma casa onde você estava morando, todo confortável – isso seria difícil de aguentar, sim, mas não constituiria um “trauma” tão intenso! A experiência que o bebê tem, pelo contrário, é de que arrancaram uma PARTE DELE, um membro DELE, e o melhor deles... O feto não tem ainda a mínima noção de individualidade e de autonomia para poder crer que é uma criatura separada do resto do mundo - muito tempo ainda vai ser preciso para que a criança comece a perceber o mundo como algo separado dela, até que o ego comece a nascer do id, até que comece todo o processo de “individuação”... Na perspectiva do bebê, ele não está sendo meramente transportado de um local para outro - ele está tendo sua mãe arrancada de junto de seu corpo... E como dói!
E assim Rank vai explicando tudo como uma espécie de efeito do trauma do nascimento: a transformação da natureza pela técnica e pela ciência teria como objetivo principal transformar o mundo tendo como molde a vida intra-uterina e o nosso desejo de voltar a habitar num “ambiente” semelhante ao corpo maternal. (Mas como fracassamos! Já que o mundo moderno nada tem de aconchegante e uterino!...) A quem retrucar dizendo que tudo o que queremos através da transformação da natureza e dos avanços tecnológicos é nada mais do que “conforto” e “prazeres fáceis”, Rank responderia, provavelmente, que queremos essas coisas justamente em virtude da saudade que temos do conforto e dos prazeres fáceis que experimentamos na vida intra-uterina...
A arte, por sua vez, também não passaria de uma tentativa de expressar a angústia, perpétua dentro de nós, associada com a expulsão do útero e com a impossibilidade de retornar a ele. Ou então a arte serviria para fabricar "satisfações substitutivas" que nos consolem de nossa sina de exilados...
Quem foi mesmo o poeta que disse que “não há paraísos a não ser os paraísos perdidos?” Não me lembro mais. Só sei que, segundo Rank, durante nossa vida inteira ficaremos zanzando pelo mundo à procura de algo que nos dê de volta a suposta beatitude que experimentados dentro do útero - e a isso vamos chamar isso de “busca pela felicidade”, de “procura por um amor verdadeiro” ou mesmo da “conquista do reino dos céus”. A psicanálise, que em geral é uma grande ferida no nosso narcisismo, reduz todos esses belíssimos ideais a algo com uma explicação perfeitamente biológica... É como se o Rank dissesse que, por trás de todos esses lindos anseios, estão somente os bebês crescidos que nós todos somos - que nunca se conformaram com o fato de terem nascido e perdido o “paraíso”...
* * * * *
Para o Rank, se eu o entendi bem, todas as neuroses e psicoses, em última análise, decorrem de um excesso de “libido regressiva”. Ficamos doentes quando queremos demais reentrar no útero e ficamos muito fixados na figura materna. Por quê ficamos doentes? Porque é simplesmente impossível conseguir isso que desejamos. E não é difícil de imaginar o tamanho do sofrimento e do mal-estar por que passamos ao desejar e desejar, ardentemente, sem achar satisfação possível para esse anseio...
Toda a sexualidade, para o Rank, também vai ter ligação com o trauma do nascimento e com a tentativa de restabelecer, pelo menos de modo parcial, a ligação profunda que existia entre o feto e sua mãe. Na essência do desejo sexual está essa ânsia pela “reunificação”, essa “tentativa de restabelecer parcialmente a situação primitiva entre a mãe e o filho”. O trecho seguinte é crucial: “um sujeito, não importa a qual sexo pertença, torna-se neurótico a partir do momento em que procura satisfazer sua libido primitiva, isto é, seu desejo de efetuar o retorno para dentro da mãe, a título de compensação pelo traumatismo do nascimento, não pela via normal da relação sexual, mas pela forma primitivamente infantil; ao fazer isso, ele se aproxima novamente do limite a partir do qual começa a angústia vinculada ao trauma do nascimento, angústia que só a satisfação sexual normal é suscetível de dissipar.”
Isso é importante demais. E bastante radical. Otto Rank, como fará também o Gikovate no livro dele, está de fato demolindo todo o ideal romântico da re-unificação com o objeto amado. Isso passa a ser visto como uma perigosa tendência regressiva que pode dar em neurose. A essência da sanidade mental estaria em fazer o ego vencer as tendências inconscientes, ou seja, sufocar todas essas tendências infantis de regresso.
A psicanálise sempre foi extremamente realista – e talvez por isso tantos a considerem algo tão sombrio e sem magia... Nesse caso, também, a mensagem de Rank não tem nada de “bonitinha”: ele nos convida, no fundo, a matar nossos sonhos e tentar, na medida do possível, abandonar de vez a nossa “saudade”. Em nome de um certo “realismo”, precisamos matar em nós a fantasia do regresso, destruir a enorme atração da nostalgia... E acho que isso representa, no fundo, aquela velha necessidade, que o Freud tanto destacava, de fazer triunfar o princípio de realidade sobre o princípio de prazer.
É como se fosse preciso chegar à “conclusão” – mas não só com a cabeça, mas com todo o nosso ser! - de que é impossível o regresso, de que é inútil desejá-lo e de que só há vida boa quando esse sonho não mais nos incomodar com seus pedidos tão selvagens. É preciso esquecer essas fantasias vãs e parar de esperar do amor, da religião, da ciência, da arte ou de qualquer outra coisa aquilo que nada nos pode dar: o paraíso de volta.
Esse paraíso perdido não é daquele tipo que fica ali, disponível por muito tempo na prateleirinha de achados & perdidos, e que um dia poderíamos reaver... Não! Infelizmente, esse paraíso é daqueles que, uma vez perdido, jamais será reencontrado. Desejar reencontrá-lo é condenar-se à infelicidade - pois não é infeliz todo aquele que deseja o impossível? Talvez Sponville nunca tenha dito algo de diferente quando tanto dizia contra a esperança – e quer esperança mais forte e mais inestirpável do que essa? Não será essa a esperança-mãe de todas as outras esperanças? Por isso Rank está, no fundo, dando uma sugestão quase estóica: convêm resignar-se... Só poderá ser feliz aquele que renunciar ao sonho completamente vão de retornar ao paraíso e aceitar o fato irremediável de sua perda.
* * * * *
É muito bonitinho dizer que nascer é uma grande maravilha, e que nos dá de presente a imensa dádiva de poder existir, mas a verdade é bem diferente, como o Rank mostra tão bem: a experiência psicológica que temos do nascimento e da primeira infância é traumática. O mito da infância feliz é somente isso: um mito... quase uma mentira. Porque a verdade é que um bebê e uma criança pequena têm que suportar uma imensa quantidade de sofrimento. E talvez seja com revolta que muitos de nós olhamos para trás e para a catástrofe de termos sido arrancados, ao nascer, de uma situação tão gostosa.... Quem muitas vezes já não gritou aos pais, em alguma briga qualquer: “Mas eu não pedi para nascer!”? Talvez seja a memória inconsciente do trauma que nos leva a tratar nossos pais, de vez em quando, como se eles tivessem cometido contra nós o maior dos crimes ao nos trazerem ao mundo... Talvez, se a gente pudesse escolher, preferiríamos viver para sempre dentro do útero - de preferência, podendo ter uma consciência desenvolvida (uma consciência de adulto?) para poder gozar de nosso próprio prazer perfeito... O que é obviamente pedir demais!
Segundo o Rank, portanto, é claro que no fundo de cada um, admitamos isso ou não, subsiste um desejo profundo e poderoso de voltar a se aproximar do estado primordial, de sentir de novo aquela fusão do feto com o corpo materno, de ser de novo um bebê cuidado pela mamãe, amado incondicionalmente, sempre satisfeito com a máxima rapidez... Não é novidade pra ninguém a tese da psicanálise de que, quando amamos, estamos sempre buscando substitutos de nossos pais e ansiando por um estado de paz e satisfação tranquila como só pudemos experimentar num passado muito distante...
O Rank e os outros psicólogos que o seguem vão dizer que esse é um desejo inextirpável, uma das forças mais veementes presentes no nosso insconsciente, mas - eis a triste notícia! - é um desejo simplesmente impossível de satisfazer. Essa regressão ao útero é impossível. Aquilo, aquele paraíso, está irremediavelmente perdido. Só nos resta chorar. Só nos resta tentar aceitar esse fato inaceitável. Só nos resta passar pomada em nossa ferida, sabendo no entanto que ela nunca irá sarar. Só nos resta tentarmos seguir vida afora com nossos substitutos e nossos subterfúgios, mas sabendo que a cicatriz nunca vai desaparecer. Essa sensação de ter perdido algo de paradisíaco e sublime nunca vai sumir, e todos vamos carregar dentro de nós, até o túmulo, esse buraco de incompletude, essa saudade dos melhores dias, essa nostalgia do ninho abandonado...
Quando é que iremos nos resignar ao fato de que essa perda é irreversível? É possível aceitar sem dor e sem mágoa uma perda tão fundamental? Se Rank está certo em dizer que o útero é sinônimo de "paraíso", a vida é mesmo cruel: já nascemos perdendo aquilo que conhecemos de melhor na vida... Parece uma piada do demônio, alguma uma travessura de uma divindade sádica e desdenhosa... Nascer é ser subitamente expulso, como que por uma descarga de privada, de um paraíso intra-uterino todo feito de paz, serenidade e calor, e injetado num mundo gelado e estranho, que demoramos muito para compreender, que nunca compreendemos por inteiro, e onde teremos que crescer, condenados à solidão. Exagero? Talvez seja: a vida não pode ser descrita como uma condenação à solidão, é claro, já que há o amor e a amizade, os laços que fazemos e conservamos, a convivência e as raras comunhões dos espíritos... Mas quem nega que é mais solitário estar no mundo do que era estar no útero? Quem não vê que a solidão é um sentimento que nenhum feto jamais seria capaz de sentir?
Nascemos e agora a solidão é nosso destino. O nascimento já sela nossa separação. O ato de crescer é também o ato de desgrudar. E o amor só existe pois somos sós. Só amamos pois o elo foi rompido e a dor dessa desconexão não pára de latejar na nossa memória e nosso inconsciente. O amor é também nostalgia, e talvez não existiria nenhum amor se não tivéssemos atrás de nós um paraíso perdido e o desejo de reencontrá-lo. O amor é o nome de nossa desesperada busca por um substituto para o Éden de que fomos arrancados brutalmente pelo nascimento e pela maturação. É porque somos sós que precisamos procurar no amor algo que nos restitua a comunhão.
* * * * *
A mensagem pode parecer, à primeira vista, um tanto amarga e sombria, mas eu consigo enxergar nesta teoria do Otto Rank muita sabedoria. É uma lição de estoicismo, sim: porque é preciso se resignar que ao útero não se volta. É preciso seguir em frente e esquecer o desejo de regresso. Saímos de um porto e estamos navegando em um mar de tormenta, mas não é sensato querer dar meia-volta e retornar: o porto já foi incendiado e não há lugar para onde voltar. Sempre avante, e sempre em direção ao abismo, que nos aguarda, no fim de tudo, e a todos nós, sem exceção. A vida é uma rodovia de mão única e ninguém consegue dar um cavalo-de-pau e reentrar no passado, indo parar de volta na barriga de mamãe, descansando como um nêne inteiramente feliz e pacificado pelos séculos dos séculos... Por mais que doa, vamos ter que deixar de sonhos tolos, amigos: o paraíso ficou atrás de nós, eis o fato, e é um paraíso destruído, incendiado, reduzido a pó, que não se repetirá no futuro. Irremediavelmente perdido.
Mas aí é como se o Rank dissesse: e você vai querer passar a viagem inteira só se lamentando por causa disso? Ora, chore um pouco, é compreensível – todos fazemos isso, e desde o nosso primeiro instante de vida, e continuamos a fazê-lo vida afora... Chorar é bom. Mas o luto não pode ser perpétuo, e a perda, toda perda, precisa ser superada! Pois então chore por causa de seu paraíso perdido, chore o quanto quiser, mas depois se canse. Se canse de chorar e siga em frente. Enterre o morto e siga em frente. Esqueça o paraíso e siga em frente. Esqueça a esperança de voltar, e siga em frente.
Amadurecer é isso: parar de ficar chorando, tristinho, pelo paraíso perdido, tentando a ele retornar, e recobrar as forças, reanimar as energias, reencher o tanque, e colocar tudo em movimento para enfrentar esse mar de tormenta, mesmo que o porto de onde saímos esteja para sempre inacessível... Se isso serve de consolo, teremos um porto de chegada, sim - e pacífico, e sem dor, e silencioso... O desejo de morrer também tem a ver com o desejo de reencontrar a paz intra-uterina. E há um certo consolo em saber que vamos poder descansar, no fim do caminho, e dormir um sono sem pesadelos, sem sobressaltos e sem despertar.
No fundo, talvez seja possível enxergar detrás da teoria do Otto Rank uma mensagem bastante positiva, que afirma o valor da vida e que diz com convicção que sim, ela vale a pena ser vivida, e que gostaremos tanto mais dela quanto menos nostalgia e esperança alimentarmos... É como se a vida fosse um mar que estamos cruzando entre dois portos, dois paraísos (o paraíso do útero e o paraíso do nada), mas iremos estragar a nossa viagem se ficarmos com a mente ocupada com o que passou ou com o que virá. Por enquanto não é tempo de portos – é tempo de navegar, em mares em fúria e em mares de paz, em dias de tempestade e em dias de sol, carregando no mesmo peito as feridas e as alegrias... é tempo de navegar e lutar! Amigos, vamos esquecer de onde saímos e para onde vamos, deixar de lado a nostalgia e a esperança, a saudade do que não voltará e os sonhos vãos do que nunca virá, porque a vida é aqui e agora - e o que vale a pena não é nem o que ficou pra trás nem o que chegará no fim... A jornada é a recompensa!
Postado por Unknown às 20:00 |
domingo, 20 de maio de 2007
:: abre aspas ::
Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda até que um homem, rodando por essas estradas brasileiras de conservação tão precária, mas assim mesmo tão lindas, possa-se dizer, como se diz um americano, um alemão, um russo, um holandês, um canadense, um sueco – e pelo menos isto: "não há fome"? Até quando essas faces terrosas, esses olhos opacos, esses braços finos, essa pasmaceira filha de uma longa indigência sem remédio? Quando virá o dia em que, ao se parar num botequim para um café, não nos chegará de mão estendida uma criança imunda e endefluxada a nos exigir uma esmola com um duro olhar adulto? Ou um idiota de boca torta, os braços ainda saudosos da posição fetal, para nos dizer de sua angústia em sons afásicos, fazendo-nos olhar para outro lado como se não o estivéssemos vendo? Sim, por que o que é que adianta ver?
São seres humanos, patrícios nossos, que tiveram a desgraça de ser concebidos na miséria, de semente já enfraquecida por endemias e carências – e isto numa terra vasta e generosa, em que se plantando, tudo dá. Ficam parados à porta dos casebres e das tendinhas, ou estão sempre em marcha ao longo das rodovias, transportando suas avitaminoses, seus vermes intestinais, sua dor de dentes crônica, para ir trabalhar num roçado cinco léguas adiante. E à noitinha voltam, silenciosos e apressados, pelas mesmas estradas, para o prato sem proteínas que lhes serve uma velha mulher jovem, a quem faltam os incisivos, enquanto no chão de terra batida choraminga sobre os próprios excrementos o último fruto de sua triste condição. Porque, sim! Constituem, em sua sórdida pobreza, um casal: a célula da criação; um casal que, um amparado no outro, segue em frente, na direção onde o levam a vida e a necessidade, repartindo o trabalho, a comida, o sonho. Sonho? - que sonho? Um casal capaz de criar, produzir, vender, ganhar, ter uma casinha com uma cama, uma mesa, um fogão a lenha e uma privada. Capaz de comprar uma merendeira para a filhinha que vai à escola. Escola? - que esperança!
Não, não são seres humanos. São bichos. É um verme humano, uma lombriga de calça e suspensórios, um ascarídeo que leva outro dentro. Cobrem o teto e a cabeça com palha, fumam palha, dormem sobre palha, são palha eles próprios – paha seca que se desfaz à simples fricção dos dedos.
Por que me apiedo deles? O que posso eu fazer por eles quando acima, muito acima de mim, muito acima do meu país, erguem-se forças cujo fragílimo equilíbrio reside em sua própria capacidade de destruição; forças cuja agressividade já independe, porque ultrapassaram todos os limites do cognoscível, forças que se podem desencadear num átimo por excesso de tensão?
No entanto, corta-me o peito vê-los em exposição como figuras de barro de um mau artista folclórico, acocorados onde os larga sua imemorial fadiga, pitando e cuspindo a saliva grossa do fumo de rolo, portadores, quase sempre, de conjuntivite crônica, às vezes rindo um riso matreiro com as gengivas desdentadas. Matreiro, por quê? Que espécie de inteligência podem ter senão a do instinto aguçado pela necessidade de sobrevivência, que lhes faz preciso o machado, rápida a foice, fulminante a faca que mata para não morrer?
São patrícios nossos, que não têm voz e não têm vez. Em suas vísceras carcomidas se gera lentamente o câncer, alimentado, também, por uma progressiva indiferença. Que adianta lutar? A única coisa a fazer é o gesto de cortar ou ceifar, levar a mão à boca e virar de um golpe a pinga ruim, onde fermenta a cólera assassina, deslocar os ossos da companheira esquálida num breve ato de prazer animal. Prazer? - que prazer? E conformar-se ao ver-lhe o ventre, já inchado de farinha, inchar mais, inchar mais, até, numa primeira lua nova, expelir um feto natimorto, ou destinado a morrer no primeiro ano de vida, quando não vinga por milagre para repetir, anos mais tarde, aquela mesma miserável mímica.
Que tristeza! E aí estão eles, pelas estradas do Brasil adentro, pobres imagens de cerâmica barata toscamente esculpidas. Às vezes, à porta do barraco, ponteiam sem emoção sons de viola e cantam toadas trêmulas, que falam da mesmice de sua vida, ou amores trágicos e valentias justiceiras, tendo como únicos ouvintes uma lua, no céu, um mocho num galho, uma aranha em sua teia, um vira-lata amigo, com as costelas à mostra.
Um dia, amanhecem mortos. Morreram de nó na tripa, transnominação eufemística para o câncer, a ruptura de hérnia, o vôlvulo, a úlcera gástrica, a cirrose hepática. E são enterrados em cova rasa, no cemiteriozinho mais próximo: primeira e última generosidade do dono de terra para quem trabalham; senão, é abrir um buraco por ali mesmo e jogar o defunto dentro. Deixam para trás uma nova meretriz, que vende a pele frouxa e os seios deflatados para sustentar a prole. São gente sem história.
Meu amor, acorda, não me deixes, só, nesta sala noturna, a escrever estas tristezas. Não me deixes mais recordar esses casebres pobres de beira-estrada onde dormem e morrem irmãos meus em quem se descoloriu o sangue. Eu os estou vendo agora, dentro da noite negra a mugir inaudivelmente sua indiferença, os magros corpos magoados pela tábua dura das enxergas. Eles não sabem porque vieram, não sabem porque permanecem, não sabem para onde vão. Eles só sabem de uma coisa: ninguém se lembra deles, e eu também não quero lembrar mais. Vem, amiga, me serve um uísque, dose dupla, muito gelo. E põe depressa um disco dos Beatles na vitrola.” [vinícius de moraes]
Postado por Unknown às 08:41 |